22.11.13

Os Estados Unidos têm razão

por Manuel Caldeira Cabral, professor da Universidade do Minho, e Manuel Pinho, ex-ministro da Economia e da Inovação, professor da Universidade Columbia, in Diário de Notícias

Manuel Caldeira Cabral e Manuel Pinho publicam esta semana no Diário de Notícias uma série de cinco artigos sobre a crise do euro e as transformações na economia global.

O processo de adesão ao euro e a sobrevalorização da taxa de câmbio quando Portugal deixou de ter moeda própria condicionaram a evolução da economia na década seguinte em termos de endividamento, desenvolvimento do sector dos bens não transacionáveis, fraco crescimento da produtividade, etc. O resultado está em linha com as leis da economia, não é uma surpresa.

A crise tem corresponsáveis, não é exclusivamente culpa de Portugal, trata-se de uma crise do euro nas suas várias vertentes: processo que levou à sua criação, regras e instituições disfuncionais, forma desastrada como a crise foi gerida e estratégia errada de resolução. De forma alguma pode ser resolvida apenas por Portugal.

Tem corresponsáveis, e todos os que para ela contribuíram devem participar na solução. Os portugueses já mostraram a sua capacidade de adaptação e em fazer sacrifícios. É fundamental definir claramente a fronteira que o país não está disposto a ultrapassar, em vez de pretender ser o melhor aluno da classe - que, aliás, não é -, criar uma agenda de desenvolvimento credível e fazer uma parceria com os outros países em crise de maneira a aumentar a margem negocial.

A crise do subprime teve efeitos devastadores nas economias avançadas, de tal maneira que nos Estados Unidos o PIB é apenas superior em 5% face a 2007, enquanto na zona euro ainda é inferior. O Tesouro americano e o FMI argumentam que tal se deve em larga medida à deficiente coordenação das políticas económicas num mundo interdependente e que a Alemanha devia seguir políticas mais expansionistas. Infelizmente, é preciso virem os americanos dizer as verdades à Alemanha.

Uma história trágica

Martin Wolf, redator-chefe do Financial Times, acaba de publicar um artigo intitulado "A Alemanha é um peso para o mundo" em que argumenta que a zona euro é grande demais como um todo para poder aspirar a crescer exclusivamente com base nas exportações e devia seguir uma política de estímulo à procura interna (rebalancing). Aliás, a zona euro tem o mesmo desafio do que a China, com a diferença que os líderes da nova potência mundial já compreenderam tão bem a importância do mercado interno que colocaram o seu desenvolvimento no topo das prioridades do 12.º Plano Quinquenal.

Manter as políticas atuais cria o risco "ou de armadilhar os países mais fracos numa situação de depressão semipermanente ou de conduzir ao fim da união monetária. Seria uma história trágica".

Não vivemos num mundo fechado e a Alemanha não pode pensar apenas em si própria. As suas políticas têm efeitos negativos na economia mundial, nos Estados Unidos, na generalidade da UE e, sobretudo, nos países em crise. É do seu próprio interesse adotar políticas expansionistas e liderar uma reforma credível das regras da zona euro.

O que seria da Alemanha se a sua moeda valesse dois dólares

Os dois países com maior excedente da balança de pagamentos são a China e a Alemanha mas, ao contrário do que se pensa, a Alemanha tem um excedente (seja medido em dólares ou em percentagem do PIB) maior do que a China. A Alemanha mantém excedentes da Balança de Transações Correntes superiores a 6% do PIB desde 2006, estando por isso em incumprimento da regra de desequilíbrios macroeconómicos do six pack. Em 2013, o excedente deve atingir os 7% do PIB. A Alemanha é competitiva porque o euro vale 1,34 dólares, mas deixaria de o ser se o marco valesse dois dólares.

Os holofotes têm estado focados na China, mas o maior problema é a Alemanha. O crescimento da China não é apenas bom para as centenas de milhões de chineses que saíram da pobreza, também é bom para a economia mundial. A China contribui com um terço para o crescimento da economia mundial, enquanto a Europa e os Estados Unidos nem com um décimo contribuem juntos!

Os seis pecados da Alemanha

E a Alemanha? Por razões que a razão desconhece, o governo alemão tem vivido obcecado com as finanças públicas e a ideia de travar a procura interna, o que prejudica os seus parceiros comerciais. Criou o discurso de que é um caso exemplar de reformas bem-sucedidas e de gestão conservadora das finanças públicas, ao contrário dos países em crise que teriam aproveitado a criação do euro para passar a viver acima das suas possibilidades e merecem um castigo.

A realidade é totalmente diferente.

- Primeiro, a Alemanha foi grande beneficiária da criação do euro, que lhe permitiu ter uma taxa de câmbio mais baixa do que se tivesse moeda própria. Se a Alemanha ainda tivesse o marco como moeda, a sua taxa de câmbio seria muito mais alta e as exportações menores. O que seria das PME alemãs vocacionadas para a exportação, ou de grandes empresas como a Siemens e a Volkswagen sem o euro?

- Segundo, a Alemanha é a primeira a criticar um país que tenha um défice orçamental de 3,5% do PIB, em vez de 3%, mas fechou os olhos, talvez por razões de conveniência, a que os países agora em dificuldade aderissem ao euro a uma taxa totalmente errada.

- Terceiro, a arquitetura disfuncional do euro é em larga medida responsabilidade da Alemanha, que nunca aceitou que a criação de uma união monetária na Europa respeitasse os princípios básicos para o bom funcionamento de uma união monetária (voltaremos a este assunto).

- Quarto, a Alemanha não aceita que beneficiou da abertura da Europa a leste e do aparecimento da China como grande player mundial porque, dado o seu padrão de especialização, aumentou as exportações de máquinas-ferramentas, bens de consumo duradouro, etc., mas foi um choque negativo para os países com um padrão de especialização diferente.

- Quinto, a Alemanha e a Comissão Europeia são grandes responsáveis pela estratégia errada de gestão e resolução da crise do euro. Durante a crise, deixaram correr a ideia de que alguns países poderiam ser forçados a abandonar o euro, o que, evidentemente, agravou o pânico nos mercados. Face à crise, impuseram uma estratégia de resolução exclusivamente com base em medidas recessivas, o que tem vindo a ser duramente criticado pela maioria dos economistas. Mesmo o FMI já reconheceu que as medidas de ajustamento dos programas da troika têm um efeito recessivo muito superior ao esperado.

- Sexto, apesar de ter um excedente da balança de pagamentos maior do que a China, a Alemanha recusa-se obstinadamente a expandir a sua economia.

O que se pede à Alemanha?

Por este conjunto de razões, a crítica à Alemanha vai muito para além da feita pelos Estados Unidos. O que os verdadeiros amigos da Alemanha lhe pedem é muito simples. Não pensar apenas nos seus interesses. Liderar uma reformulação das regras e instituições do euro. Adotar políticas orçamentais prudentes, mas contracíclicas.

A Alemanha parece não ter percebido que é quem tem mais a perder se o euro acabar. Os países em crise estão desunidos (o que importa a cada um é tentar provar que é o melhor aluno da classe) e internamente estão totalmente fragmentados (a culpa é sempre do governo em funções). Esta situação é a que mais convém aos interesses de curto prazo da Alemanha e aos credores, mas não é a que melhor serve os interesses nacionais e os da Europa. The time is always right to do what is right.