5.11.13

Catadores de lixo. O proveito que vem do desperdício dos outros

in iOnline

Seja ferro, sejam malas, electrodomésticos ou roupa, nas ruas de Lisboa há quem partilhe uma profissão: aproveitar o que os outros não querem e esperar que esses restos acabem no lixo. O i andou atrás de três casos
Os homens não choram. João Paulo Rita já perdeu a conta às vezes que ouviu esta frase, mas sabe de cor as alturas em que ela lhe brota na cabeça - quando se vê sozinho no canto que há dois anos é o seu nas ruas de Lisboa. É à noite que a sua mente fica órfã de distracções e começa a trabalhar sem companhia. "Às vezes vêm-me as lágrimas aos olhos", confessa, sobre os momentos em que a solidão nocturna traz consigo "as saudades de tudo" e o faz lembrar da tal frase. Aqui o choro não é a pior reacção, se a com- parar com as alturas em que chega a ponderar "desistir", pôr "uma corda à volta do pescoço" e "acabar com tudo".

É "muito complicado" ser catador de lixo. Não há dia em que Paulo Rita não acorde às 7h, abra o saco-cama, se levante do chão e "vá à sucata". A sua especialidade é ferro, alumínio, cobre, metal ou fios eléctricos. Tudo serve e qualquer grama conta quando a divisa é calculada ao quilo. Um dia proveitoso é sinónimo de encher o bolso com "oito ou dez euros", a retribuição que consegue se entregar no ferro-velho um carrinho de mão cheio de sucata para vender. Mas "há dias maus", em que "anda, anda e anda" e "não [apanha] nada", lamenta. Só aqui a sua voz começa a murchar.

Afinal nem sempre o desperdício dos outros acaba na rua, embora "as injustiças" vindas de quem "trabalha, tem um ordenado, uma casa e refeições" apareçam sempre. A garantia é de Paulo Rita e o exemplo também. Um dia, enquanto carregava "às costas" um ar condicionado avariado, oferecido por um restaurante em Alfama, um funcionário da Câmara Municipal de Lisboa, ao avistá-lo, foi rápido a disparar a pergunta: "Onde é que foste roubar isso?" As pessoas, condena o sem-abrigo, "esquecem-se, ou não sabem, que a vida dá muitas voltas" e que também ele "já esteve bem". Não recebe pensões, subsídios ou rendimentos, mas João Paulo vê no seu dia-a-dia "um trabalho igual a qualquer outro", com uma área de jurisdição a cobrir as zonas da Graça, Santa Apolónia, Sapadores e São Vicente de Fora. "No fundo estou a ajudar a limpar a cidade", defende, com a mesma certeza de quem agarra e leva da rua "tudo o que der para vender". Seja no ferro-velho seja na Feira da Ladra, às terças e sábados, onde a sorte já o compensou por tanto tentar - um dia acabou com um saldo de "70 ou 80 euros". Tudo o que faz, resume, "é um modo de reciclagem" e de "ganhar dinheiro".

Em esforço e horas de trabalho, vasculhar as ruas à caça de coisas que quem tinha deixou de querer ter é um emprego. Aos 44 anos, as pernas ainda lhe dão força para caminhar 40 quilómetros por dia, "ou mais", acrescenta. O ritmo da sua marcha não mente. Ir atrás de Paulo obriga a ter um passo acelerado e a não o abrandar quando se tem de trepar escadas, saltar passeios ou escalar ruas inclinadas. Tudo é feito em raides que muitas vezes nem 20 metros têm - culpa da lei do contentor ou do caixote. Em todos pára e vasculha por despojos alheios que possa aproveitar, um método, porém, que "não é o mais fácil para ganhar dinheiro".

João Paulo sabe-o, e quem partilha consigo as ruas - os que esperam nas esquinas e traficam droga à beira dos passeios, que "são capazes de fazer 200 euros por dia" - fazem questão de o lembrar quando lhe "chamam otário" por "andar todos os dias" atrás de sucata. Sinais da vida a castigar quem segue pelo caminho certo? "Não tenho dúvidas", conclui.

O filtro de João Paulo não apanha só sucata, e fica "parvo" quando encontra no lixo "roupa nova, ainda com a etiqueta". O desperdício dos outros espanta-o, e já recolheu tanto que foi obrigado a ir dividindo o espólio por sacos e mochilas várias. Não é esquisito e guarda tudo: calças, sapatos, telemóveis, brinquedos e presépios. Até camisolas com um tamanho maior que o seu. "Quando isso acontece", brinca, costuma "dizer que saiu a sorte grande". E foi preciso chegar à rua para a fortuna lhe dar a primeira fotografia do seu pai, falecido há "14 ou 15 anos". Um dia, em Alfama, num dos caixotes que lhe cortaram o caminho no passeio, encontrou uma revista "qualquer antiga de Almada". A curiosidade levou-o a folheá-la até encalhar na fotografia de uma equipa de futebol do Grupo Desportivo da Cova da Piedade, dos anos 50. Ao canto da imagem, o guarda-redes era o seu pai. Recortou a fotografia ao mesmo tempo que "lhe vieram as lágrimas aos olhos". Os homens choram mesmo.

Há dois anos descobriu que estava em risco de "ir parar à prisão". Já vivia na praia, na Costa da Caparica, "debaixo de um barco virado ao contrário", quando a polícia o foi buscar. O cunhado acusara-o de tentativa de homicídio em primeiro grau, depois de João Paulo se fartar "dos murros, pontapés e pistolas apontadas" com que era recebido em casa da irmã. Um dia acabou por esfaquear o cunhado no braço. O processo em tribunal deu-lhe a desculpa e o bilhete para atravessar o rio e refugiar-se em Lisboa, na rua. "Quando tiver de ir preso que me levem, não ando aí a roubar nada", sentenciou.

PARAR É MORRER Até lá vai continuar "a lutar por conseguir arranjar um espaço" onde "possa parar e dormir". Se hoje apanhasse uma cama "não dormia 24 horas", ficava lá "três ou quatro dias" e "só acordava para comer e ir à casa de banho". Diz que não sabe "quanto tempo vai aguentar", mas não quer desistir - como um sem-abrigo que vê deitado de tronco nu, descalço, sobre um banco à frente da esquadra de Santa Apolónia. "Isto é uma vergonha" diz, apontando para o exemplo de quem "se acomodou".

Também António Teixeira tem feito por não integrar este grupo. "Se não nos levantarmos ninguém nos vai puxar para cima", assegura, carregado com a experiência de quem passou já "15 anos na cadeia" e teve de "começar tudo de novo". De lá saiu há seis anos. Não voltou para a Damaia, Amadora, onde nasceu e cresceu, pois lá as pessoas "olham de lado" e não deixam apagar o rasto que teima em perseguir um ex-presidiário. Para o despistar, rumou a Lisboa. "Não acreditam que um gajo possa mudar", lamenta, com a tristeza de saber que, por culpa do Alzheimer, "já nem a sua mãe o conhece". Saído da prisão, tinha uma escolha a fazer: "Ao fim e ao cabo só sei trabalhar e roubar, e esta última eu não quis, nem quero, fazer." António optou pela primeira.

Chegou ao Bairro Alto, escolheu uma pensão e de lá nunca mais saiu. Bate a muitas portas e não pára de o fazer, mas há perguntas que se repetem e não as pode evitar. "Então há seis anos que não trabalha porquê? Não gosta?", é a reacção que recebe quando passam os olhos pelos cursos de Pastelaria e Informática que tirou durante o tempo passado na prisão. E a resposta que dá acaba por fechar essas portas. "Se digo que não trabalhei porque não quis, sou um calão, se disse que estive na prisão, é porque tive na prisão", revela. António "não deixa de tentar" e "só [quer] uma oportunidade". Mas o filme repetiu-se tantas vezes que hoje, com 54 anos, virou-se para o lixo por "não ter nada que fazer" e "precisar de dinheiro para pagar" os 300 euros pelo quarto onde dorme. Razão para "andar todos os dias" a espreitar dentro de caixotes, contentores e montes de lixo.

Às 6h está de pé. Bebe um café, lê o jornal e meia hora depois já está a circular, quando as ruas trocam a iluminação pública pelos primeiros raios de Sol do dia. Tal como Paulo, também António foca a mira na sucata e os números explicam a preferência. O ferro, diz, "é barato" e nem "lhe pega", mas "o quilo de cobre é quase cinco euros, o latão três e o alumínio chega aos dois euros". Tudo isto é para vender, e pelo meio vão aparecendo umas surpresas, como a bolsa que uma vez encontrou com 150 euros no seu interior. De resto são muitas as "calças, camisas e sapatos" que já aproveitou, isto "sem falar" dos relógios, telemóveis e GPS que enchem a sua colecção.

E ainda dizem "que o país está mal e não há dinheiro para nada". Da última vez que António ouviu esta queixa, conta, descobriu no mesmo dia "uns ténis novos" abandonados ao lado de um contentor. Com o tempo acaba por ser "sincero" e lá admite que "não vive" só do lixo, ao desvendar a sua "maior façanha" desde que saiu da prisão - ganhar a confiança das pessoas.

Com a ajuda do que recolhe no lixo e vende em sucateiras ou ferros-velhos, António junta "200 ou 300 euros" por mês também com as recompensas de "favores" que os vizinhos do Bairro Alto lhe vão pedido. Seja o dono de uma loja de vinhos da sua rua seja o proprietário da livraria ali perto, são várias "as encomendas" que leva a viajar. Tem e continua a ter "estas oportunidades" porque "nunca fez asneira", conclui. Afinal o que lhe "interessa roubar dez euros?" - "acabam num instante e depois vem aqui parar outra vez".

Ao Bairro Alto, onde já destapou vários tesouros que lhe deram a caçar. Na pensão guarda vários livros (de colectâneas de arte a lembranças de um Benfica campeão), roupas e quadros. Às tantas sobe à sua guarida para ir buscar um deles. É uma pintura religiosa, das que mais estima. Ao virar o quadro e espreitar a parte de trás tem de enxotar com os dedos "as putas das baratas" que por lá se escondiam. Palavrões não diz muitos e este usa-o para reforçar a vontade que tem de "sair dali" e "arranjar uma casa".

Mas a pensão que o alberga é a única que "não o mete na rua" se "não tiver dinheiro hoje", pois sabe que António "acaba sempre por pagar". Nem que ande "todas as manhãs" no lixo. Vergonha não tem. "Até parece que nunca me viram a mexer em caixotes", diz, tão despreocupado como o sorriso que solta logo a seguir.

A NETA QUE "OBRIGA" A IR AO LIXO Já Beta não sorri muito. Nem quando aparece minutos depois de António se lembrar "da senhora" que vê muitas vezes "de manhãzinha" nas ruas, também a passar o seu raio X pelo lixo. A faxina "começou no Verão". O seu ataque ao lixo abre às 6h30 e costuma prolongar-se até às 9h, quando tem de "levar a neta à escola", no Rato. Com este horário "não consegue arranjar um trabalho" e cumpre o seu papel de avó: está "presa à miúda" porque a sua mãe trabalha em Almada. E por isso aproveita as horas em que o sol ainda se está a espreguiçar para encontrar coisas que possa depois "ir vender a uma casa de penhores".

É com esta missão que Beta mergulha num monte de lixo, mal o vê a transbordar para cima da estrada no caminho entre o Bairro Alto e a Bica, onde reside. "Gosto de vasculhar", confessa, porque "só assim" consegue encontrar "anéis e fios de ouro". Com 63 anos está agachada entre roupa, sacos de plástico, esqueletos de televisões, tapetes e malas. A tarefa ocupa-lhe toda a concentração. Mal fala e são poucas as palavras que dá em troca pelas perguntas que o jornalista lhe vai atirando. As suas mãos inspeccionam os bolsos de todos os casacos e calças que descobre - foi assim que "há pouco tempo" encontrou "um alfinete de gravata" que lhe rendeu 40 euros.

Um complemento à sua pensão de 120 euros, que descreve antes como "a miséria de uma tutela de alimentos" que recebe graças aos 15 anos passados "com o primeiro companheiro". Entretanto já conta 21 anos passados com outro homem, que "não gosta nada" que Beta dedique os dias a passar o lixo à lupa. Apesar de até ele "já ter encontrado assim aparelhagens a funcionar", que hoje ainda estão na casa que partilham, na Bica. Após a morte da avó, Beta recebeu da câmara o direito a alugar a casa, a troco de uma renda de 40 euros.

Teve cinco filhos mas já perdeu dois "por causa da droga". Às duas filhas "já deu televisões encontradas" no que os outros consideram lixo. E de lá retirou também os aspiradores com que hoje limpa a sua casa.

Nunca conheceu António ou João Paulo, mas com eles partilha uma conclusão - "As pessoas deitam fora coisas muito boas". De resto a sua conversa só bate certo com a de António. E apenas num ponto: escapam à atenção da polícia, mas não aos olhares. "Vêem-me a andar mas não dizem nada", garante Beta a encolher os ombros. Porque haveriam de o fazer, pergunta, quando "há pessoas que começam" a catar o lixo das ruas "às 5h" e que "apanham coisas bem melhores"? António até lhes fala, diz "bom dia" e "boa tarde", e do outro lado "nunca disseram nada por fazer o que faz".

Já João Paulo diz que "o chateiam e chateiam". Basta ser visto com um saco às costas, curvado e carregado de sucata, para um carro da PSP parar ao seu lado. O hábito já moldou a sua reacção - interrompe a marcha, pega no saco e despeja tudo para o chão. "É a única forma de não arranjar chatices", garante. São estes episódios que devolvem as críticas às suas palavras e o levam a pensar "o que é que anda aqui a fazer". Isto quando "fazia tudo, mesmo tudo" para "ter um trabalho" - a pintar, garante, "há poucos melhores". No que João Paulo mais acredita é que como ele também António, Beta e "toda a gente" que depende do lixo "é discriminada por fazer isto". Não o consegue explicar, apenas sabe que "as pessoas que estão bem não gostam disto". E suspeita do motivo - "talvez porque nunca passaram por dificuldades".