22.11.13

Reforma do Estado: gato escondido

por Manuel Caldeira Cabral, professor na Universidade do Minho, e Manuel Pinho, ex-ministro da Economia e da Inovação, professor na Universidade Columbia, in Diário de Notícias

Manuel Caldeira Cabral e Manuel Pinho publicam hoje no Diário de Notícias o penúltimo artigo de uma série de cinco sobre a crise do euro e as transformações na economia global.

A"reforma do Estado" é como o Joker de um baralho de cartas, serve para tudo e não serve para nada. Um dia pretexto para impor mais recessão cortando transversalmente na despesa pública, outro dia agenda para cumprir o velho sonho de privatizar serviços públicos, hoje em dia rascunho do programa eleitoral do CDS.

É pena que assim seja, porque seria muito útil se a "reforma do Estado" consistisse numa programação plurianal da despesa pública (com metas quantificadas e um calendário de roll out) e uma agenda para melhorar o funcionamento das instituições. Se tal fosse o caso, estaríamos todos de acordo. O próximo Governo, seja ele quem vier a ser, devia comprometer-se a iniciar uma "reforma do Estado" séria com estas características e a envolver os parceiros sociais no processo.

Mas não é. É uma trapalhada inenarrável.

Levantam-se diversas questões em torno do mito da "reforma do Estado".

- Primeiro, há algo que justifique que cortar ainda mais a despesa pública, sobretudo a de natureza social, seja a grande prioridade?

- Segundo, a trajetória da dívida pública está controlada?

- Terceiro, há evidência de que o modelo neoliberal subjacente à "reforma do Estado" é o que melhores resultados dá em termos de desenvolvimento das economias?

A resposta a estas três questões é não, não e não. A "reforma do Estado" assenta numa série de ideias erradas e de preconceitos.

Desde 1950 a despesa pública foi menor em Portugal do que na Alemanha

O baixo nível de desenvolvimento de Portugal não é explicável por a despesa pública ser excessivamente elevada. Era bom que fosse, na medida em que estava encontrado o culpado, mas não é. Comparemos o que sucedeu desde 1950 em Portugal e em três países europeus que têm modelos sociais bastante diferentes, Alemanha, França e Áustria, e cujo rendimento por habitante é cerca do dobro de Portugal. De acordo com o mito da "reforma do Estado", Portugal deveria ter tido uma despesa pública francamente superior a estes três países durante os últimos sessenta anos.

Os números mostram que o mito choca com a realidade. A figura 1, com base em dados do FMI relativos a 1950-2010, mostra que à exceção de um curto período entre 1974 e 1977, a despesa pública (expressa em % do PIB) foi menor em Portugal do que na Alemanha, Áustria e Suécia. Se recuarmos a 1900, há um século atrás, a diferença ainda é maior, o que talvez explique o atraso estrutural português em áreas como, por exemplo, a educação. O período de cinco anos em que a despesa pública mais cresceu em Portugal foi 1989-1994. No período pós-adesão ao euro, a despesa pública subiu mais rapidamente em Portugal, porém vinha de um nível bastante inferior.

O passado é o passado. Como Portugal se situa presentemente? A figura 2, com base na mesma fonte, mostra que em 2013 a despesa pública em Portugal é inferior à média da zona euro. Bastante inferior aos países escandinavos e ligeiramente inferior à Itália e Holanda. Depois de décadas abaixo da Alemanha, está agora a um nível ligeiramente superior. E está acima do Reino Unido, Espanha e Irlanda.

Com base nestes dados é difícil, ou mesmo impossível, argumentar que o peso excessivo da despesa pública explica os problemas estruturais da economia portuguesa, tão-pouco os seus problemas de curto prazo. Repetimos que o que importa não é uma "reforma de Estado" casuística, tão-pouco um corte transversal da despesa pública, mas uma programação plurianual com metas quantificadas e uma agenda para melhorar o funcionamento das instituições. É inaceitável que o segredo de justiça seja violado sistematicamente de forma impune. Que Madoff esteja há muito a cumprir uma pena de 150 anos de prisão enquanto o julgamento dos responsáveis pelos maiores escândalos financeiros do último século ainda mal tenha começado. Não há progresso sem confiança nas instituições.

Mais recessão implica mais dívida publica

A economia mundial está frágil. Desde a crise do subprime, a dívida pública dos países da OCDE registou um aumento brutal e nalguns países atingiu níveis inimagináveis. O atual Governo pretende passar a ideia de que o aumento da dívida pública apenas teve lugar em Portugal, mas esta ideia não resiste à evidência.

A figura 2 mostra que a dívida pública aumentou em 26 p.p. na zona Euro e 33 p.p. nos Estados Unidos. Nos países do euro em crise, o aumento foi superior: 79 p.p. na Irlanda, 63 na Grécia, 54 em Espanha e 56 p.p. em Portugal.

Perante a subida da dívida pública americana de 73% do PIB em 2008 para 106% em 2013, Martin Wolf, o redator-chefe do Financial Times, publicou um artigo intitulado "As finanças públicas dos Estados Unidos estão em crise?" A sua resposta é sim... mas só desde que a economia não cresça. Na verdade, o Governo americano acredita que défices orçamentais mais elevados e aumento da dívida pública são o mal necessário para evitar a estagnação prolongada ou recessão.

E se os Estados Unidos fossem Portugal?

Se os Estados Unidos fossem Portugal, tinham a Alemanha, Comissão Europeia e BCE à perna porque adotaram políticas expansionistas e deixaram o défice orçamental e a dívida aumentar, uma vez que acreditam que tal vai criar o crescimento da economia necessário para colocar a dívida numa trajetória sustentável. A zona euro, liderada pela Alemanha, preconiza o contrário: políticas recessivas que agravam a situação no curto prazo, mas supostamente produzem uma inversão da trajetória no longo prazo.

Se os Estados Unidos tivessem adotado políticas recessivas cujo resultado fossem as taxas de crescimento negativas do PIB registadas em Portugal, a sua dívida pública seria igual à portuguesa (mesmo descontando o efeito induzido na receita fiscal devido à recessão). A sorte dos Estados Unidos é não fazerem parte da zona euro.

Portugal é um país solvente?

Paul de Grauwe visitou Portugal em 2010 e disse coisas que o governo de então não gostou, mas que, infelizmente, se verificaram. Na realidade, o voluntarismo dos políticos é insuficiente para alterar as leis da economia.

Numa visita recente, afirmou o seguinte: "Portugal tem tanta austeridade que a dívida se tornou insustentável e algo tem de ser feito. Não acho que consiga sair do problema hoje sem uma reestruturação da dívida. É difícil entender como pode o Governo magoar a população e sentir-se orgulhoso disso."

Portugal é um país solvente? É solvente se, e só se, as seguintes condições se cumprirem durante muitos anos. Primeiro, excedentes no saldo primário (sem juros) do Orçamento do Estado. Segundo, taxas de juros muito baixas. Terceiro, um forte crescimento do PIB durante anos a fio. A primeira condição seria mais fácil de atingir caso houvesse uma programação plurianual séria da despesa pública. A segunda depende do BCE. E a terceira depende de se acreditar, ou não, que uma economia que perdeu quase 10% da sua força de trabalho nos últimos dois anos e em que o investimento é 1/3 do que era em 2008 comece a crescer de forma sustentada a taxas muito mais elevadas do que no passado.

Como se vê, a política de empobrecimento é a maior ameaça à solvência do País. Se esta política de empobrecimento não mudar, Portugal ficará durante muitos anos preso numa armadilha em que as alternativas serão a estagnação, o repúdio da dívida ou a saída do euro.

Os casos de maior sucesso em termos de crescimento têm por base uma economia mista

Há quem acredite que o desenvolvimento de um país decorre exclusivamente das políticas destinadas a melhorar o funcionamento dos mercados. Trata-se da visão do chamado "consenso de Washington". Outros, acreditam que o desenvolvimento de um país decorre de uma estratégia cujo objetivo deve ser tirar partido das suas vantagens comparativas, em que é fundamental a articulação entre o Estado e as empresas, num modelo de economia mista. Ainda outros (já muito poucos), pensam que o melhor método de gestão da economia é através de um plano centralizado e de empresas estatais. No meio termo é que está a virtude.

Em termos de presença do Estado na economia, se olharmos sem cegueira ideológica para as experiências de maior sucesso nos últimos cinquenta anos (Alemanha, Coreia, Japão, China, etc.) verifica-se que o modelo dominante são economias mistas onde o Estado está presente na economia, seja como parceiro estratégico das empresas, seja mesmo enquanto acionista. No Japão, o MITI, o Minis-tério da Indústria, tem uma forte ligação aos keiretsu. Na Coreia, o sucesso assentou nos chaebol , grupos familiares com fortíssimas ligações ao Governo. Na China, as dez maiores empresas são diretamente controladas pelo Estado. Na Alemanha, os bancos criaram uma rede complexa de ligações com as empresas, seja como acionistas, seja como credores.

E nos Estados Unidos? Há leis que proíbem estrangeiros de investir um dólar que seja em sectores que o Estado português vendeu ao desbarato.

Desfazer os mitos

A solução para a crise não é empobrecimento, "reformas estruturais" ou "reforma do Estado", é um ajustamento mais gradual, políticas expansionistas nos países que não estão em crise, nomeadamente na Alemanha, uma distribuição dos custos por todos os corresponsáveis, uma reforma credível das instituições do euro, uma agenda para o desenvolvimento.