Ana Sá Lopes e Eunice Lourenço (Renascença), in Público on-line
A presidente do Conselho Nacional da Educação, Maria Emília Brederode Santos, teme que a pandemia venha a ter efeitos no abandono escolar.
Maria Emília Brederode Santos, a presidente do Conselho Nacional da Educação, acha que a escola digital, mesmo quando voltarem as aulas presenciais, veio para ficar. Na entrevista PÚBLICO/Renascença, que pode ouvir esta quinta-feira às 23 horas, está preocupada com as consequências no abandono escolar.
Já é possível identificar as consequências da pandemia na educação?
Provavelmente já é possível identificar alguns efeitos. Acho que nos demos todos conta do agravamento das desigualdades. De certa maneira, “descobrimos” as desigualdades que já existiam. Foram desocultadas, até parece que ninguém tinha dado por elas antes. Isso tornou-se muito mais evidente agora. Mas além dessa desocultação de uma coisa que já existia, é evidente que também nos demos conta que isto veio agravar as desigualdades. Há uma brecha digital, uma desigualdade perante os dispositivos digitais. Há muitas pessoas que não têm computador, nem acesso à rede. Não basta distribuir computadores, é preciso assegurar que a rede chegue a toda a parte. E sabemos que fora das grandes cidades, a rede não chega a toda a parte. Essa conclusão já se pode tirar. Mas há outras, que até podem ser positivas. Acho que nos demos conta de uma muito maior valorização da educação. Toda a gente está de acordo que a educação é muito importante e é um direito que é preciso assegurar. E eu não tenho a certeza de que, aqui há uns anos, a população portuguesa valorizasse tanto a educação. Isso com a pandemia revelou-se mais.
E há uma revalorização da educação como, pelo menos, equilibrador social, já que nem sempre é elevador.
Sim. E também uma valorização da escola, nas suas várias funções. De repente, a escola não é só para aprender e ensinar. Desempenha imensos papéis. Penso que aquilo de que os miúdos sentem mais falta é o seu papel na socialização, que é muito importante, porque eles também aprendem muito uns com os outros. Mas também o papel de “misturador” social, apesar do nosso urbanismo não ser muito conducente a isso.
Mas há uma maior mistura social do que noutras instituições e um papel de coesão da sociedade. E há um papel de custódia, que está a ser muito evidente com os miúdos pequeninos, para que os pais que estão a trabalhar saibam que há um sítio onde podem deixar os filhos em segurança e a aprender. Um papel também de âncora social, por exemplo, para imigrantes que chegam e não conhecem nada, a escola é um meio de contacto.
Mas não foi um ano perdido, pelo menos para os mais desfavorecidos?
Num contexto mais favorecido, não é desgraça nenhuma que a pessoa perca uns meses. Está a aprender outras coisas igualmente importantes. Mas para as crianças de meios desfavorecidos e em que os pais não possam estar a apoiar é muitíssimo mais grave. Há outro papel que a escola tem, felizmente para poucas crianças: as que são vítimas de maus-tratos ou de negligência e para quem a escola é o único contacto possível para saírem de uma situação terrível. E isso também nesta pandemia se revelou bastante. Daí que neste reconfinamento tenha havido o cuidado de abrir as escolas de acolhimento, que da outra vez foram só para filhos de profissionais da linha da frente e desta vez foram também abertas a crianças com necessidades específicas e a crianças sinalizadas pelas CCPJ. Abriram-se também às crianças em risco de abandono escolar. Acho que isso é positivo mas tem que se ter imenso cuidado... se o pôr essas crianças na escola não é estigmatizante para elas.
E eu gostava de apelar à comunicação social para se ter imenso cuidado quando se trata desse assunto. Estou a dizer isto porque saiu esta semana num jornal de referência uma fotografia na primeira página de uma criança em cima de um computador em que se dizia o nome, a idade, a escola que frequentava... É importante que se chame a atenção para que esta realidade existe, mas tem que se ter imenso cuidado para não dar esses factores de identificação porque podem ser muito estigmatizantes para a criança.
Mas esta revolução que aconteceu vai para um ano mostrou que a escola é capaz de dar o salto ou ainda ficou longe do que era necessário?
Sei que a escola foi muito capaz de responder quando ninguém estava à espera. Não havia computadores para todos, as pessoas não estavam formadas. E apesar de tudo houve um movimento muito grande da escola e da sociedade para conseguirem arranjar computadores ou outros meios - podem não ser computadores, os telemóveis são um meio fantástico e os miúdos usam mais. Houve movimentos muito interessantes de professores em rede. Os professores de informática ajudaram os outros. Foi um salto fantástico e a escola mostrou muito bem que era capaz de lidar com o imprevisto e com situações muito complicadas. Agora, claro que também houve problemas, desde os meninos que não se conseguiram encontrar, que deixaram de ter contacto com as escolas, até ao equipamento que não chega para todos, a rede...
Respondeu-se muito bem ao imprevisto, mas ao previsível já não se respondeu tão bem?
Passámos da fase heróica, em que todos respondemos o melhor possível e em que havia uma ilusão de que ia ser rápida, a uma fase de um grande cansaço, uma grande exaustão...
Mas isso não explica porque é que os computadores não chegaram a tempo...
Não sei dizer porque é que os computadores não chegaram a tempo. Acho que todos podíamos fazer melhor. Aqui não há boas soluções. Creio que era o Pacheco Pereira que dizia que caímos numa “indústria da indignação”. Há um excesso de indignação e insatisfação. Andamos à procura de culpados e de bodes expiatórios. Pessoalmente, não queria ir por aí.
Uma das coisas que dizia que se podia fazer melhor era a criatividade. O relatório do Conselho Nacional de Educação dizia que as aulas online não podiam ser uma repetição daquilo que existia presencialmente. Deram-se saltos digitais mas falta dar o salto da criatividade. Como é que se dá este salto numa altura em que está toda a gente cansada?
É difícil. E não é só o salto da criatividade. A própria formação não pode ser só digital. Acho que esta solução também veio reforçar muito o modelo um bocadinho antigo, o modelo muito transmissivo, muito centrado nos conteúdos. Mas mesmo nesse modelo, não o pondo em causa, sabemos que tem que ser mais pequeno, mais adequado à idade dos miúdos - se no presencial tem que ser adequado, à distância ainda mais. O tempo de atenção deles não é o mesmo. Tem que haver muito mais estímulos, um feedback muito mais imediato, tem que se estar sempre em cima, criar muitas interacções. Tem que se dar tempo para pensar. Tudo isso são conhecimentos de uma literacia digital.
Estes novos instrumentos digitais são muito úteis. São ferramentas que podem ser utilizadas na escola em ensino presencial e que são um excelente instrumento. Temos que pensar um bocadinho para quê. Para saber procurar informação, ter pensamento crítico para avaliar se aquela informação é fidedigna ou não. Depois, estes instrumentos também são muito bons para criar redes, contactos. E há outra dimensão que acho que é fantástica: a de qualquer pessoa poder produzir as suas mensagens...
Imagina uma escola mista, no futuro, que tenha as duas componentes?
Quase que diria que tenho a certeza de que a digitalização vai ficar como ferramenta de um ensino presencial que pode ser muito mais activo e muito mais autonomizante. O professor pode combinar com o aluno no início da semana as aprendizagens que vai fazer nessa semana e o miúdo fica responsável por essas aprendizagens. E no fim da semana faz o balanço com o professor. E isso tenho a certeza de que a digitalização da escola vai fornecer um instrumento precioso para que a pedagogia seja mais activa e criativa.
Mas isso também exige uma formação ainda maior dos professores?
A tal formação mediática que não é só técnica, não é só didáctica.
E quem fica para trás neste salto? Já falámos aqui das desigualdades... Como recuperar os que estão para ficar para trás nestes dois anos lectivos?
A preocupação é muito séria, esse é o problema grande. Mas acho que não é incompatível com estes métodos mais activos de utilizar o digital. Com mais ou menos atrasos, há-de se chegar ao apetrechamento tecnológico.
A parte da rede já me parece mais complicada, mas espero que se resolva. Esta parte de formação é a escola que vai ter que proporcionar. E é melhor para todos. Permite trazer questões polémicas - para as quais ainda não há uma resposta única e consensual - e acho que isso para os miúdos em condições mais vulneráveis é mais interessante. Pode agarrá-los mais. É menos normativo, não é uma coisa autoritária, é um saber em construção. Eles podem participar muito mais.
Está optimista? Mesmo que este tempo tenha deixado alguns em situação de desigualdade, é recuperável? Ou vamos precisar de um plano de recuperação para os que ficaram para trás por questões económicas e sociais?
Sim. Eu acho que é recuperar “quem”. Vamos tentar chegar a esses miúdos. Uma das coisas que se revelaram neste período é a falta que fazem os outros profissionais das escolas que não são só os professores. Os assistentes sociais, os mediadores, os psicólogos. Mas é preciso que haja profissionais que vão tentar encontrar esses meninos que desapareceram, que não mais foram vistos nas escolas. É obvio que é uma prioridade tentar reencontrá-los.
Aumentou o abandono escolar?
Ainda não se sabe. Os resultados de 2020 foram muito positivos, mas se calhar só mais tarde é que se vai saber os efeitos negativos sobre o abandono.
Estávamos com uma evolução positiva relativamente ao abandono escolar...
Óptima.
Os números do INE demonstram o número mais baixo de sempre de abandono escolar...
É fantástico, 8%, mais baixo que a meta da União Europeia.
Mas a pandemia pode inverter esta situação?
Exactamente. Confesso que estava à espera que nestes últimos dados isso já se sentisse. Mas não. Mas certamente que se vai sentir nos próximos anos.
É preciso ir à procura desses alunos... mas como se recupera mesmo aqueles que não desapareceram do radar da escola?
Havia um projecto que me parecia muito interessante e que não pôde ser posto em prática com a pandemia, que eram as tutorias ou mentorias, com miúdos mais velhos ligados a miúdos mais novos. Havia esse projecto como forma de combater o insucesso escolar e as dificuldades de aprendizagem. Espero que se possa retomar quando isto passar. Não sei se mesmo com a pandemia não se poderá utilizar... É uma questão de condições sanitárias seguras. Acho que é uma via muito interessante.
Às vezes critica-se muito as escolas que têm alunos de várias idades na mesma turma, sobretudo no primeiro ciclo. Mas as investigações em psicologia social mostravam que não era muito negativo. Claro que depende da organização. Mas o facto de um miúdo de menor desenvolvimento estar a trabalhar com um miúdo um bocadinho mais desenvolvido era muito positivo para os dois. Para o mais pequeno, porque o outro lhe tornava as coisas mais acessíveis do que um adulto. E muito positivo para o que ensina. A gente sabe isso: não há melhor maneira de aprender do que ter que ensinar. Essa ideia das tutorias, além de ser muito solidária, também é eficaz.
Já são cerca de 40% os alunos do secundário que estão na via profissional. Isto tem ajudado a combater o abandono escolar?
Tem ajudado imenso. Dedicámos a segunda parte do último “Estado da Educação”, que é uma espécie de retrato do sistema educativo do ano anterior, ao ensino profissional ou às vias de dupla certificação. De facto, a conclusão a que chegámos quando vimos a redução do abandono escolar e o aumento das vias da dupla certificação é que uma coisa contribuiu muito para a outra.
Uma curiosidade: tive a visita de uma investigadora japonesa que veio a Portugal para descobrir como é que nós tínhamos conseguido reduzir tão depressa o abandono escolar. E fizemos um levantamento: o aumento da escolaridade obrigatória, a diminuição do insucesso escolar - uma pessoa que está em insucesso tem mais tendência para abandonar. O próprio alargamento do pré-escolar. Sabe-se que tem influências a longo prazo no percurso educativo. Há vários factores, mas as vias de dupla certificação foram um dos factores mais importantes.
Mas o ensino profissional não é ainda visto como o “parente pobre"?
Ainda é, mas eu acho que devia ser visto como o parente rico. Os alunos que escolhem essa via ficam com o diploma do ensino secundário e um diploma profissional reconhecido a nível europeu.