Foram duas semanas de “uma espera frustrante e sufocante” para muitos brasileiros com bilhetes comprados para voos que deixaram de existir com a suspensão das ligações entre Portugal e o Brasil. Agora, como anunciado nesta sexta-feira, um voo extraordinário permitirá levar brasileiros para o Brasil e trazer portugueses para Portugal. Centenas de cidadãos da maior comunidade imigrante residente em Portugal viram os seus projectos em Portugal interrompidos pela crise da pandemia.
O problema de Suzana Alves é distinto dos outros por que estão a passar os cidadãos brasileiros a aguardar um regresso ao Brasil. Sentem-se presos, alguns em desespero, por já não terem dinheiro, casa própria, trabalho ou por se encontrarem numa condição de fragilidade física ou psíquica, por terem cirurgias marcadas ou porque os filhos estão a faltar às aulas no Brasil onde o ano lectivo começou no princípio de Fevereiro.
Muitos deles poderão agora embarcar no voo comercial extraordinário marcado para o dia 26 de Fevereiro, anunciado já ao fim da tarde de sexta-feira pela embaixada do Brasil. A realização do voo foi negociada entre os governos dos dois países, indica a nota publicada na página Facebook do Consulado-Geral do Brasil em Lisboa, que esclarece ainda que este é um voo privado e, como tal, os interessados terão que contactar directamente a companhia aérea onde têm passagem comprada.
Suzana Alves também aguarda um voo há vários dias. Mas a espera da família no estado do Paraná tem o peso de uma tragédia. “Vou ter de encontrar uma alternativa. Tenho toda a família lá, à minha espera, para a entrega das cinzas do corpo da irmã que morreu em Portugal. Foi um choque terrível para nós e isto está demorando muito.”
Nos últimos dias, a incerteza foi penosa, sobretudo enquanto o silêncio imperou nos consulados do Brasil em Lisboa, no Porto ou em Faro. Como ela, outras pessoas foram acolhidas por amigos, conhecidos ou famílias sem posses.
Durante este tempo, o consulado não abriu a porta. Por email ou telefone, só havia repostas automáticas, diz Ricardo Amaral Pessôa, presidente da Associação Brasileira em Portugal. “Várias pessoas já foram até ao consulado pedir ajuda. Ficaram na rua.”
"Por uma questão de humanidade”, o representante da maior comunidade imigrante, de 151 mil pessoas residentes, fez chegar uma missiva ao Exército, por aí ter conhecimentos pessoais mas também porque o Presidente Jair Bolsonaro é um militar reformado. O ofício para sensibilizar as autoridades a agirem perante a urgência da situação chegou poucos dias antes do anúncio deste voo especial entre Portugal e o Brasil.
Horas antes desse anúncio, o Governo português marcara para 27 de Fevereiro a realização de um voo de repatriamento, por razões humanitárias, de portugueses que estão no Brasil, como anunciado pelo Governo português esta sexta-feira. “O apelo final para os dois governos é ‘por favor conversem’”, dizia na quinta-feira ao PÚBLICO Marcela Gasperini, uma advogada de 27 anos que completou dois anos de mestrado em Portugal e já deveria estar de volta a São Paulo para honrar o seu contrato de trabalho.
Já é a segunda filha que a minha mãe enterra. Eu ligo, ela só chora. Só quero levar as cinzas para lhe fazermos um pequeno funeral lá em Curitiba, no estado do Paraná, e as minhas duas irmãs ficarem juntasSuzana Alves
Ao contrário de outros cidadãos que se emocionam a contar as circunstâncias vividas nestas duas semanas perante a decisão de Portugal suspender as ligações com o Brasil, no final de Janeiro, Suzana Souza, de 40 anos, fala com uma naturalidade desarmante da sua vinda a Portugal para tratar de assuntos relacionados com a morte da irmã.
Angelita Correa estava em Portugal desde 2016, onde casou e tinha uma vida estável. Desapareceu a 2 de Janeiro deste ano e o seu corpo foi encontrado dez dias depois. A Polícia Judiciária ainda investiga a morte sem a certeza de ter sido um crime de ódio por Angelita ser transexual.
“Já é a segunda filha que a minha mãe enterra. Eu ligo, ela só chora. Só quero levar as cinzas para lhe fazermos um pequeno funeral lá em Curitiba, no estado do Paraná, e as minhas duas irmãs ficarem juntas. Nem sei como lhe dizer que ainda vai demorar alguns dias. Foi muito trágica a forma como as suas duas filhas morreram. A mais velha foi assassinada pelo marido há 20 anos. Eu não estou a pedir nada ao Governo. Só que me deixe regressar. Para entrar em Portugal também foi difícil e burocrático por causa do visto de entrada. Agora, tenho de regressar depressa. Tenho esta missão, tenho o meu trabalho, o meu filho de nove anos, tenho a minha vida à minha espera.”
Multada por estar no aeroporto
Aline Kelle Rodrigues tem a filha de três anos ao colo, e os dois rapazes de 11 e 12 anos perto dela. Estão na casa de um casal brasileiro que Aline conhecia apenas de conversar pelo telefone desde que chegou em Fevereiro do ano passado. Foi a eles que recorreu quando a polícia a expulsou do aeroporto de Lisboa, na noite de segunda para terça-feira, dizendo-lhe que se não fosse embarcar não podia estar ali. Em 40 anos de vida nunca imaginou não ser apoiada numa tal situação.
“Há dever de recolhimento ao domicílio mas eu não tinha domicílio. A multa foi sem piedade, senti-me muito humilhada. Eu tinha tudo bem planeado. Marquei a viagem em Outubro para viajar a 8 de Fevereiro, que depois foi remarcada para 17 de Fevereiro. O aluguer da casa terminava quando eu já não estaria em Portugal, dia 15. Fui para o aeroporto nessa noite na esperança de encontrar uma outra possibilidade, uma alternativa. Os guichets todos estavam fechados. A multa é no valor de 200 euros que eu não vou poder pagar. Tenho 400 euros que não posso gastar para nós quatro, eu e os meus três filhos, fazermos o teste à covid-19 antes de embarcarmos, 72 horas antes, como é exigido. Ainda não sabemos quando. O dinheiro está contado para garantir cada detalhe necessário para regressarmos. Só precisamos de voltar a casa. Os bilhetes estão pagos, a bagagem extra também. Este regresso foi planeado em Outubro, pedi a transferência da escola daqui para a escola em Uberlândia, Minas Gerais. Os meus filhos já estão a faltar à escola. Sabendo da pandemia eu não teria vindo. Mesmo depois de acontecer não sabíamos que seria tão devastador, de como ficaria o mundo.”
Eu tinha tudo bem planeado. Marquei a viagem em Outubro para viajar a 8 de Fevereiro, que depois foi remarcada para 17 de Fevereiro?. O aluguer da casa terminava quando eu já não estaria em Portugal, dia 15Aline Rodrigues
"Vim de Minas Gerais para Portugal para procurar uma melhor condição de vida mas nada foi como eu imaginei. Perdi o meu emprego há três meses porque o casal para quem eu trabalhava cuidando da filha bebé, na Figueira da Foz, ficou desempregado e voltou para o Brasil. Não consegui ter os papéis para regularizar a minha situação e arranjar outro trabalho. Tenho de me ir embora. No Brasil, tenho a minha família que me ajuda com as crianças e com o que eu possa precisar.”
“Aos poucos, o sonho de viver em Portugal vai ficando cada vez mais longe"
No início, o consulado respondeu a Cindy Romão, mas não com a solução que ela procurava: voltar para o Brasil. “Respondeu com uma lista de postos onde é distribuída alimentação a pessoas sem-abrigo. Quando falei para eles eu estava na rua. O pior já passou. O pior foi isso e quando peguei a covid-19. Trabalhava num lar de idosos e fiquei sem o trabalho de imediato. Tive que sair do quarto onde pagava a renda de 400 euros quando fiquei curada. Fui para a rua. Quatro dias e quatro noites. Fiquei lá sentada na praça de Odivelas. Cochilei, mas não dormi. Uma família do Brasil acolheu-me na sua casa. É uma família muito humilde, tive que dar uma ajuda para eles. Já não tenho covid, e voltei para o lar. Mas estou na casa de uma família muito humilde e não quero ficar muito tempo. Tenho um bilhete pago para Campinas, São Paulo, a minha casa. Vim trabalhar para Portugal há três anos, perseguindo aquele sonho de que a vida ia ser melhor. Mas não é. Aqui não é aquele mar de rosas como a gente pensa quando está lá no Brasil. Eu lá tenho família, posso trabalhar como vendedora, tenho condições. Se eu tivesse conseguido regularizar-me, seria outra coisa. A minha intenção era ter dois empregos, ficar com um salário e mandar o outro para a minha família. Mas tudo ficou mais difícil com a pandemia. Tenho 27 anos mas já são muitos traumas. Vejo-me aqui, de novo, com crises de ansiedade, como as que tinha no Brasil. O remédio seria voltar para ver a minha mãe, abraçar os meus irmãos. Quando a gente chega aqui, a gente fica feliz, arranja residência, trabalho. Aos poucos, o sonho vai ficando cada vez mais longe, por vermos que não temos os nossos direitos. Se eu tivesse os meus direitos, um contrato de trabalho para regularizar a situação, talvez não houvesse tanta gente agora a querer ir embora.”
“Vim em busca de maior qualidade de vida e maior segurança”
A situação não seria tão má para Cláudia Soares se não se tivesse um compromisso, ao qual nunca pensou faltar, de começar a trabalhar no dia 1 de Março no seu novo emprego no Rio de Janeiro. A mãe tem problemas de saúde e tem sido difícil ter acompanhamento em Portugal. “No Brasil, eu consigo um plano de saúde para ela. Ela veio comigo e volta comigo. Eu vim em busca de uma qualidade de vida melhor, com mais segurança devido ao facto de eu morar no Rio de Janeiro. O apartamento que arrendámos no Bairro das Fontainhas em Cascais já foi entregue ao senhorio. Marquei a passagem em Janeiro para viajar em 19 de Fevereiro, dia da entrega da casa. Agora vamos para Almada. Tenho um casal de amigos que se disponibilizou para ficarmos num quarto na casa deles lá. Eu não poderia pagar a renda porque já estou sem trabalho. Na empresa onde comecei a trabalhar, havia a perspectiva de sermos aumentados. Com a crise, isso não aconteceu e ficou muito difícil para mim. Só estava a conseguir pagar o aluguer da casa. Passei por muitas dificuldades financeiras e isso deu-me o impulso. Decidimos voltar. Esta espera é terrível. Quando perguntei por mensagem se haveria voo de repatriamento como aquele que Portugal anunciou que iria fazer com os portugueses retidos no Brasil. A resposta foi: ‘Não há previsão’.”
"Fiz os exames para uma cirurgia no dia 4 de Fevereiro que já adiei por duas vezes"
Nunca houve dúvidas para Neli e Cláudio Bianchini: com o nascimento do bebé a 28 de Dezembro de 2020 viriam a Portugal mesmo debilitados por terem estado infectados com a covid-19. “A minha filha pediu-me ajuda com o bebé, marcámos e viemos. A gente faz economias para poder vir para Portugal e permanecer um mês. Agora, a situação estava a ficar insustentável. A agência remarcou para dia 3 de Março. Já temos marcação para dia 1 na Cruz Vermelha porque aí é mais barato para fazer o teste covid. A agência remarcou mas quem dá a palavra final é a TAP. E a TAP faz o que vier no decreto do Governo.”
Neli tinha uma cirurgia marcada para final de Fevereiro de reparação do seio direito depois de ter tido uma infecção. “Fiz todos os exames para a cirurgia programada para 4 de Fevereiro, pensando que ia chegar no dia 31 de Janeiro. Adiei uma vez e agora outra.” O casal, de 57 e 62 anos, veio quando os dois já estavam curados da covid e o teste deu negativo. Mas têm sequelas, dores de cabeça e no corpo e só se sentirão livres de uma sensação de pânico quando tiverem a certeza que embarcam no voo especial de dia 26.
“Percebo que ninguém do Brasil entre agora em Portugal”
Jhuliene Souza tem 20 anos, uma bebé de cinco meses e a necessidade de regressar à sua terra natal, Guarulhos, São Paulo, desde que o marido, português, perdeu o emprego há três meses. “A minha família no Brasil juntou-se para nos ajudar a comprar os bilhetes. Não é mais possível ficar aqui. Eu e centenas de brasileiros compartilhamos esta mesma situação, frustrante e sufocante, de estarmos presos aqui quando estávamos prestes a regressar.”
Vim trabalhar para Portugal há três anos, perseguindo aquele sonho de que a vida ia ser melhor. Mas não é. Aqui não é aquele mar de rosas como a gente pensa quando está lá no BrasilCindy Romão
O pior da pandemia foi o desconhecimento que ainda existia sobre o efeito da covid nas grávidas e os riscos de transmissão para o bebé. “O pior agora é não saber quando tudo voltará ao normal. Sabemos de muitos dos meus compatriotas que estão a dormir na rua, ou de favor na casa de outras pessoas, alguns já não têm o que comer, não têm de onde receber dinheiro pois deixaram seus trabalhos pensando que neste momento já estariam de volta ao Brasil.”
“Eu vim para Portugal em busca de uma nova experiência, tanto pessoal como profissional. Depois conheci o meu marido e fiquei aqui quase três anos.
Comprei passagens com a TAP em Dezembro para viajar dia 2 de Fevereiro e os voos foram suspensos poucos dias antes. Concordo totalmente que não se deixe ninguém entrar em Portugal para cuidar dos que aqui vivem, mas não deixar que a gente retorne para o nosso país, para a nossa casa? É simplesmente absurdo”, dizia Jhuliene antes de saber do voo especial negociado entre os dois governos de Portugal e Brasil para pessoas como ela poderem regressar ao seu país.