12.11.13

O SNS em 2014. Como vai ser e o que deve mudar

Por Marta F. Reis, in iOnline

A marcar a última semana para apresentação de propostas ao OE, o i desafiou seis vozes do SNS a contribuir
O que esperar do próximo ano com a proposta do Orçamento, que receios e desafios há no terrreno e quais são as perspectivas face ao futuro do SNS, foram as questões lançadas.

António Pimenta Marinho, médico de família

A cada novo Orçamento do Estado (OE), o desencanto mantém-se. De forma cíclica, passamos do apoio da administração, do empenho, entusiasmo e reconhecimento público dos Cuidados de Saúde Primários, do estímulo às iniciativas dos profissionais e do trabalho participado, discutido e envolvendo os profissionais, os cidadãos e as suas organizações, para a falta de investimento nas condições de trabalho, para os Grupos de Trabalho sem resultados concretos no terreno, para a desmotivação e para o desânimo.

Passam os anos, e não obstante dizer-se que se quer fazer a "adaptação da rede da oferta de cuidados de saúde à dinâmica e ao perfil da procura", continua por se concluir a requalificação dos Serviço de Atendimento Permanente (SAP) e a consequente afectação dessas horas aos utentes sem médico, assim como não se promove a transição de Unidades de Saúde Familiar do Modelo A para B ou não se conclui a reestruturação dos Centros de Saúde, dotando-os de mais autonomia. Com o novo OE 2014, os cidadãos vão ter ainda mais dificuldades no acesso aos cuidados de saúde, vão aumentar as listas de espera, agravadas com mais demora em algumas áreas e vão aumentar as dificuldades com o desmantelamento de algumas Unidades.

Com este Orçamento do Estado vamos ter os profissionais cada vez mais desmotivados. Ao longo de décadas empenharam-se e deram o seu melhor contributo para a construção de um SNS que se quis de qualidade e universal. Os caminhos que têm vindo a ser tomados apontam para uma completa inversão destes valores, ao ponto de, caso não haja uma inversão séria de políticas, podermos ter, a prazo, um sistema que até poderá conservar a sigla que conquistou o respeito dos portugueses - SNS - mas será apenas uma caricatura desqualificada e destinada aos que não conseguem acompanhar uma tristemente célebre máxima segundo a qual "quem quer saúde paga-a". Está bom de ver o que acontecerá a quem não tiver dinheiro, tanto mais que os exemplos abundam por esse mundo fora.

No terreno, o que vemos é uma falta de estratégia clara e uma agenda transparente para a Saúde.

Com este OE, agravam-se as incertezas quanto ao futuro, e não se cuida do envolvimento efectivo dos profissionais, que tenderão, mesmo entre os médicos, a engrossar cada vez mais os números da emigração.

Propostas

- A colocação dos especialistas de Medicina Geral e Familiar, logo após o exame final de especialidade, com base nesta nota final, acabando com a actual prova adicional que só atrasa a sua vinculação e gasta recursos necessários ao SNS;

- A vinculação aos serviços dos contratados que trabalham nas Unidades de Saúde Familiar.

- A reinscrição de todos os utentes, à excepção dos que têm cartão de cidadão e já foram validados, para de uma vez por todas sabermos quantos são os inscritos no SNS. A última medida foi a de passar a "adormecidos" os utentes que não utilizaram os serviços nos últimos três anos mas mesmo assim temos mais inscritos que os dados do Censos 2011. Podem continuar a existir duplas inscrições.

Marta Temido, Presidente da Associação Portuguesa de Adm. Hospitalares

Em 2014, como nos últimos quatro anos consecutivos, o SNS vai ser obrigado a acomodar um novo corte de dotação orçamental. Afirmar a nossa insatisfação com esta realidade traduz lucidez. Mas não basta. Precisamos de ser capazes de modificar a realidade; e as políticas sociais são um campo de acção privilegiado para o fazer. Como vai ser 2014 no SNS? Duro, como em toda a sociedade portuguesa.

O maior receio é a perda de qualidade. Perda de qualidade medida através de listas e tempos de espera, que crescem para o acesso a consultas e cirurgias; perda de qualidade medida pela exaustão dos profissionais chamados a tarefas mais prolongadas e exigentes; perda de qualidade medida pela incapacidade de acompanhar a inovação terapêutica socialmente relevante.

O maior desafio é fácil de enunciar: conseguir manter os níveis de desempenho com muito menos recursos. E o papel fundamental dos gestores, que não podem enjeitar a sua responsabilidade. Mas os gestores não fazem milagres.

A estratégia de curto prazo, focada no equilíbrio financeiro, não pode alhear-se das medidas estruturais. E medidas estruturais não são medidas instrumentais - como sistemas de informação - pese embora a enorme importância que se lhes reconhece.

O Plano Nacional de Saúde não pode ser apenas um documento burocrático e deve ser utilizado como estratégia técnica para a boa decisão política. Os limites de intervenção das profissões de saúde e a multiplicidade de competências disponíveis devem ser repensados à luz dos percursos dos doentes. A sociedade e os parceiros sociais - nomeadamente os municípios - devem ser chamados a participar mais activamente no funcionamento das instituições de saúde.

Proposta

- Levar para o terreno o enfermeiro de família. Trata-se de um papel legalmente criado, que certamente contaria com apoio na atmosfera de inovação organizacional e trabalho em equipa que existe nos cuidados de saúde primários (nomeadamente nas Unidades de Saúde Familiar), que permitiria aos especialistas de Medicina Geral e Familiar concentrarem-se em tarefas mais diferenciadas, o que poderia ajudar a recentrar o sistema nos cuidados de saúde primários. A evidência das experiências internacionais é clara quanto aos ganhos em saúde que decorrem desta opção. É contudo uma boa ideia que pode ser desperdiçada se não for implementada cuidadosamente: com o envolvimento dos parceiros, a definição clara das competências a atribuir, a formação e treino adequados ou a monitorização dos resultados são alguns aspectos imprescindíveis.

Adalberto Campos Fernandes, Administrador da Fundação para a Saúde - SNS

Em 2014 o Serviço Nacional de Saúde prosseguirá um caminho de grandes dificuldades. Com efeito, a restrição orçamental e os novos cortes impostos no OE 2014 acentuarão as dificuldades de resposta por parte das instituições que integram a rede pública de prestação de cuidados de saúde. Ao mesmo tempo, continuarão a agravar-se as desigualdades entre cidadãos com financiamento público mas mecanismos de acesso e de pagamento directo diferenciados (taxas moderadoras impostas no SNS versus co-pagamentos praticados pela ADSE).

O arrastamento do processo da reforma hospitalar, a indefinição quanto aos modelos de acesso à inovação terapêutica e a fragilidade da consolidação orçamental (bem expressa na necessidade recente de injecção adicional de capital nos hospitais) constituem alguns dos sinais mais relevantes de que as medidas estruturais estão muito aquém daquilo que se esperaria após dois anos de sucessivos cortes orçamentais.

Neste contexto não deverá ser minorada a desmotivação geral dos recursos humanos.

As perspectivas para o futuro do SNS são pouco animadoras. A visão minimalista do seu papel e do seu espaço de intervenção aparece expressa nas diferentes medidas políticas tomadas nos últimos anos. Aparentemente, a necessidade de contenção da despesa, decorrente do programa de assistência financeira, não foi acompanhada, tal como recomendava o próprio memorando de entendimento, por uma estratégia de requalificação das políticas públicas no sector da saúde.

Proposta

Reformar o SNS conjugando eficiência na utilização e gestão dos recursos com uma aposta na criação de valor humano, económico e social reposicionando o sector da saúde como um dos eixos estratégicos para o desenvolvimento do país.

José António da Costa Ferreira, enfermeiro

"Os dias talvez sejam iguais para um relógio, mas não para um homem" (Marcel Proust).

Ainda sou do tempo em que no início de cada turno de trabalho tínhamos de mendigar o material para podermos prestar cuidados de enfermagem. Talvez cuidados de sobrevivência! Seis lençóis, três cobertores, cinco fronhas? No que respeita a dispositivos médicos, éramos informados de que se a medicação do doente X coubesse numa seringa não usaríamos uma segunda, mesmo sabendo nós que há produtos bio incompatíveis. Perfusões contínuas? O que era isso?

Eu ainda estou num tempo em que isto não é mais do que uma quimera. Até quando? Se deixarmos que o tempo passe e não dermos conta de que este passar modifica, será para breve. O meu receio é voltar ao tempo de enfermeiro a mendigar? E porquê? Será só pelo que se ouve falar, ou também pelo que se legisla? Já começou a devolução de hospitais às Misericórdias, as mesmas que geriam os hospitais daquele tempo. Como é possível? Uma enfermagem disputada pelos países mais avançados ter de voltar ao antigamente. O SNS corre o risco de se vir a designar de SNCS (Serviço Nacional de Caridade em Saúde). Actualmente, uma ida à Urgência acarreta um custo mínimo de 20 euros. Quem tem meios económicos, subsistemas de saúde ou seguros escolhe onde paga menos e não vai sujeitar-se a uma perda económica e do tão precioso tempo actual.

Progressivamente os hospitais públicos perderão clientes, ficando com utentes, e estes não pagam taxas moderadoras por não terem meios. Não é preciso ser economista para afirmar que se não entra dinheiro no hospital este não se moderniza para oferecer cuidados de qualidade aos cidadãos.

Como disse há cerca de dois anos António Arnaut, em resposta a uma questão minha, "sim, senhor enfermeiro, a tendência é essa, de voltarmos ao tempo das Misericórdias". Será que voltarei a ter de mendigar para prestar cuidados aos cidadãos?

Proposta

Que nos recibos de prestação de cuidados do SNS seja mencionado o valor das atitudes terapêuticas de enfermagem, e não apenas os dos cuidados médicos e dos exames complementares realizados. Actualmente as intervenções de enfermagem representam erradamente um prejuízo na contabilidade das instituições.

Fernando Araújo, médico hospitalar

O orçamento para a saúde para 2014, contém um problema intrínseco: é impossível ser cumprido se quisermos manter os níveis de acessibilidade e qualidade assegurados pelo SNS. Após anos de redução de custos e aumentos da eficiência hospitalar, só existem duas formas de poder, com relevância, diminuir a despesa: realizar a reforma hospitalar (incluída no memorando da troika, prometida desde Junho de 2011, alvo de pelo menos seis relatórios encomendados pelo Ministério da Saúde, desde grupos de peritos até entidades como a ERS e consultoras externas, mas nunca implementada); ou reduzir a actividade hospitalar (nomeadamente nas áreas com custos mais elevados), colocando constrangimentos aos doentes e invertendo um ciclo de virtuosidade na saúde.

Neste momento, cresce nos hospitais um clima de enorme desmotivação dos profissionais, não tanto devido ao conjunto de medidas que reduziram os vencimentos, diminuíram o pessoal e aumentaram as horas de trabalho, mas acima

de tudo por insatisfação devido à ausência de uma política de saúde. Existe um enorme vazio em termos estratégicos para a área hospitalar, falta discussão e envolvimento das pessoas e instituições, enquanto são publicadas medidas avulsas e não concertadas.

Proposta

Extinção da Administração Central do Sistema de Saúde e alocação de orçamentos hospitalares regionais de forma a terminar com uma iniquidade que se tem aprofundado nos dois últimos anos, com transferências escandalosas de verbas dos hospitais do Norte para Lisboa, não exigindo o mesmo esforço às diferentes instituições e promovendo tratamentos desiguais conforme a zona de residência dos doentes.

Pedro Pita Barros, economista da saúde

O maior desafio do Orçamento do Estado na área da Saúde é ser realista. Não é anunciar medidas.

A grande fatia do Orçamento do Estado na Saúde é a transferência para o Serviço Nacional de Saúde (SNS). A definição do valor desta transferência é o resultado de uma negociação, julgo eu, entre o Ministério das Finanças, que pretende transferir o menos possível, e o Ministério da Saúde, que partindo de uma base de necessidade de recursos para satisfazer a sua missão, pretende assegurar os fundos suficientes para o fazer.

Se a dotação atribuída ao SNS é muito inferior às necessidades, e se é claro que os orçamentos das diferentes instituições são insuficientes para as despesas de funcionamento em condições normais, é impossível gerir sem criar dívidas para o futuro. Esta situação gera má gestão, descontrole e desresponsabilização. Cortar os mecanismos de criação de dívida no SNS tem de ser conseguido com regras (como a Lei dos Compromissos) mas também com dotações orçamentais realistas. A eliminação do mecanismo perverso da dívida a fornecedores é essencial para ter uma gestão que seja responsabilizada pelos resultados assistenciais que conseguir, para premiar ou penalizar.

Proposta

Do exposto resulta a proposta de atribuir um orçamento realista ao SNS, adequado às necessidades e impondo ganhos de eficiência.

Por exemplo, optar por reduzir o orçamento em cada instituição em 5% face ao que foi a despesa do ano anterior. Não deve ser face ao orçamento do ano anterior, que já poderia estar desajustado, mas face à despesa adequada à actividade prestada.