por Manuel Caldeira Cabral, professor na Universidade do Minho, e Manuel Pinho, Ex-ministro da Economia e da Inovação, professor na Universidade Columbia, in Diário de Notícias
Manuel Caldeira Cabral e Manuel Pinho publicam hoje no Diário de Notícias o último artigo de uma série de cinco sobre a crise do euro e as transformações na economia global.
A adesão à moeda única com uma taxa de câmbio fortemente sobrevalorizada e a subsequente valorização do euro e queda das taxas de juro colocou a economia portuguesa numa trajetória de aumento do endividamento externo, desenvolvimento centrado no sector dos bens não transacionáveis (com os fracos resultados expectáveis ao nível da produtividade) e fraco crescimento da economia. A política orçamental podia e devia ter sido gerida com maior rigor, porém seria sempre insuficiente para corrigir este conjunto de desequilíbrios.
As regras de funcionamento e a dinâmica de uma união monetária são em larga medida ditadas pela economia mais forte. O comportamento da Alemanha não tem sido, a vários níveis, o que seria de esperar de um país que lidera uma das três maiores regiões económicas do mundo.
Portugal podia ter tentado um ajustamento mais suave como, por exemplo, a Espanha. Porém, a dinâmica política interna precipitou um pedido de ajuda externa e, de acordo com a retórica do Governo, a vontade de ir além da troika.
A política económica do Governo tem por base uma série de mitos.
O mundo está a mudar
Depois de os Estados Unidos e a Europa terem dominado a economia mundial durante quase dois séculos, a China será a maior economia do mundo até final da década .
Vivemos num mundo a três velocidades em que a China continua a registar um forte crescimento, os Estados Unidos crescem a taxas mais baixas do que antes da crise do subprime e a Europa oscila entre a estagnação e a recessão.
China
O rendimento por habitante na China ainda é cerca de 1/5 do valor nos Estados Unidos e a questão que se lhe coloca é manter elevadas taxas de crescimento no médio prazo. Até agora, o crescimento teve por base o investimento e as exportações. A liderança chinesa está consciente da necessidade de um rebalancing do modelo de crescimento de forma a dar mais importância ao sector dos serviços e ao consumo e de dar prioridade ao desenvolvimento de indústrias com forte componente tecnológica.
Se a China fizesse parte da Europa não poderia desenvolver o seu modelo de crescimento inovador com base numa economia mista e numa política industrial proativa, teria de seguir a cartilha das "reformas estruturais" e da "reforma do Estado", que são o pensamento dominante na Europa.
Estados Unidos
Os Estados Unidos têm um rendimento por habitante cerca de 20% superior à Europa , relativamente à qual têm quatro vantagens.
- Primeiro, são um país unido;
- Segundo, têm uma estrutura demográfica melhor;
- Terceiro, têm recursos naturais abundantes;
- Quarto, têm o melhor sistema de inovação e de ensino superior do mundo.
Em 2013, houve 11 galardoados com o Nobel na área das ciências e nove deles ensinam nos Estados Unidos, apenas um ensina num país da Zona Euro. Na classificação da ARWU, das melhores universidades do mundo, a melhor universidade da zona euro aparece em... 37.º lugar.
O PIB americano em 2013 apenas está acima 5% do nível anterior à crise do subprime e tal apenas foi possível devido a uma política monetária superagressiva e uma política orçamental fortemente expansionista.
Se os Estados Unidos fizessem parte da zona euro arriscavam-se a ficar sujeitos a um programa da troika.
Europa
Quem visita Pequim fica impressionado por a maioria dos bens de equipamento e dos produtos de consumo (Airbus, centrais nucleares, automóveis, produtos de luxo, etc.) serem europeus. De americano há sobretudo empresas de consultadoria, de serviços e... lojas McDonald"s e Kentucky Fried Chicken.
O grande problema da Europa não é a falta de competitividade. É estar dividida, adotar políticas que travam a procura interna e ter instituições que estão a agravar os problemas, em vez de os resolver. Não promover adequadamente os fatores de competitividade e viver prisioneira de mitos.
Uma zona monetária disfuncional obcecada em travar a procura interna
A zona euro não funciona, nem funcionará, caso não mude, porque não respeita os três princípios básicos para o bom funcionamento de uma união monetária:
- Um banco central responsável por fornecer ao sistema liquidez de forma incondicional, realidade para a qual o BCE acordou tarde e a más horas.
- Um orçamento federal com um papel estabilizador, como sucede nos Estados Unidos.
- Mutualizar a dívida pública dos países da zona euro, deixando de haver dívida de cada um dos participantes.
A Europa é competitiva, tem um excedente na balança, e empresas industriais líderes mundiais em vários sectores. Uma população com qualificações semelhantes às dos Estados Unidos. Menor défice orçamental. Menos dívida pública. O problema da Europa é político, não é económico.
Importância do crescimento da economia
A questão sobre acesso direto aos mercados/ programa cautelar/novo programa com a troika é importante, porém trata-se apenas do muito curto prazo.. Olhando para a frente, as duas questões que se colocam são:
- Portugal é solvente?
- Qual é o crescimento potencial da economia?
As duas questões estão interligadas. Portugal tem uma dívida pública de 130% do PIB e é solvente se, e só se, cumprir determinadas condições, nomeadamente capacidade em manter um excedente orçamental primário, taxas de juros baixas e crescimento saudável da economia. Com baixo crescimento , Portugal não terá capacidade em pagar a dívida, com um crescimento saudável da economia, não é certo que o consiga, porém a probabilidade é maior.
Espanha, Irlanda, Grécia e Portugal
A Irlanda optou pelo acesso direto aos mercados, prescindindo da possibilidade de um programa cautelar. A Espanha deve estar perto de se emancipar do apoio da troika. É uma vergonha se Portugal ficar aquém da Irlanda e da Espanha.
A diferença entre as taxas de juro a dez anos em Portugal, na Irlanda e em Espanha mostram que o prémio de risco de Portugal é muito maior.
Olhando para a tabela 1 abaixo, verifica-se que a Irlanda tem uma dívida pública e uma taxa de desemprego semelhante a Portugal e um défice orçamental maior. A Espanha tem um défice orçamental maior, muito maior desemprego e uma dívida pública inferior. A Grécia está pior em todos os aspetos. Em termos de balança de pagamentos, todos os países estão numa posição semelhante. Se houve um milagre em Portugal, como Governo gosta de dizer, houve um milagre igual na Irlanda, Espanha e Grécia. Ou seja, não houve milagre nenhum.
Portugal está melhor do que a Espanha e a Irlanda, mas o crescimento potencial da economia é, como vimos, muito importante, e a tabela 2 abaixo mostra uma realidade diferente.
Estes números não são bons. O stock de capital por trabalhador em Portugal é quase metade da Grécia, menos de metade da Espanha e quase 1/3 da Irlanda. A percentagem de adultos ativos com 12 anos de escolaridade (o antigo curso liceal) é quase metade da Espanha e Grécia, sendo a diferença para a Irlanda abissal. Em Portugal, trabalhadores com metade das qualificações têm metade de stock de capital (máquinas, ferramentas, etc.) do que na Grécia e em Espanha. Se a isto juntarmos que nos últimos dois anos emigrou para o estrangeiro o equivalente a 5% da população ativa, incluindo grande número de jovens qualificados, e o envelhecimento rápido da população, então os números são muito preocupantes.
O peso das exportações no PIB dos quatro países é totalmente diferente. Na Irlanda, é de mais de 100%, enquanto nos três restantes é quase 1/3. A Irlanda pode almejar sair da crise através de um crescimento puxado apenas pelas exportações. Para isso basta que registe um crescimento razoável das exportações, pois o seu peso permite que isso arraste o crescimento do PIB. O mesmo não sucede nos restantes países, isto apesar de o sector exportador português ser muito diferente, moderno e tecnologicamente avançado do que há dez anos. Para que a base exportadora possa puxar o crescimento de Portugal é preciso um esforço muito maior (porque é à partida 2,7 vezes mais pequena) e são necessários novos investimentos de aumento de capacidade.
Diferença entre teoria e prática segundo Einstein...
Como disse Einstein, em teoria a teoria e a prática são iguais, mas na prática são diferentes.
Em teoria, Portugal pode ultrapassar a crise se adotar uma postura de controlo rigoroso da despesa com base numa programação plurianual, se flexibilizar as metas orçamentais ao mesmo tempo que a Alemanha estimule a sua procura interna, se as regras do euro evoluírem, nem que seja gradualmente, no sentido positivo, se a Europa compreender a vantagem de um plano Marshall para Portugal desenvolver os sectores em que tem uma vantagem competitiva, se a requalificação dos adultos e a educação dos jovens tornar a ser a ser um objetivo prioritário, se for possível estancar a hemorragia de jovens a emigrarem para o estrangeiro, se não houver uma surpresa negativa no sistema bancário, se for dada importância à manutenção da coesão social recuando em várias medidas extremas que já foram tomadas, se os agentes políticos e sociais se sentarem à mesa para discutirem estas questões sem dogmas, se tudo isto acontecer, então em teoria é possível.
O problema é a prática.