Joana Gorjão Henriques, in Público on-line
Presidente da Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos defende, em livro, o fim das prisões. Com 40 anos de experiência, Manuel Hipólito Almeida dos Santos descreve-as como “desumanas, anacrónicas, assustadoras, medonhas, medievais e violentas”. Defende também o “enquadramento legal” das drogas, a principal causa que leva ao encarceramento.
O título do livro que acaba de lançar vai directo ao assunto: A Abolição das Prisões. Em edição de autor disponível em e-book no site da Leya, Manuel Hipólito Almeida dos Santos, 74 anos, presidente da Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos (OVAR), defende isso mesmo: o fim das prisões. Com textos do próprio, que há 40 anos visita prisões, esteve à frente da Amnistia Internacional e é há muito um activista pelos direitos humanos. O livro compila escritos de outros autores como sociólogos, padres e bispos.
Desumanas, anacrónicas, assustadoras, medonhas, medievais e violentas. Este é o retrato com que descreve as prisões, lugares que não ressocializam e só alimentam o desejo de vingança. Conversámos com o autor-organizador deste livro na semana em que o Comité Antitortura do Conselho da Europa voltou a alertar o Governo para as más condições das prisões e aconselhou o fecho do hospital-prisão de Santa Cruz do Bispo. O objectivo do livro é ser um alerta para uma política de prevenção da criminalidade, para que haja menos reclusos e menos vítimas.
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Diz a dada altura que ainda não conheceu um caso em que, colocando-se nas circunstâncias em que o crime foi cometido, pudesse ter feito melhor do que o recluso. Esta abordagem humanista não é, como sabemos, partilhada por muitos, incluindo na própria Igreja. O seu posicionamento, dirigindo uma obra de solidariedade católica, tem-lhe causado problemas?
Tenho notado um aumento da sensibilidade. Procurei sensibilizar o próprio bispo do Porto, com quem tive uma reunião há cerca de um mês, para que na diocese houvesse um órgão específico para a questão prisional – uma pastoral penitenciária. E ficou muito sensível, já publicou dois textos a chamar a atenção para o problema e para a necessidade de se rever o posicionamento que a comunidade tem para com as prisões. Em muitos casos, o crime é uma questão de sobrevivência. Há casos em que não. Assistimos esta semana à acusação da morte daquela criança, Valentina — é evidente que estamos perante uma situação atroz, mas não é a prisão que vai impedir que isso se verifique. Trata-se de um problema de desumanização, característico deste modelo de sociedade.
Ao fim de 40 anos de experiência, diz que não se vislumbra utilidade nas prisões: que exemplos concretos sustentam este posicionamento?
A prisão per si não respeita os direitos humanos universalmente consagrados — o direito à saúde, que é muito mal tratado; o direito às comunicações, o direito a que a pessoa se relacione com a família e os amigos; o direito à vida privada, não há privacidade entre reclusos… É desumana. É anacrónica porque não persegue os fins que lhe estão atribuídos. O nosso Código Penal diz que as prisões têm por fim a protecção jurídica dos bens da sociedade e a reabilitação dos reclusos, mas nada disto é conseguido.
A reincidência nas prisões é superior a 50%. A maioria dos crimes contra o património e contra as pessoas são para obter dinheiro para comprar droga. A droga representa cerca de 80% da origem de todos os crimes que levam a que as pessoas sejam presas, é o maior contribuinte para a população prisional. Tem que se ter uma abordagem diferenciada e contextualizar a droga no seu enquadramento legal — há 50 anos a droga não tinha tipificação penal, não havia punição. É um crime recente no nosso ordenamento jurídico e adquiriu, perante a opinião pública, um estigma tal que hoje é vista como demónio. O enquadramento legal das drogas, como se fez com o tabaco e o álcool, é absolutamente necessário.
Quer dizer que se devem discriminalizar todas as drogas?
Defendo o enquadramento legal das drogas, isso ia reduzir a população prisional e muito. Temos legalizadas práticas com efeitos nocivos que, em alguns casos, são piores que as drogas. A ‘Raspadinha’ está a ser uma forma de lapidação do património das pessoas.
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As drogas são um problema criminal e social. Devíamos ter uma dinâmica de alerta para as dependências no sistema de ensino, na comunicação social, na sociedade, para sensibilizar as pessoas para que tomem a iniciativa de não ficarem dependentes de qualquer produto que lhes retire a liberdade de decisão. Aliás, o tabaco tem uma dependência fortíssima e não é proibido, tem é alertas – e esses alertas têm que ser feitos para todas as outras dependências.
Diz que as prisões só agudizam o problema da criminalidade. Porque defende tão veementemente a abolição das prisões?
Porque são ineficazes. São ineficazes porque não previnem a prática de novos crimes, não fazem o ressarcimento dos danos às vítimas e não promovem a ressocialização do recluso. Se são ineficazes, para que existem? Depois custam muito dinheiro. O orçamento que está em discussão na Assembleia da República para 2021 prevê mais de 300 milhões de euros para o sistema prisional.
Que poderiam ser aplicados na justiça restaurativa e na prevenção?
Gosto mais de chamar justiça preventiva, que inclui a justiça restaurativa – é muito mais importante prevenir a prática de crimes do que restaurar os danos dos crimes. A grande aposta tem que ser na prevenção. A abolição das prisões passa muito pela sensibilização para a não prática dos crimes, pelo respeito e consideração pelo outro, como alguém diferente que fará coisas que não fazemos. E isso implica que o outro nos respeite. Passa pelo modelo de sociedade que não é novo, está nos grandes referenciais de direitos humanos que foram construídos na última metade do século passado.
Qual o grau de realismo com que isso poderia ser executado? Há algum país em que aconteça?
Sabemos que nos países nórdicos a população prisional tem diminuído de forma significativa nos últimos anos fruto desta aposta na prevenção e na consideração das prisões como instituições que devem ser o exemplo no acesso aos direitos humanos. As prisões nórdicas não têm nada a ver com as prisões de Portugal, Brasil ou Estados Unidos.
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O caminho para a abolição das prisões não é para amanhã; é um caminho que tem de ser trilhado, no sentido que se possa proporcionar à sociedade um sentimento de segurança de que a prática de crimes irá diminuir substancialmente, fruto da política de prevenção e sensibilização, no sentido de que os próprios cidadãos não tenham dentro deles estímulo ou tendência para a prática de crimes. É evidente que vão ficar de fora deste lote algumas pessoas.
Há pouco falei de 80% de reclusos ligados às drogas, restam 20%; nessa percentagem de 20% estão uma quantidade significativa de pessoas inimputáveis. Temos na sociedade muitas pessoas em estado psíquico desequilibrado. Para estas pessoas, a prisão não é solução e têm que ser tratadas em estabelecimentos de saúde. Temos cerca de 90% de reclusos, entre drogas e inimputáveis, que estão lá indevidamente porque é um problema de saúde pública. Portanto, o caminho para a abolição das prisões faz-se pela mudança de todos estes paradigmas. Nos inimputáveis temos situações violadoras do nosso ordenamento jurídico e constitucional. Há pessoas há mais de 30 anos na prisão, contrariando o Código Penal e a Constituição. Há inimputáveis que não sabem se algum dia irão sair da prisão. São casos de saúde pública, estão desequilibrados, têm que ser tratados em hospitais. Não podem é estar presos.
Na prática, como é que o caminho da abolição seria feito?
A intervenção dos poderes públicos é fundamental. Em Julho, Agosto e Setembro falei com a esmagadora maioria dos partidos, com o Governo e com o presidente da Assembleia da República. Encontrei receptividade em todos para trilharmos este caminho que irá melhorar muito o grau civilizacional da vida em sociedade.
Importa que o poder político comece a pôr em prática este manancial de ferramentas que é necessário: desenvolver uma dinâmica de sensibilização para as consequências de todas as dependências; desenvolver uma grande dinâmica de respeito pelo outro em todas as vertentes – de género, raciais, etc. Só esta dinâmica vai reduzir muito a prática do crime. O próprio comportamento da sociedade pode levar à abolição das prisões.
Compara esse caminho com o que se fez em relação à escravatura.
Há 200 anos, a escravatura estava enraizada na sociedade. A luta pela abolição da escravatura foi grande. Levou a que houvesse uma burguesia, e uma grande quantidade de pessoas, a abdicarem de terem trabalhadores não pagos. Não foi fácil, passou por fases e ainda hoje temos uma forma de escravatura moderna. A pena de morte era um espectáculo público. Retirar ao povo o espectáculo de ver as pessoas serem supliciadas na praça pública não foi fácil. Temos que fazer o mesmo para a abolição das prisões.
Não sou apologista do regime derrubado com o 25 de Abril. Mas, nessa altura, havia três mil presos em Portugal, hoje temos 12 mil – como é que num regime democrático se pode justificar? Houve um crescendo de um modelo repressivo, de intolerância, que é inaceitável.
Mas isso implica a revisão de todo o sistema, das polícias aos tribunais. Como seria modificada esta estrutura?
Muitos dos recursos humanos dessa estrutura deveriam ser encaminhados para a tal dinâmica da prevenção. Em relação à polícia também, que devia ter uma função muito mais pedagógica do que punitiva e repressiva — e, nesse aspecto, termos vindo a caminhar muito mal, com esta situação da covid-19 há uma tendência para acções musculadas para cumprir as normas em vez de sensibilização das pessoas. Uma sociedade deve nortear-se não pela repressão mas pela liberdade, não pela obediência mas pela consciência.
Todas estas estruturas que estão destinadas à componente repressiva, policial e prisional, poderiam ser utilizadas na dinâmica de prevenção e o dinheiro destinado para o sistema prisional deveria ser encaminhado para a prevenção. Estas estruturas passariam a ter uma função completamente diferenciada.
E como é que se previnem os crimes além dos que já referiu em relação a drogas e inimputáveis?
Restam crimes ditados por anormalidades humanas ou impulsos do momento. A maior parte dos homicidas cometeu o homicídio por impulso do momento, por razões de natureza emocional, por práticas enraizadas na sociedade, e aí têm-se dado alguns passos positivos mas que ainda não passaram para a generalidade da sociedade. Temos ainda em Portugal muitos crimes por questões de género, a violência doméstica assume aqui um papel importantíssimo. Mas há que reforçar esta componente preventiva e de sensibilidade para acabar com os crimes de violência doméstica.
Isto passa pelo sistema de ensino, pela comunicação social. Noto que tem que ser feita uma mudança muito significativa na forma como alguns órgãos tratam as questões de crime – vejamos a forma sensacionalista e vingativa com que o crime é colocado.
O que acha que leva as pessoas a quererem mais gente na prisão e penas mais pesadas?
Sou muito sensível às questões das vítimas. A forma como os crimes são relatados suscita na opinião pública o desejo de vingança. E esse desejo é inaceitável. Perante qualquer coisa que ofenda aquilo que achamos que deveria ser o comportamento correcto, não devemos agir de forma vingativa mas de forma compreensiva, reparadora e de ajuda. Estamos num país de matriz judaico-cristã onde há muito a tónica do olho por olho, dente por dente foi ultrapassada pelo perdão e misericórdia. Não é aprovar o crime, antes pelo contrário, mas o sentimento é: como vamos prevenir a prática de novos crimes? Como vamos ajudar as vítimas dos crimes e como vamos ajudar o criminoso a não reincidir na prática do crime? Devemos retirar em nós a cultura de vingança, que está enraizada, até porque há uma questão de fundo que é importante: a vingança não torna as pessoas felizes.