9.11.20

A POBREZA TEM GENTE DENTRO (E NÃO ESTAMOS TODOS NO MESMO BARCO)

José Júlio Curado, Opinião, in Jmadeira

Há duas semanas, fiz nestas páginas uma abordagem inicial ao problema da pobreza em Portugal e na Madeira tendo como ponto de partida as conclusões do livro título “Rendimento Adequado em Portugal”*. Optei por fazê-lo com base nessas conclusões de modo a ilustrar que trabalhar, mesmo que seja a tempo inteiro e em condições normais, não é garantia de se poder escapar às malhas da pobreza. Este é um dos maiores problemas da pobreza, a dificuldade de se poder sair dela pelas próprias mãos.

Estar em situação de pobreza é estar permanentemente num estado de privação. Implica ter de fazer escolhas, na maior parte das vezes difíceis pelo impacto que têm. Porque não é o mesmo escolher entre dois filmes que estão no cinema ou os dois modelos de telemóvel mais recentes e ter de escolher quais as necessidades primárias que vamos conseguir satisfazer: vestuário ou alimentação, escolher o que deixar no supermercado, na loja de pronto-a-vestir, na sapataria, escolher por vezes qual a conta que ficará por pagar hoje, à espera de poder ter a capacidade de o poder fazer na próxima semana ou no próximo mês.

Se em condições normais já é difícil para muitas pessoas, estes tempos de pandemia de COVID-19 vieram agravar a situação. Começou em março, com a suspensão das aulas, que obrigou muita gente a ficar em casa, a cuidar dos filhos menores. Na sequência da declaração do Estado de Emergência e da imposição de medidas de confinamento, aconteceu o mesmo à maioria da população.

Para quem está nesta franja mais vulnerável da população o teletrabalho raramente é opção, restringe-se a apenas 3% das pessoas mais mal pagas. A alternativa passou pelo lay-off ou pela perda de emprego, seja pela caducidade dos contratos de trabalho ou prestação de serviços, seja pelo despedimento por extinção dos postos de trabalho, agravando-se a sua situação. Ainda sem recuperação à vista, o novo estado de emergência que agora se anuncia não augura nada de bom.

Na ausência do anúncio de medidas de apoio aos trabalhadores e às empresas que possam ajudar colmatar esta anunciada perda de rendimento, urge reforçar os apoios sociais que permitam atravessar esta crise com o menor impacto. Nas famílias com crianças mais novas, o impacto será devastador, com implicações negativas no seu desenvolvimento adiando, para muitas delas irreversivelmente, a hipótese de sair da situação em que se encontram.

Entretanto, dos Açores chegam-nos notícias ainda mais preocupantes. O PSD alcançou um acordo com um partido que baseia o seu programa no ataque aos mais frágeis. Para poder constituir governo, um partido que se diz social-democrata aceitou reduzir a democracia, através da redução da representatividade, e comprometeu-se em reduzir para metade os apoios sociais. Isto numa região que partilha com a Madeira os piores indicadores nacionais em termos de pobreza.

Gostava de me enganar, mas prevejo que a breve trecho o barco da pobreza nos Açores vai ter mais gente dentro.

*Coordenado por José António Pereirinha e desenvolvido com a colaboração de professores e professoras da Universidade de Lisboa, da Universidade Católica Portuguesa e do ISCTE, em parceria com a Rede Europeia Anti-Pobreza.