Victor Ferreira (texto) e Nelson Garrido (fotografias), in Público on-line
A PPTex conseguiu liderar um processo de transformação no sector do vestuário no Vale do Ave, cooperando com confecções que estavam em vias de fechar.
Burgães desapareceu do mapa administrativo em 2013, quando a reforma das freguesias impôs a fusão com outros povoados de Santo Tirso. Mas o turnaround da PPTex voltou a pôr o nome da terra num mapa, no mapa da indústria têxtil e vestuário (ITV).
Ainda há gente deste sector que não ouviu falar da empresa, mas a fama já passou as fronteiras do distrito do Porto e extravasou para todo o Vale do Ave, sobretudo no universo das pequenas empresas que trabalham por subcontratação.
“A PPTex foi a nossa tábua de salvação”, atesta Helena Antunes, dona de uma micro-empresa de corte localizada na Póvoa de Lanhoso, no distrito de Braga. “Sem eles, teria fechado as portas, teria ido para layoff e não sei quando teria reaberto”, recorda a empresária, que tem sete funcionários numa empresa que nasceu há 22 anos em Guimarães.
Eles são a equipa PPTex: uma dúzia de pessoas, com uma média de idades a rondar os 34 anos, que desenvolvia vestuário técnico, de características específicas, para grandes marcas de desporto e actividades ao ar livre, angariava clientes e depois contratava a produção em confecções.
40.000
Número máximo de embalamentos feitos pela máquina de embalar croissants que a PPTex usou para as máscaras
No rol de clientes estavam nomes como a Hummel. Quando a pandemia bateu à porta, as encomendas foram suspensas ou mesmo canceladas. Pensaram numa máscara de alta protecção, que despertou de imediato interesse no mercado e a cobiça da concorrência. Foram olhados com certa displicência, ou desdém. Baptizaram-nos “os miúdos de Burgães”: aqueles com uma boa ideia, mas que não passariam disso, uns miúdos que tinham facturado uns 300 mil euros em 2019, uma gota de água face a empresas com outro poder de fogo que estavam a tentar ocupar o mercado da saúde em crescimento. O tempo, porém, mostrou quem tinha razão.
Receitas multiplicadas por 25
Só entre Abril e Novembro, a facturação de todo o ano de 2019 foi multiplicada por 25. “A expectativa é chegarmos aos 8,5 milhões de euros”, confidencia Pedro Braga, dono da empresa, cuja aposta nos equipamentos de protecção individual (EPI) ajudou a manter cerca de meio milhar de postos de trabalho em duas dezenas de empresas do Vale do Ave.
Na confecção de Zita Gomes, também em Santo Tirso, a vida mudou bastante desde que Pedro Braga lhes bateu à porta. As cerca de 40 trabalhadoras deixaram o vestuário e agora fazem EPI. A dona da fábrica não anseia voltar à moda. “Apesar de ter um preço mais baixo, o EPI tem menos diversidade de modelo. De cada vez que meto um modelo de moda em linha, tenho dois a três dias de quebra. Com o EPI isso não acontece”, justifica a empresária.
Zita Gomes e o marido gerem uma confecção com mais de 20 anos de vida e que evitou o "layoff" por causa das máscaras
Além disso, acrescenta, deixou de estar sujeita à quebra de encomendas de grandes cadeias de pronto-a-vestir que, em 2019, por exemplo, permitiram a transferência de produção do Norte de Portugal para o Norte de África.
“Em Março, tínhamos uma encomenda de 40 mil peças, mas a última parte foi suspensa. Estávamos a pensar que a nossa única solução era o layoff. Chegámos a falar com as empregadas, mas entretanto surgiu a PPTex e isso mudou o nosso destino”, conta.
Salva de palmas na confecção
Para a equipa de Pedro Braga, ainda havia uma série de barreiras pela frente, desde logo porque toda a produção dependia de subcontratados que estavam a fechar e a mandar pessoas para casa. Para a matéria-prima, recorreram à LMA, que já os fornecia para o equipamento de alta performance desportiva.
“A LMA mudou em três ou quatro dias, toda a sua produção naquela altura e virou-se para os EPI”, recorda Luís Sousa Dias, responsável comercial. “Passado poucos dias, o Pedro apareceu aqui de cabelo rapado e anunciou que ia à luta.”
Enquanto procuravam laboratórios que atestassem as capacidades protectoras do modelo, o que em Março não era fácil, Pedro Braga continuava a procurar confecções abertas. Nalgumas onde não o conheciam bem, foi recebido com cepticismo. Prometeu duas coisas: pagar à semana e adiantar dinheiro naquelas situações de empresas que já não tinham liquidez. A aposta com um certo risco, diz, surtiu efeito.
Apesar de estarem numa indústria que paga abaixo da média nacional, as 90 trabalhadoras de uma dessas confecções não desvalorizam o que lhes aconteceu. A primeira vez que Pedro Braga visitou essa fábrica, foi recebido de forma inesperada: cerca de 90 mulheres pararam de trabalhar, levantaram-se e bateram-lhe palmas.
As compras do Estado à China
Agora, Pedro Braga lamenta algumas decisões nacionais, como o facto de o país continuar a comprar EPI no estrangeiro, depois de ter dado dinheiro a empresas nacionais para estas comprarem máquinas e reconverterem-se para a produção desses equipamentos para a saúde.
Tivemos estímulos com 85% a fundo perdido, houve empresas a financiar-se com valores expressivos, e no dia a seguir vemos toneladas de material a chegar da China e compradas pelo Estado.Pedro Braga
“Devia existir uma muito maior defesa da nossa economia. Não somos só turismo. Tivemos estímulos com 85% a fundo perdido, houve empresas a financiar-se com valores expressivos, o país tem este custo e no dia a seguir vemos toneladas de material a chegar da China em aviões e compradas pelo Estado. Estas empresas tentaram reagir, mas esta bolha não terá viabilidade. Quem diz Portugal, diz Europa, onde acontece o mesmo, porque nós conseguimos concorrer em qualidade mas não em preço. Se o objectivo era continuar a importar, qual foi a razão para investimentos de tão larga escala nestas empresas que não vão ter preço para subsistir nem em Portugal, nem na Europa.”
A PPTex não seguiu por esse caminho e Pedro Braga mostra um certo orgulho em dizer que não contraiu dívida e montou tudo com capital próprio. "No dia 16 de Março, quando pensámos nisto, apostámos tudo o que tínhamos. O que nos ajudou foi termos duas unidades hospitalares, uma das quais fez um pagamento adiantado e a outra fez um pagamento a pronto”, continua, tentando assim ilustrar o ambiente que se vivia. No sector de saúde, era quase o desespero por EPI, e na ITV era uma corrida desenfreada por alternativas para sobreviver.
Criou uma empresa de comunicação para sustentar uma marca própria, a Protect Others, que agora alberga todos os EPI que entretanto entraram no portefólio. Para o embalamento, criou outra empresa para a qual recrutou 11 pessoas de um restaurante que tinha fechado para layoff.
“Cozinheiros, empregados de mesa, tudo, veio tudo. Sozinhos, embalaram milhão e meio de máscaras durante cinco meses, até à reabertura do restaurante”, conta o gestor. Todos os EPI são embalados nas confecções, com excepção das máscaras, para as quais recorreram a uma antiga máquina de embalar croissants. “Tinha uma tiragem de 30 a 40 mil peças por dia. Foi a mais rápida que encontrámos”, anota.
O abraço do polícia
Oito meses volvidos, há histórias que não esquecerão. Como aquele abraço de um polícia, à entrada de uma auto-estrada. “Estava a sair de Lisboa, quase a entrar na A1. Com o país em confinamento, fui mandado parar. Perguntaram-me por que estava ali e eu expliquei que tinha acabado de fazer uma entrega de material de protecção num hospital de Lisboa e que estava a regressar a casa. Inesperadamente, deram-me um abraço e mandaram-me seguir.”
De então para cá, a empresa mudou muito. Em Janeiro ocupava 108 metros quadrados, saltou depois para outro edifício com mil metros quadrados e agora vai na terceira localização, com dois mil metros quadrados perto da A3. O activo é “90% cash”, sendo que a quantidade de capital “cresceu 300 vezes” nestes oito meses. A empresa está em fase de certificação junto do Infarmed “para não trabalhar só a parte covid”. Espera entrar em 2021 num projecto de investigação e desenvolvimento para a área da saúde, com certificação de qualidade e de processos.
“Para uma diversificação de riscos, vamos manter o têxtil, vamos manter o merchandising, que neste momento são residuais, mas temos todas as condições para continuar a aposta no mercado de saúde, no qual já temos uma boa presença”, resume Pedro Braga, frisando que, até ao momento, vendeu dois milhões de máscaras.
Os principais clientes são empresariais, como hospitais, os CTT ou a Câmara de Lisboa. Os custos fixos são 5% da receita, muito abaixo dos 30% no sector, porque a equipa é pequena e a produção em outsourcing. Paga um salário na ordem dos “1400 a 150o euros limpos”.
O capital circulante é de dois milhões de euros, com três quartos desse montante nos clientes e o resto nos fornecedores. A margem EBITDA está nos 44%. “Não podemos pedir muito mais”, garante o gestor.
“O nosso problema em Portugal é que temos um preço que está no meio da tabela. Não temos o bom senso de criar marca, de expressar um valor ao cliente, tendo custos superiores a concorrentes que competem com base no preço baixo. Ou seja, ficamos sempre no limbo.”
“A aposta nos EPI não melhorou salários”
Segundo dados do Ministério do Trabalho, a remuneração base mensal média na indústria de vestuário é de 698,1 euros, isto é, 75,1% dos 929,2 euros pagos na indústria transformadora.
O panorama ainda piora em termos de ganho mensal médio, isto é, a soma de todos os rendimentos, como horas extraordinárias ou eventuais prémios: no vestuário, o ganho médio é de 781,5 euros, 70,4% da média da indústria transformadora (1110,5 euros).
Num sector onde o subsídio de refeição ronda os 2,40 euros, “não há salário médio, só há salário mínimo”, protesta Francisco Vieira, da União de Sindicatos de Braga, um dos distritos com maior presença de confecções do sector do vestuário.
Quais são as condicionantes do salário na indústria têxtil e vestuário?
Não há salário médio, só há salário mínimo, andamos sempre nos 635 euros. Tirando uma excepção em que se vai acima da tabela, a esmagadora maioria ganha o salário mínimo. Há patrões que abandonaram a contratação colectiva.
As empresas que apostaram nos equipamentos de protecção individual estão melhor?
O rendimento gerado por essa aposta não se repercutiu numa melhoria do salário dos trabalhadores. O que há são horas extraordinárias, por vezes pagas por baixo da mesa, em dinheiro vivo, ao final da semana.
Onde está então o bloqueio?
São poucas as empresas que pagam acima do salário mínimo. O sector está recheado de empresas que estão em subcontratação e, por isso, sujeitam-se a quem tem poder de mercado. Há confecções que recebem 50 cêntimos para fazer produtos que custam dez euros no mercado. Há uma concorrência desleal, um “salve-se quem puder”, que perpetua esta situação.
O que tem de acontecer para melhorar o salário nestes sectores?
Precisamos de subir o salário mínimo nacional para os 850 euros. É lamentável, é miserável que ainda haja neste momento patrões com dúvidas sobre se se pode valorizar o salário no próximo ano. Há milhares de profissionais com 30 ou 40 anos de profissão que se mantêm no salário mínimo. V.F.