1.11.13

Mães entregam filhos a instituições por causa da crise

Joana Fillol, in Visão Solidária

Os anos da crise estão a ser negros para as crianças. Crescem os casos de abandono e maus-tratos, mas também os de mães que entregam os seus meninos a instituições, por não terem como os criar


Aos 5 anos, Samuel tem um olhar vivo e brilhante. O seu comportamento não deixa adivinhar os momentos difíceis por que passou, na sua ainda curta existência. Alto e forte, é daquelas crianças que levam o mundo à frente. Como se os pequenos leões, cães e cavalos de plástico, cúmplices em horas de fantasia, lhe emprestassem a força de que precisa para viver.

A mãe e o pai de Samuel, Fátima e António, com 44 e 48 anos, respetivamente, descendem de famílias modestas e começaram cedo a trabalhar, para se sustentarem. Desde que casaram, os dias nunca foram folgados.

Mas, entre o trabalho dele, nas obras, e o emprego dela como ajudante de cozinha, o orçamento familiar ia chegando para evitar tombos de maior, nesse equilíbrio delicado que pode ser a vida.

Há três anos, o restaurante onde Fátima trabalhava começou a perder clientes. E ela ficou sem emprego. O ambiente familiar degradou-se e, depois de uma discussão mais violenta com o marido, acabou por bater com a porta, levando o filho de ambos, então com 2 anos, para casa da irmã.

A Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) andava atenta às famílias do bairro, numa zona carenciada de Matosinhos. Fátima soube que alguns meninos tinham sido institucionalizados e, antes que a abordassem, foi ter com a Comissão. "Pedi que me ficassem com o filho, mas só até arranjar a minha vida.

Não queria perder o meu Samuel", diz a mulher, de ar envelhecido, cabelos baços e poucos dentes.

A criança trocou a casa da tia por um Centro de Acolhimento Temporário. Ficou triste pela separação da família e Fátima entrou em depressão. Esteve internada uns dias, mas tinha um objetivo forte a motivar a sua saída da cama: conseguir, um dia, recuperar Samuel.

Famílias em desespero

Este é o tipo de caso que leva Rosinda Antunes, presidente da CPCJ de Matosinhos, a questionar se a verba que o Estado dá às instituições a rondar os 700 euros mensais por cada criança não deveria ser canalizada para as famílias: "Quando não correm perigo, os menores não precisavam de ir para instituições e sujeitar-se à separação dos pais, se o Rendimento Social de Inserção (RSI) que estes recebem fosse aumentado " e as famílias fossem mais apoiadas.

Tal como no caso de Fátima, o apoio financeiro do Estado seria precioso para Maria. Ganha 300 euros mensais, num cabeleireiro, menos 50 euros do que paga de renda de casa. O abono dos dois filhos, uma menina de 12 anos e um rapaz de 3, não chega aos 80 euros. Só o ATL do mais novo, necessário para que ela possa trabalhar até às 19 horas, custa de 45 euros por mês. As noites são passadas na cozinha, até às 3 da manhã, a fazer rissóis para vender e assim compor o ordenado. Sem a ajuda da mãe, empregada de limpeza, que contribui com alimentos, a fome seria inevitável. Se acontecer, Maria já decidiu: "Prefiro entregar os meus filhos a uma instituição a vê-los passar fome." Vítima de violência doméstica, viveu quatro meses numa casa-abrigo, mas agora, fora daquelas paredes protegidas, perdeu todos os apoios. O seu parco ordenado é, aos olhos do Estado, suficiente para ficar de fora do que, em tempos de austeridade, se entende serem os "mais necessitados".

O RSI chega a cada vez menos pessoas e "baixou imenso", nota Rosinda Antunes.

No último ano, 70 mil pessoas perderam o apoio, que se situa agora nos 82 euros por beneficiário. A assistente social cruza-se, cada vez mais, com pais sem dinheiro para dar de comer às crianças: "São pessoas sem formação [e com maiores dificuldades para entrar no mercado de trabalho], que têm de pagar casa, água, luz e, sem apoios, não conseguem sustentar os filhos." Não é possível contabilizar com exatidão o número de crianças a sofrer na pele as consequências da crise mas chegam notícias alarmantes a um ritmo avassalador.

O mais recente relatório da Comissão Nacional de Proteção de Menores dá conta de um aumento significativo de maus-tratos (53 494 casos, só no primeiro semestre de 2013, mais 1 328 que em 2012), associando esta subida à conjuntura económica do País.

Na semana passada, um relatório da Direção-Geral de Saúde confirmou um aumento de 25% de casos registados nos hospitais: dos 6 815 menores em risco detetados nas urgências, muitos sofriam de malnutrição. Nas escolas, mais de 10 mil crianças foram sinalizadas por irem todos os dias para as aulas sem nada no estômago. Um relatório da Unicef fala de retrocesso nos Direitos da Criança e na violação de tratados internacionais assinados pelo Estado, revelando que 500 mil menores perderam o direito ao abono de família, entre 2009 e 2012, e muitas outras viram o seu valor ser reduzido. Em desespero, sentindo-se encurraladas, há famílias que cometem atos de desespero. Em Bragança, uma professora atirou o filho de 12 anos da janela de um hotel e suicidou--se em seguida. Tiveram ambos morte imediata.

Só no espaço de um ano, dez crianças foram mortas pelas suas mães. Aumentaram também os casos de abandonos de bebés. O mais recente foi registado a 11 de setembro, no Porto: uma menina com um mês de vida foi deixada numa paragem de autocarro.

Quando a encontraram, estava a dormir, bem alimentada, protegida do frio numa sacola térmica e estrategicamente situada: em frente de uma esquadra da PSP.

O gesto toca Cecília Bastos, até há dias presidente da CPCJ Porto Central. "A entrega da bebé terá sido um ato de amor, numa situação extrema. Pode ser uma mãe que pensa não reunir as condições para ter a criança ou que está muito desequilibrada."

Do abandono ao colo apertado

Já passaram dois anos desde que Amélia, empregada de limpeza, abandonou o filho que acabara de dar à luz. Aos 30 anos, tinha já três filhos, de 1, 4 e 8 anos. Trabalhava, então, numa lavandaria, o marido era camionista de longo curso. Amélia usava um adesivo hormonal como método contracetivo.

"Descolou-se e falhou. Quando dei conta já estava de quatro meses", explica, enquanto as lágrimas lhe correm pelo rosto. "Fiquei com receio de que o meu marido me deixasse.

Decidi esconder a gravidez." A conversa é interrompida por soluços.

Amélia vai desfiando as memórias como se, ao partilhá-las à mesa de um centro comercial, libertasse um pouco da culpa que a acompanhará para sempre. "Tive o filho em casa, na banheira, num intervalo do almoço.

Cortei o cordão umbilical com a tesoura e atei-o com fio dental. Sou muito 'doridinha', nem sei onde fui buscar as forças." Depois, seguiu para casa da mãe, dizendo que estava a tomar conta do filho de uma amiga, e passou a noite em branco, sem saber o que fazer. Na manhã seguinte, lembrou-se da notícia que lera uma semana antes, contando a história de uma mãe que abandonara um recém-nascido no cemitério. Pegou na sua velha carrinha cinzenta e vagueou, ao volante, lavada em lágrimas, com o filho recém-nascido ao lado. Tinha pouco tempo até entrar ao trabalho. Lembrou-se de um condomínio em Vila do Conde: "São prédios bonitos, com relva à volta. Pensei que alguém ia ficar com o bebé e tratá-lo bem", justifica. Naquele primeiro dia de outubro, agasalhou o filho e colocou-o numa caixa de plástico, com uma lata de leite em pó ao lado. Pousou-o, a chorar. Quando arrancou com o carro, arrependeu-se de imediato.

Voltou atrás, mas já havia gente à volta.

Nessa noite, quando viu o seu bebé nas notícias, chorou.

Dois dias depois, não aguentou e dirigiu-se a uma CPCJ, com a irmã a quem acabara de confessar-se. Foi à esquadra, acompanhada de uma advogada da Cruz Vermelha, e iniciou o processo para ter o seu menino de volta. "Tive muita gente do meu lado, os professores dos meus mais velhos deram boas referências minhas. Eu tinha sido sempre uma boa mãe." Solta, então, o primeiro sorriso: "O Afonso é hoje o pior dos quatro: cheio de vida, mandão." Amélia laqueou as trompas e continua a ter acompanhamento psicológico. "Não estava bem. O meu pai tinha falecido e eu trabalhava a semana toda sem folgar para ganhar mais dinheiro", diz. Imagina o quanto pode estar a sofrer a mãe que abandonou agora a filha, no Porto: "Deve ter pensado, como eu, que se a entregasse nalgum sítio iria ser identificada e ter problemas. Se calhar também acha que as CPCJ só castigam.

Eu não sabia que ajudavam. Encontrei lá um apoio espetacular." O mesmo apoio descobriu-o Fátima, que todas as semanas ia visitar Samuel ao centro de acolhimento: "Tínhamos só uma hora e o tempo passava a correr." Era sempre de coração apertado que o deixava.

Entretanto, reconciliou-se com o marido, encontrou emprego nas limpezas e reuniu as condições exigidas para ter Samuel de volta. Dois anos depois, os pais foram buscá-lo, levando-lhe um presente simbólico: uma pulseira de ouro. "Foi um dia lindo", recorda a mãe, emocionada. Mas a melhor prenda foi voltar para casa. Hoje, os pais continuam a levá-lo ao centro de acolhimento, para matar saudades dos amigos que por lá continuam e das técnicas que o mimaram. Samuel não sabe, mas para quem lá trabalha é a sua força (emprestada pelos seus pequenos animais de plástico?) que vai compensando todas as angústias.