por Manuel Caldeira Cabral, professor na Universidade do Minho e Manuel Pinho, ex-ministro da Economia e da Inovação, professor na Universidade de Columbia, in Diário de Notícias
Manuel Caldeira Cabral e Manuel Pinho começam hoje a publicar no Diário de Notícias uma série de cinco artigos sobre a crise do euro e as transformações na economia global.
Há na Europa um país onde apenas um terço das pessoas com mais de 25 anos completaram o antigo liceu, quando nos outros é, em média, mais de dois terços. O stock de capital é metade do registado na média da zona euro. A desigualdade é grande e está a aumentar. Nesse país, os responsáveis pelas maiores falências bancárias do último século aguardam tranquilamente por julgamento há anos.
Naturalmente, esse país devia colocar acima de tudo a educação dos jovens e a requalificação da população ativa; o apoio aos mais desfavorecidos; o investimento modernizador com base numa estratégia para tirar partido das suas vantagens comparativas; melhorar o funcionamento do sistema de justiça. É uma questão de bom senso.
Mas não é o caso. Os jovens qualificados foram aconselhados a emigrar para o estrangeiro. O investimento baixou 38% em cinco anos. Cortou-se nas pensões de viuvez, mas baixaram os impostos das grandes empresas.
Esse país é Portugal.
Estado da situação
O PIB português está sensivelmente ao nível de 2000. A dívida pública em 130% do PIB e a taxa de desemprego acima de 16%. As taxas de juro de longo prazo mantêm-se em 6% apesar das ajudas do BCE. As contas externas melhoraram , porém não há razão para euforia porque a trajetória é igual à da Espanha e Grécia e resulta de uma brutal compressão da despesa.
As desigualdades aumentaram e o confisco das pensões fez que cada vez menos portugueses acreditem no Estado. A reforma da Segurança Social do anterior governo era considerada exemplar pela OCDE, porém nenhum português sabe com que reforma pode contar, o que não surpreende porque a Segurança Social assumiu obrigações com trabalhadores que anteriormente tinham um regime próprio, o desemprego subiu em flecha e o crescimento da economia caiu a pique.
O desenvolvimento do País requer mais investimento, mais qualificações, melhores instituições e sensibilidade social. É importante recuar ao momento em que Portugal aderiu ao euro porque um diagnóstico errado da crise conduz a um tratamento errado que pode matar o doente.
Não é o euro, é a forma como Portugal aderiu ao euro
Criou-se a ideia falsa de que Portugal é um país que estava muito bem e, de repente, "passou a viver acima das suas possibilidades depois de aderir ao euro". Portanto, os portugueses merecem ser castigados, aceitar passivamente o empobrecimento, aplaudir a perda de regalias sociais e encorajar a emigração para o estrangeiro dos jovens com elevadas qualificações. Não devem.
A causa da crise é diferente. Para a explicar imagine-se dois cenários distintos à partida, quando Portugal aderiu ao euro:
- A taxa de câmbio estava equilibrada e a política monetária (taxas de juros e taxa de câmbio do euro) transmitiu os sinais certos.
- A taxa de câmbio estava fortemente sobrevalorizada e os estímulos transmitidos pela política cambial e monetária foram no sentido errado.
No primeiro cenário, a crise não teria corresponsáveis; corresponde a um automóvel que estava num plano horizontal e o condutor teria escolhido entrar num plano inclinado, acelerar e assobiar para o lado.
Em contraste, no segundo teria poucas, ou nenhumas, possibilidades de escapar a uma crise; é como um automóvel que já estivesse num plano inclinado (forte excesso de procura), o condutor deixasse de poder usar os travões (política monetária e cambial) e, para cúmulo, ainda recebeu um empurrão (apreciação do euro e queda das taxas de juro).
O segundo cenário corresponde ao caso de Portugal.
A figura sobre o saldo da balança de transações correntes de Portugal, Grécia, Espanha e Irlanda desde 1995 e mostra o seguinte:
- Nos anos que precederam a criação do ruro, pode ver-se que Portugal, Espanha e Grécia registavam défices da balança de transações correntes (BTC) cada vez maiores. O caso da Irlanda é diferente, na medida em que o saldo piorou, mas ainda se manteve relativamente próximo do equilíbrio.
- Depois da adesão ao euro, os défices repetiram-se, e nalguns casos agravaram-se. A contrapartida desta situação foi um aumento exponencial do endividamento externo para financiar défices sucessivos da BTC.
Foi como um automóvel que já estivesse num plano inclinado (défices externos crescentes e cada vez maior necessidade de usar financiamento externo), o condutor perdesse os travões (desvalorizar a moeda, subir as taxas de juros) e ainda por cima recebesse um empurrão (valorização do euro).
Portugal aderiu ao euro com uma taxa de câmbio brutalmente sobrevalorizada
Não é matéria de debate, é uma mera constatação, Portugal ter aderido ao ruro a uma taxa sobrevalorizada. Contudo, criou-se a ideia de que depois de aderir ao euro os países podiam deixar de se preocupar com o saldo da balança de pagamentos e quem na altura dissesse o contrário era tomado por um original. Esta visão errada esquecia que a contrapartida de dédices sucessivos são um aumento insustentável do endividamento externo.
Para agravar a situação, quando Portugal abdicou da sua soberania monetária o euro valorizou-se (precisaria de se ter desvalorizado) e as taxas de juros baixaram (precisariam de ter subido).
A política orçamental
As regras da zona euro relativamente ao limite dos défices orçamentais nunca seriam suficientes para corrigir o desalinhamento das taxas de câmbio ao momento da adesão ao euro, tão-pouco para compensar a falta de coordenação ao nível da política monetária e cambial. Até à crise, a Irlanda e a Espanha registaram melhores resultados nas finanças públicas do que a Alemanha (ver figura abaixo), mas que tal foi insuficiente para absorver o excesso de procura com origem no sector privado.
Agentes económicos responderam a incentivos
Muitos economistas e políticos criticam as políticas que supostamente promoveram o sector dos bens não transacionáveis, em detrimento dos bens transacionáveis. Esquecem que Portugal não é uma economia do tipo soviético em que o Estado decide em que sectores se deve investir, é uma economia em que os agentes económicos respondem a incentivos. Qual foi o sinal dado às empresas? Invistam no sector dos bens não transacionáveis porque é nele que podem ter maiores lucros em virtude de a taxa de câmbio estar sobrevalorizada. O desenvolvimento do sector dos bens não transacionáveis não é uma surpresa, é resultado das leis da economia.
Quatro choques externos negativos agravaram a situação
Como se tal problema não bastasse, durante a década passada Portugal sofreu não um, mas quatro choques externos negativos.
- Primeiro, a queda das remessas de emigrantes.
- Segundo, a abertura da Europa a países do Leste, mais próximos do Centro da Europa e com mão de obra mais qualificada e barata.
- Terceiro, a adesão da China à OMC.
- Quarto, a subida do preço da energia.
Este conjunto de choques agravou, em vez de corrigir, a situação inicial.
Os choques assimétricos deveriam ter sido compensados por transferências de maneira a permitir o ajustamento necessário.
A realidade traduz as leis da economia
Portugal abdicou de ter moeda própria. As taxas de juros baixaram. O euro valorizou-se face ao dólar. Criou-se a ilusão de que investir em Portugal tinha o mesmo risco do que investir na Alemanha. A banca internacional avaliou mal o risco.
Se tal não tivesse acontecido significaria que as leis da economia não servem para nada.
A crise tem corresponsáveis
Quando Portugal entrou para o euro já tinha uma taxa de câmbio fortemente sobrevalorizada e a culpa de tal também é de todos os que começaram por fechar os olhos a esta situação porque tal lhes convinha e, posteriormente, preferiram ocupar o tempo a discutir em infindáveis reuniões em Bruxelas se o défice orçamental era de 2,75% do PIB ou de 3,25% em vez de encarar a realidade. Dos que passaram anos a financiar o Estado e os bancos portugueses como se fossem alemães. E dos que, no BCE, perante uma situação de desequilíbrio nas balanças de transações correntes de vários países do Sul da Europa, insistiram em manter uma política monetária que fez o euro valorizar de 0,8 dólares para 1,6, entre 2000 e 2008. Só com aumentos de produtividade superiores aos dos EUA em quase 10% ao ano, ou com descidas de salários correspondentes, teria sido possível manter a competitividade internacional nestas condições.
Uma vez que todos colaboraram no problema, todos devem participar na solução. É errado passar o tempo tentando procurar exclusivamente um responsável interno por uma crise que é europeia. Tal apenas serve o interesse dos corresponsáveis no exterior e contribui para adiar as soluções comuns que temos de encontrar a nível europeu.