26.2.21

Amnistia Internacional quer que Portugal inclua direitos humanos nas decisões da pandemia

Ana Tomás, in Contacto

Organismo alerta para impactos negativos da pandemia em grupos vulneráveis e já enviou várias cartas ao Governo a pedir a criação de um comité.

Os números de Portugal têm descido semana após semana e nos últimos dias recuado aos valores de outubro, porém, ainda não há data para alívio das restrições e o Presidente da República já começou ouvir os partidos para a renovação do estado de emergência até 16 de março.

Esta segunda-feira o Governo reuniu-se novamente com especialistas das áreas da saúde e da epidemiologia para discutir a evolução da pandemia no país e antecipar condições para o futuro desconfinamento, mas ainda com o confinamento no horizonte. Por isso, a Amnistia Internacional Portugal defende que outros organismos sejam ouvidos na ponderação de decisões que têm penalizado duramente os grupos sociais mais vulneráveis.

"Apoiamos as medidas de segurança e saúde pública que têm sido desenvolvidas e acreditamos que o que é necessário fazer para proteger a população deve ser feito. Contudo, a par das reuniões de peritos nessa área, devia também haver reuniões de peritos em direitos humanos", diz ao Contacto, Marta Lapa, diretora de investigação daquela estrutura.

Desde o início da pandemia que a Amnistia Internacional defende a criação de um comité de monitorização dos direitos humanos e já enviou três cartas ao Governo a pedir a criação desse grupo, a última no final de janeiro, quando entrou em vigor o segundo confinamento geral em Portugal. Segundo Marta Lapa, esse comité seria composto por peritos, "no sentido académico e também por representantes das comunidades dos grupos mais vulneráveis, porque são eles que têm informação em primeira mão, importante e útil nestas situações".

O objetivo deste grupo seria aconselhar o Governo, "ainda na fase em que as medidas de combate à pandemia estão a ser desenhadas", sobre o impacto que cada uma vai ter ou já está a ter em cada comunidade e no usufruto dos direitos humanos pelos cidadãos. Esse grupo, diz a representante da Amnistia, poderia contribuir, sugerindo "outras medidas" para ajudar a minorar consequências negativas, ao mesmo tempo que serviria para "divulgar informação e estatísticas, da parte do Governo, para mostrar como é que está ser gerido o impacto dos confinamentos nos direitos humanos, sobretudo das pessoas mais vulneráveis".

Na última carta enviada ao Executivo de António Costa, a Amnistia sinaliza alguns dos que foram particularmente atingidos durante a pandemia e cuja situação se agravou com mais um confinamento. Entre eles, Marta Lapa destaca o das pessoas com deficiência, "que viram serviços muito importantes para a sua autonomia, para o seu bem-estar e para o seu dia a dia, suspensos". "Isto inclui serviços de apoio à vida dependente, mas também terapias. Houve pessoas que regrediram na sua mobilidade física e também temos a informação de que houve pessoas com deficiência, institucionalizadas, que não saíram dos lares entre março e novembro. Aquele pequeno alívio que muitos de nós pudemos viver nos meses de verão, estas pessoas não puderam usufruir e agora estão novamente confinadas dentro desses espaços", refere, sinalizando que o emprego entre este segmento também recuou para os níveis de 2016, depois de uma evolução positiva.

Precários e muitas vezes esquecidos, os imigrantes são outro dos grupos em risco continuado nesta pandemia. "Houve, efetivamente, muitos que ficaram sem emprego e recebemos alguns pedidos de ajuda de pessoas que ficaram, de um momento para o outro, sem meios para alimentar as suas famílias. Pedidos bastante angustiantes e que parecem ter uma relação também com o aumento do número de sem-abrigo, que já se notou em 2020, pelo menos em Lisboa." Segundo noticiou o Público, no final do ano passado, mais de 140 pessoas passaram a pernoitar nas ruas em Lisboa, elevando para 356 as pessoas identificadas, pelas autoridades, nestas condições.

Outro dos segmentos populacionais cuja situação é preocupante, segundo a Amnistia, é o das mulheres, que viram os seus salários mais penalizados, em 2020, e viveram um agravamento da violência. "Temos dados que dizem que a violência doméstica aumentou durante a segunda vaga e que houve mulheres que sofreram violência doméstica pela primeira vez durante a pandemia". O cibercrime visando o sexo feminino também cresceu no último ano.

Outro grupo cuja exposição aos perigos da rede aumentou foi o das crianças, tendo os crimes sexuais contra menores, na internet, duplicado nesta fase. As crianças têm sido um dos segmentos que mais preocupações têm suscitado nas medidas tomadas contra a pandemia, com o fecho das escolas a ser solução de último recurso. "Tem não só impacto a nível da educação, como tem também impacto a nível social, porque as escolas funcionam como uma estrutura de apoio social muito importante. Há um seguimento que é feito por professores e funcionários que deixa de existir e uma criança que pertence a uma família mais frágil ou que tenha uma estrutura mais vulnerável vai estar particularmente exposta nesta altura", refere Marta Lapa.

Os governantes portugueses já sinalizaram que o desconfinamento deverá começar com a reabertura das escolas e, numa carta ao Executivo, centenas de médicos, professores, pais e investigadores pedem que essa reabertura aconteça de forma faseada a partir de 1 de março.

Aos grupos identificados, a que a Amnistia junta também os idosos e comunidades nómadas, como os ciganos, há situações transversais que passam pelas condições económicas e de habitação, que dificultam a própria capacidade de confinar. "Vimos notícias de pessoas sem condições para cumprir o isolamento, a dormir em guarda-fatos, no chão, porque tinham de se isolar dos seus familiares em casas pequenas onde isso não é possível", ilustra Marta Lapa.

Apesar das cartas enviadas ao Governo não terem tido, até agora, o seguimento pretendido, a Amnistia vai continuar a insistir na necessidade de atenuar os impactos negativos das medidas contra a pandemia nos mais vulneráveis. "Acreditamos que mais pode e deve ser feito e continuaremos a insistir nesse sentido, até que, finalmente, haja, por parte do Governo, alguma medida específica para dar aos direitos humanos a atenção que julgamos necessária."