15.4.14

Uma cantina que dá refeições e ainda ampara precários

por Rui Marques Simões, in Diário de Notícias

O DN visitou a mais antiga cantina social de Coimbra para traçar o retrato de quem recorre a este tipo de apoios sociais


Dali "ninguém sai sem comer". Mas, na dúvida, e com a fome a apertar, o melhor é chegar cedo. Pelas 11:00, já dezena e meia de idosos espera sentada no hall da entrada da Cozinha Económica, a mais antiga cantina social de Coimbra. E quem lá passar depois das 12:00 já verá a curta sala, de ar antigo, a encher-se de gente. É ali que acorre quem não tem mais onde ir, com histórias de desemprego, dependências várias ou problemas mentais: se estiver sinalizado pela Segurança Social, não paga. Em minoria, também aparecem trabalhadores precários, à procura de um prato quente, por pouco dinheiro: pagam 1,40 euros pela refeição completa (mas são cada vez menos os que têm condições para essa comparticipação).

O retrato das primeiras linhas é traçado pelas responsáveis da Associação Cozinhas Económicas Rainha Santa Isabel, a presidente Arminda Lemos e as assistentes sociais Lúcia Duarte e Ana Maria Cristóvão, a fazerem contas a um crescente número de utentes, apesar de terem surgido novas cantinas sociais no concelho, nos últimos meses. "Temos aumentos de 20% de ano para ano. Em 2010 servimos cerca de 80 mil refeições no refeitório social, enquanto no ano passado foram quase 120 mil", explica Lúcia Duarte. No mesmo espaço de tempo, as refeições comparticipadas caíram de 40% para 22%. E, apesar do apoio da Segurança Social e dos donativos de particulares, "a gestão é feita ao cêntimo", com Arminda Lemos a apelar "a outras contribuições, como a consignação do IRS ou a participação em jantares solidários (o próximo é a 30 de maio)".

Indiferente a estas contas, o cheiro a comida já se espalha pelo prédio, num largo escondido da baixa de Coimbra. O prato principal é feijoada. Quase em uníssono, Leonardo, Eduardo e Ailton, todos na casa dos 20 anos, gabam-lhe o sabor e contam a sua história comum. Têm um trabalho precário - "a vender cartões para telemóvel e distribuir publicidade" - ganham à comissão, "e o dinheiro não dá para tudo". "Um colega que já cá vinha trouxe-nos cá e começámos a vir. A comida é boa, o espaço asseado e o ambiente é simpático", elogiam.

Estas são as "novas formas de pobreza" de que fala Ana Maria Cristóvão: casos em que "o ordenado não chega para as despesas" ou de pessoas que "ficaram desempregados recentemente, sem almofada nem pé-de-meia". Porém, a maioria junta uma sucessão de problemas. "Famílias desestruturadas, desemprego, divórcio, alcoolismo...", enumera Lúcia Duarte, elencando: "temos muito mais homens do que mulheres, a viverem em quartos ou sem abrigo, com adições ou patologia mental, alguns imigrantes".

É gente como Marcos, de 55 anos e utente do espaço há ano e meio. Lisboeta, antigo trabalhador hoteleiro, refugiou-se "numa casa velha que tinha em Coimbra", depois de perder o emprego e se separar da mulher ("não quis expor as minhas filhas a discussões constantes"). Agora, mora num quarto na baixa da cidade, recebe o Rendimento Social de Inserção, e agradece a quem tenta amparar-lhe a queda: "Há grande vontade de ajudar. Dou muito valor ao que têm feito por mim. Estou muito bem impressionado. Aqui fazem 400%."

Outras soluções para quem tem fome

Na verdade, sublinha Lúcia Duarte, "a resposta é concertada entre as várias instituições" - para tentarem resolver os problemas de fundo, da carência económica às dependências ou patologias mentais. E cada caso é um caso. À Cozinha Económica e restantes cantinas sociais chegam os pedidos de ajuda reencaminhados pela Segurança Social ou outras IPSS. Para outras situações, há os bancos alimentares espalhados pelo País (dirigidos a famílias que ainda têm condições para cozinhar em casa), o apoio domiciliário a idosos ou as equipas técnicas que distribuem comida a sem-abrigo.

Tendo em conta o contexto social, na Cozinha Económica, "o ambiente até é sossegado, talvez por serem irmãs [da congregação das Criaditas dos Pobres] a servir", diz Lúcia Duarte. Isso vê-se nas pequenas coisas. No homem desgrenhado que entra na sala e quase pede licença para se juntar à fila. No jeito como Leonardo brinca com um rapazinho que passa ao largo da sua mesa. Ou na forma como Marcos, já de saída, retarda o passo para perguntar a uma idosa que desce as escadas, de bengala: "A senhora precisa de ajuda?". "É um ambiente mesmo familiar. E fazemos sempre por lhes dar um miminho numa data festiva", descreve a assistente social - além de, às vezes, ajudarem a pagar uma ou outra despesa, a algum utente que esteja em vias de ficar sem água ou sem luz. No fundo, conclui Lúcia Duarte: "Não damos só comida, damos mais."