A Segurança Social (SS) está a retirar dos hospitais as pessoas que já tiveram alta clínica mas que se mantinham internadas por falta de resposta extra-hospitalar. Em Maio deste ano, e segundo a Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares (APAH), havia 1500 camas ocupadas pelos chamados “internamentos sociais”, alguns dos quais perduram meses e até anos, o que representa uma pesada factura para o Serviço Nacional de Saúde. Agora, e porque a pandemia tornou urgente a desocupação de camas nos hospitais, o Instituto de Segurança Social adoptou “medidas extraordinárias” para retirar estes doentes - maioritariamente idosos sem retaguarda familiar - dos hospitais, integrando-os em lares e estruturas da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI), a um ritmo que surpreendeu os próprios hospitais.
Uma equipa nacional, que combina elementos dos ministérios da Saúde e da Segurança Social, tem vindo a “definir circuitos e agilizar procedimentos” para conseguir aumentar os lugares disponíveis para estas pessoas internadas por “motivos sociais”, quer nos lares de idosos quer nas estruturas da RNCCI, o que implicou um alargamento dos acordos de cooperação e a criação de “um maior número de vagas sociais”, nomeadamente ao nível dos cuidados continuados de saúde mental, conforme apurou o PÚBLICO junto do Instituto de Segurança Social.
De uma só vez, no Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, por exemplo, saíram quarta-feira dez destes utentes. Ainda assim, o hospital continua a aguardar resposta para 15 outros casos. Entre estes, três já foram sinalizados para integração numa estrutura residencial para idosos, dois aguardam resposta no âmbito da saúde mental e outros dois têm covid-19 mas não têm capacidade de isolamento no domicílio. No Hospital Amadora-Sintra, que serve um universo de 600 mil utentes, subsistem oito pessoas “à espera de uma resposta”, mas fonte daquele hospital asseverou ao PÚBLICO que “a situação já foi muito pior”. “Com a pressão da pandemia tem havido mais articulação no sentido de aliviar estas camas”, declarou.
Do mesmo modo, e ainda que sem quantificar, o Hospital Garcia de Orta garante que tem feito um “esforço diário e contínuo” para encaminhar estes utentes para lares ou para estruturas da rede nacional de cuidados continuados, para “libertar mais rapidamente camas hospitalares para os doentes agudos que delas necessitam”. Apesar disso, a Administração Regional de Saúde de Lisboa adiantou ao PÚBLICO que, na passada terça-feira, se contavam 130 pessoas internadas e identificadas como casos sociais nos 13 hospitais da sua área de influência com serviços de urgência geral a funcionar. “A grande maioria são pessoas dependentes, sendo que 63 (48,5%) do total têm 80 ou mais anos”, especificou aquela ARS.
É um desperdício de camas hospitalares, de custo diário elevado, e que deveriam estar dedicadas a doentes que, por vezes, ficam a aguardar vaga no serviço de urgênciaJosé Barros, director clínico do Centro Hospitalar Universitário do Porto
A ordem para libertar os hospitais destes “doentes” também se fez sentir no Porto. No Hospital de São João (HSJ), por exemplo, 16 pessoas que permaneciam no hospital desde há mais de um ano foram há duas semanas integradas num lar. “Ficámos com outras 16 pessoas, uma das quais está à guarda do hospital desde 2018, à espera de uma solução”, precisou a directora do serviço social do HSJ, Alexandra Duarte.
Porque “o problema da falta de resposta atempada por parte da Segurança Social se arrasta há muitos anos e é muito anterior à pandemia”, como sublinha aquela responsável, muitos hospitais encontraram formas alternativas de contornar o problema da ocupação indevida de camas hospitalares nas respectivas unidades. No caso do HSJ, há um contrato com uma unidade de saúde privada, na Trofa, que permite que estes utentes sejam transferidos, desocupando camas que são necessárias para os doentes. “Estes utentes continuam à guarda do hospital mas estão fisicamente noutra unidade”, explicita Alexandra Duarte. No caso do Hospital Amadora-Sintra, a solução foi “contratualizar” cerca de 30 camas num lar. “É um custo que o hospital assume para garantir que tem ali uma resposta quando se torna necessário desocupar camas”, adiantou fonte daquele hospital.
As contas da APAH apontavam, em Maio, os referidos 1500 internamentos inapropriados, o que correspondia então a 8,7% do total de internamentos. Um dia num hospital público custa perto de 300 euros em média. “Cerca de um em cada dez internamentos são desnecessários e poderíamos estar a prestar cuidados mais adequados fora das instituições a estes doentes”, enfatizou então o representante dos administradores hospitalares, Alexandre Lourenço.
“Um desperdício de camas”
No Plano da Saúde para o Outono-Inverno 2020/21, apresentado no dia 21 de Setembro, e para "maximizar a resposta e a capacidade hospitalar para a actividade não-covid”, o Governo propunha-se reforçar “o papel das equipas de gestão na articulação com o sector social de forma a evitar o prolongamento por motivos sociais” e sustentava que, neste âmbito, “a criação de hospitais de retaguarda, especialmente nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto constitui uma medida eficaz de melhoria da eficiência”. O PÚBLICO procurou saber junto do Ministério da Saúde se estes hospitais vão ou não avançar, e de que forma é que estes se coadunam com a retirada destes doentes dos hospitais pela Segurança Social, mas não obteve resposta.
Para a directora do serviço social do HSJ estes hospitais de retaguarda não são necessários, conquanto a Segurança Social cumpra o que está previsto no plano de articulação entre os ministérios da Saúde e da Segurança Social. “Se assim fosse, nem era preciso vir uma pandemia para resolver estas situações”, declara Alexandra Duarte, para lembrar que, quando não existam vagas nos lares da rede solidária, “a legislação contempla o pagamento em lar lucrativo, o que é, aliás, o que tem acontecido à maior parte destes utentes”.
O director clínico do Centro Hospitalar Universitário do Porto (CHUP), José Barros, também acha que os hospitais de retaguarda não resolvem o problema. “Pode ser uma solução transitória, mas estes doentes não precisam de mais hospital”, declarou, para explicitar que o mais eficaz será aumentar a rede nacional de estruturas residenciais mediada pela Segurança Social.
No CHUP, que integra o Hospital de Santo António, o problema reduziu-se agora para metade, com a transferência, há cerca de duas semanas, de 25 utentes para lares de idosos. Entre os 26 utentes que permanecem “inapropriadamente hospitalizados”, e que aguardam a transição para uma estrutura residencial, metade têm mais de 80 anos de idade. “Quinze viviam literalmente sós. Todos são dependentes, dos quais dois por doença mental”, descreve ainda aquele responsável clínico, para explicitar que “a maioria não tem família ou desligou-se dela há muito tempo”. “Alguns viviam em condições indignas ou mesmo na rua: o hospital não pode devolvê-los a essas condições”, acrescentou ainda José Barros.
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Daqueles 26 utentes, dois permanecem no hospital há dois anos. “É um desperdício de camas hospitalares, de custo diário elevado, e que deveriam estar dedicadas a doentes que, por vezes, ficam a aguardar vaga no serviço de urgência”, critica ainda o director clínico do CHUP, apontando o risco acrescido de infecções inerente a hospitalizações prolongadas.