Subsidiação do serviço por parte das autarquias aumentou ligeiramente e já ia em cerca de 75 milhões de euros, em 2019. Despesa municipal com o serviço vai aumentar substancialmente já em 2021.
Em 163 municípios portugueses aquilo que os cidadãos pagam de tarifa de resíduos urbanos (RU) cobre menos de 90% dos custos que a respectiva autarquia tem com o tratamento do lixo. Segundo o último relatório da entidade reguladora do sector da água e resíduos (ERSAR), até há várias autarquias que cobram acima do que gastam com estas tarefas, mas o défice de cobertura do serviço rondava em 2019 os 75 milhões de euros. Quer o Governo, quer os ambientalistas da Zero consideram a situação preocupante por não respeitar o princípio do poluidor-pagador e por não induzir qualquer mudança de comportamento, em favor de um aumento da reciclagem.
O último relatório Anual dos Serviços de Águas e Resíduos em Portugal, que usa dados de 2019, mostra, como noutros sectores de actividade, um país a várias velocidades, no domínio da gestão em baixa dos resíduos sólidos urbanos, que é feita, maioritariamente, à escala municipal. Enquanto na designada alta, os sistemas multimunicipais que tratam os RU têm, em média, contas equilibradas – ainda que com algumas discrepâncias – os municípios que recorrem a estes serviços, entregando esses resíduos para tratamento, não fazem reflectir, da mesma forma, essa e outras despesas na factura que cobram mensalmente aos seus munícipes.
Receitas cobrem 83% da despesa total
Na alta, a taxa de cobertura média andava nos 101%, apesar de uma das empresas, a AMCAL (Associação dos Municípios do Alentejo Central), ter uma cobertura de apenas 39%, segundo o relatório. Já na baixa, mesmo com vários municípios a cobrar bem acima dos 100% dos gastos que têm com o serviço (Aveiro, por exemplo, cobrava 157%), a média de cobertura nacional fixou-se nos 83% e há até um município, Figueira de Castelo Rodrigo, com uma taxa de cobertura de zero. Como em anos anteriores, estes resultados não representam, contudo, todo o país, tendo em conta que não responderam 29 das 253 entidades gestoras em baixa (que são municípios, empresas municipais ou, nalguns casos, empresas intermunicipais).
Este indicador tem ainda assim o condão de nos mostrar quão diferente é esta realidade no território. Nas contas feitas aos dados fornecidos por 89% das entidades que gerem RU em baixa, a despesa em 2019 rondou os 444 milhões de euros. Já as receitas obtidas por via da tarifa cobrada aos munícipes são de apenas 344 milhões de euros, cobrindo 77,5% daqueles custos. Outras receitas atiram, no entanto, os proveitos totais para 369 milhões, o que leva à taxa de cobertura de 83% calculada pela ERSAR.
Em todas as regiões (Norte, Centro e Lisboa, Alentejo e Algarve), a ERSAR detecta um padrão: os municípios com áreas predominantemente urbanas têm em média uma taxa de cobertura superior aos municípios de áreas predominantemente rurais, havendo 57 câmaras que não chegam sequer a cobrir metade da despesa. A isto não é alheio o facto de os custos relativos das recolhas ser superior em áreas de baixa densidade e povoamento disperso, de o rendimento das famílias ser, nestas zonas, em média, inferior, e de muitos destes municípios subsidiarem quer o preço da água quer, por inerência, a tarifa de resíduos sólidos, cujos valores estão indexados.
Regulador considera situação “insatisfatória"
Esta subsidiação acontece também em municípios mais urbanos, e decorre das opções que cada executivo autárquico toma. Mas a entidade reguladora considera “insatisfatória” esta situação que coloca o encargo médio de cada utilizador nos 61,5 euros anuais, tendo em conta que, no campo da gestão dos resíduos urbanos, o país está a falhar as metas europeias inscritas nos seus próprios documentos estratégicos, e, para conseguir cumprir, vai ser preciso aumentar a despesa com recolha selectiva de resíduos. Que tem tido piores resultados precisamente em territórios menos povoados e mais envelhecidos.
Além disso, a Taxa de Gestão de Resíduos (TGR) duplicou e passa, desde Janeiro deste ano, a penalizar com 22 euros cada tonelada de RU depositada em aterro, e esse valor aumentará até chegar aos 40 euros em 2025. Num país em que quase 60% dos resíduos ainda acaba num aterro, e que está por isso longe da meta de 10% prevista para 2035, esta evolução da TGR vai ter um impacto enorme nas contas das autarquias com os RU e, enquanto nada mudar, portanto, o défice na cobertura das receitas sobre as despesas aumentará substancialmente.
A Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) entende, contudo, “que não é desta forma que se incentiva a redução da produção de resíduos”. Em Novembro passado, num parecer sobre o novo Regime Geral de Gestão de Resíduos, a associação considerava que “este aumento do valor da TGR a assumir pelos municípios terá efeitos muito negativos, uma vez que tais custos se repercutirão, necessariamente, nos tarifários que os municípios e as respectivas entidades gestoras vão aplicar e, em última linha, nas famílias e nas empresas, sobrecarregando ainda mais os orçamentos respectivos, podendo inclusive colocar em causa a sustentabilidade do sector dos resíduos.
Ambientalistas preocupados
Para os ambientalistas da Zero, que já analisaram, também, o último relatório da ERSAR, há vários dados preocupantes a ter em conta. Um deles, explica Paulo Lucas ao PÚBLICO, é que o indicador de cobertura piorou, de 86% para 83%, entre 2017 e 2019. A associação lamenta que haja municípios que cobram valores excessivamente altos (acima dos 120%), o que também merece correcção, acreditam, mas a sua maior preocupação é o facto de só 53 entidades, entre as 224 que responderam, terem taxas de cobertura entre os 90 e os 110%. Entre as restantes autarquias que partilharam informação com o regulador, o panorama é de subsidiação da tarifa, o que os preocupa.
Os ambientalistas consideram que isso vai contra o princípio do poluidor-pagador previsto na Lei de Bases do Ambiente, e desresponsabiliza os cidadãos do dever de contribuírem para as metas nacionais de prevenção e reciclagem de resíduos. Por outro lado, se não separarem mais – o que passa, também, por aderirem à recolha selectiva dos chamados biorresíduos, a nova grande preocupação do país – os portugueses vão provocar um aumento da despesa do respectivo município com a TGR. E como se viu na reacção da ANMP, ou este acomoda o rombo nas contas, ou o distribui pelos residentes, ainda que acautelando tarifas sociais para os agregados familiares mais pobres (como acontece na água).
Mas a questão da indexação do lixo à água é, em si, outro problema. Portugal continua a marcar passo na criação de tarifários próprios para os resíduos, que penalizem apenas o lixo indiferenciado que se produz (Pay as you Throw, em inglês) e que, onde existem, são um grande estímulo à separação para reciclagem. Mas, nota a própria ERSAR “verifica-se, contudo, resistência por parte das entidades gestoras à implementação de sistemas PAYT, pese embora as recomendações e orientações apresentadas nos últimos dez anos em diversos instrumentos, a nível nacional, comunitário e da OCDE e o sucesso alcançado em muitos países. Com efeito, regista-se um número reduzido de exemplos de projectos deste tipo, em que se incluem projectos-piloto”, lê-se no relatório.
País tem um “caminho das pedras” pela frente
A secretária de Estado do Ambiente lamenta que o PAYT demore a generalizar-se em Portugal, e considera que a subsidiação da tarifa não contribui, de facto, para que muitos portugueses tenham noção dos custos relacionados com a gestão do lixo que produzem e o seu comportamento pessoal não se reflicta na conta mensal. Face ao fracasso no cumprimento de boa parte das metas, o país, assume Inês Costa, tem pela frente “um caminho das pedras”, que vai ser obrigado a percorrer num tempo bastante curto, e ainda que nem todos os municípios estejam obrigados a níveis de investimento semelhantes, será necessário também que aqueles que trabalham melhor vejam isso reflectido no que pagam aos sistemas responsáveis pela gestão em alta, afirmou ao PÚBLICO.
Para atingirmos a meta de reciclagem de 65% de resíduos, em 2035, nos próximos anos, os municípios e outras entidades que gerem a recolha de lixo em baixa vão ter um acréscimo de despesa com o serviço, fruto, desde logo, da obrigatoriedade de se implementar, até 2025, um sistema de recolha do lixo orgânico. Vão poder contar, para isso, com fundos comunitários e apoios do Fundo Ambiental (que se alimenta, também, da TGR), que poderão mitigar o investimento à partida, mas não deixam de ter, no dia-a-dia, custos com novos circuitos de recolha, sejam eles executados pelos próprios ou entregues a concessionários privados.
O aumento da separação e recolha de biorresíduos tem um impacto muito importante na qualidade do composto que se produz com ele, e na diminuição da contaminação das embalagens de vidro, plástico e cartão, melhorando a sua taxa de reciclagem efectiva. E tudo isto acabará por diminuir o lixo indiferenciado que produzimos e que acaba num aterro (pagando a totalidade da TGR) ou segue para incineração (pagando 25% do valor da TGR).
Mas, a recolha selectiva do lixo orgânico é dispendiosa e o modelo mais eficaz, o porta-a-porta, deverá ficar reservado para áreas eminentemente urbanas, onde começa a disseminar-se. No resto do país, a opção passará por diminuir as entregas destes resíduos aos sistemas de tratamento, fomentando, em larga escala, a compostagem doméstica ou a compostagem comunitária. O uso do composto no próprio local onde é produzido é, na verdade, um exemplo acabado de economia circular, e a forma de gerir resíduos com menor pegada ecológica. Mas será fácil pôr os portugueses a fazê-lo se não sentirem, nisso, qualquer vantagem financeira?