22.11.13

O empobrecimento não trouxe crescimento nem consolidação

por Manuel Caldeira Cabral, professor na Universidade do Minho, e Manuel Pinho, Ex-ministro da Economia e da Inovação, professor na Universidade de Columbia, in Diário de Notícias

O empobrecimento não trouxe crescimento nem consolidação
Manuel Caldeira Cabral e Manuel Pinho publicam hoje no Diário de Notícias o terceiro artigo de uma série de cinco sobre a crise do euro e as transformações na economia global.

Quando o atual Governo entrou em funções, a visão dominante sobre a crise portuguesa seguia muito de perto o discurso de explicação da crise grega. De acordo com esta visão, a aceleração do crescimento da despesa pública durante a última década era responsável pela perda de competitividade da economia, endividamento excessivo e baixo crescimento do País. O novo governo cedo manifestou a intenção de "ir além da troika": medidas mais duras para um ajustamento em menos tempo.

No caso português, esta visão da crise chocava com os factos. A despesa pública não acelerou na última década. Entre 2001 e 2011, a taxa de crescimento da despesa pública foi metade da verificada na década anterior e foi até a mais baixa desde a segunda mundial. O que se verificou, depois de 2000, foi antes uma diminuição do crescimento do PIB nos países ocidentais, que devido à nossa especialização foi mais marcada em Portugal. Isto sugere que o abrandamento resultou de causas externas, como a emergência da China, ou o aumento do preço das matérias-primas e a crise financeira, e não de causas internas.

A diminuição do crescimento foi a causa dos problemas de contas públicas e não o contrário.

O atual Governo ignorou este facto e alinhou a sua estratégia com a visão de que a única questão a resolver era o problema de contas públicas. A diminuição da despesa pública devia corrigir o défice público e garantir a redução da despesa interna e da procura de trabalho que, pelo aumento do desemprego, conduziria à diminuição dos salários. A redução da procura interna substituiria a desvalorização, contribuindo para reduzir as importações e para aumentar a competitividade, pela redução dos salários, promovendo uma aceleração das exportações.

A tese do empobrecimento

Esta era a tese do empobrecimento. Só empobrecendo e reduzindo salários poderíamos voltar ao crescimento. A austeridade resolveria todos os desequilíbrios e promoveria a retoma do crescimento.

A única coisa que podia falhar, nesta ótica, assumida pela troika e Governo, era o mercado de trabalho. A rigidez do mercado laboral podia atrasar a descida dos salários e a redução do custos unitários de trabalho (CUT). Daí a prioridade dada à reforma da Lei Laboral e à liberalização dos despedimentos

A realidade acompanhou a teoria na redução da procura interna, gerou aumento do desemprego e descida dos salários e CUT. O ajustamento no mercado laboral foi forte, mesmo antes da nova leis laboral. Os custos unitários desceram fortemente ao longo de 2012 e2013 (ver gráfico).

O que falhou?

O que falhou foi o passo seguinte. A redução dos custos unitários não foi acompanhada pelo aumento da taxa de crescimento das exportações. Pelo contrário, a redução dos CUT portugueses face aos dos países da UE foi acompanhada por um abrandamento do crescimento das exportações (de 13,5%, em 2010 e 2011, para 3,9%, em 2012 e 2013). Parte deste abrandamento pode ser atribuído à crise europeia. No entanto, o crescimento das exportações extracomunitárias caiu de 19% ao ano (entre 2010 e 2012) para 7%, nos primeiros nove meses de 2013. Isto dificilmente pode ser explicado pela crise europeia.

Para além de mais fraco, o crescimento das exportações em 2012 e 2013 foi sustentado por sectores de capital intensivo, em que os custos laborais não são significativos, como os produtos refinados de petróleo ou o papel, expansão que resulta de grandes investimentos promovidos pelo anterior governo. Excluindo as saídas de produtos petrolíferos, as exportações de bens crescem menos de 2%.

A realidade mostra que a teoria do empobrecimento não resultou. A correção do défice externo aconteceu, mas foi baseada crescentemente mais na queda da procura interna e das importações do que na expansão das exportações. O resultado mede-se em queda do PIB e aumento do desemprego. A melhoria do saldo da BTC não traduz um processo virtuoso apenas nacional. Aconteceu em todos os outros países na mesma situação. Entre 2007 e 2013 a redução do défice externo foi até maior na Grécia e em Espanha do que em Portugal.

O nível de recessão imposto à economia acabou por minar os esforços de consolidação orçamental. A redução do défice em 2012 e 2013 juntos foi metade da verificada em 2011. A economia caiu muito e o défice pouco. O empobrecimento da base fiscal assim o impôs. Apesar dos sacrifícios exigidos, o crescimento do rácio de endividamento não abrandou, puxado tanto pelo aumento da dívida como pela baixa do PIB.

A evolução dos últimos dois anos e meio salienta que o crescimento das exportações, o aumento da competitividade e o crescimento do PIB dependem hoje de fatores muito mais complexos do que apenas os custos salariais. O simplismo da tese do empobrecimento tem o seu encanto, mas sem investimento as exportações não podem crescer. O investimento interno está a cair há cinco anos e a baixa de salários não fez o IDE afluir a Portugal, apesar dos apoios do Estado e das isenções fiscais dadas aos grandes projetos.

Hipotecar o futuro

A linha argumentativa da troika e do actual Governo era simples. O País estava a gastar acima do que produzia. Algo que um país que está a gastar acima do que produz não pode fazer é produzir menos.

Não há outra alternativa, foi dito vezes sem conta, pelos que defendiam que a austeridade era o melhor caminho para voltar a colocar rapidamente a economia a crescer. Portugal está hoje a produzir ao nível do que produzia no início do século.

O mais grave é que não se trata apenas de um efeito temporário. O ajustamento seguido está a causar uma perda de capacidade produtiva. O País não está apenas a produzir menos num contexto de recessão. Nestes dois anos Portugal viu descer o seu PIB potencial. Como é que isso aconteceu? Portugal perdeu mão de obra, perdeu capital e perdeu confiança nas instituições.

Os modelos de crescimento consideram sempre o stock de capital e de mão de obra como a base em que assenta o crescimento, a que se juntam as qualificações, tecnologia e qualidade das instituições como fatores potenciadores.

A base produtiva encolheu

Nos últimos dois anos a base produtiva encolheu. Encolheu pela saída de mão de obra, de uma forma que já não era vista desde 1974. Encolheu porque, pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, o País registou uma redução do seu stock líquido de capital..

Nos últimos dois anos o stock de capital de Portugal caiu mais de dez mil milhões de euros e, de acordo com os dados do Eurostat, deverá continuar a cair em 2014 e 2015. Nas anteriores crises Portugal teve reduções temporárias do nível de investimento, mas nunca foram a um nível que implicasse uma redução do stock de capital da economia.

Sejamos claros. Portugal tem pouco capital. Esse é um dos nossos atrasos. O stock de capital por trabalhador de Portugal é cerca de metade do da UE15 e isso reflete-se na produtividade do País. Nos últimos quarenta anos aproximámo-nos da média europeia, subindo de 32%, em 1974, para 40%, em 1990, e 52% em 2010. Hoje, com o investimento a 56% do nível de 2001, estamos a andar para trás e a reduzir fortemente a capacidade produtiva da economia. Pela primeira vez, Portugal teve uma década (2003-13) em que investiu menos do que na década anterior. E isto é verdade tanto para o investimento público como privado. Ambos caíram quase 40% desde 2008.

Para além de capital, Portugal também está a perder força de trabalho. Mais de 5% da força de trabalho saiu do País. Num país com baixíssimas qualificações, o fluxo brutal de emigração de jovens com elevadas qualificações para o estrangeiro tem de ser olhado com enorme preocupação. A esta perda junta-se a diminuição das entradas para o ensino superior. É uma redução de capital humano brutal.

A retoma vai ser feita sem estes recursos, a partir de um patamar mais baixo e com pouco carburante.

É mais difícil medir o efeito do desinvestimento na ciência e inovação, ou a perda de confiança nas instituições nacionais. Mas estes estão a acontecer e vão cobrar um preço muito caro às gerações futuras. É preciso alterar as prioridades e perceber que só uma retoma sustentada pode permitir consolidar as contas públicas e estabilizar o endividamento. E que quanto mais tarde esta começar, mais baixo será o nível que o País terá como base para o crescimento futuro.

O ajustamento seguido em Portugal está a ser desastroso. Não resolveu o problema do défice nem da dívida pública. E não conseguiu relançar o crescimento com a sua estratégia simplista de empobrecimento, pensada para um país que Portugal felizmente já não é nem pode ser. Afundar a economia não pode ser parte da solução, pois só agrava o problema.