Raquel Albuquerque, in Expresso
Moratória no crédito à habitação tem permitido adiar as dificuldades económicas. Quando acabar, abre-se um “fosso” para milhares de famílias
Se os indicadores da privação material recentemente publicados ainda não traduzem um agravamento da situação económica das famílias em 2020 é, em grande parte, devido a medidas como a suspensão do pagamento das prestações da casa ao banco. Mas a moratória do crédito à habitação acaba no final de setembro e se até lá as famílias não conseguirem recuperar trabalho e rendimentos será impossível retomarem os pagamentos. É nessa altura que ficará à vista o impacto da pandemia nas condições de vida dos portugueses, o que exige desde já um planeamento dessa transição.
“As políticas públicas desenvolvidas como resposta à crise têm um papel fundamental ao amortecerem os efeitos imediatos da perda de rendimentos. Mas como é que vamos retirar essas medidas de forma a não termos uma tragédia social?”, questiona Carlos Farinha Rodrigues, professor no Instituto Superior de Economia e Gestão. “O fim destas medidas urgentes e temporárias não pode ser uma decisão burocrática. É preciso pensar na sua substituição, articulada com o processo de recuperação económica, à medida que o emprego for aumentando, para evitar que, de repente, haja um fosso para onde vão cair estas famílias que se mantiveram à tona.”
As instituições sociais continuam a assistir a um aumento dos pedidos de ajuda alimentar, de apoio para pagamento de rendas, de contas da luz, água e até de internet para garantir as aulas à distância. “Estamos longe de estar no pico da crise social. Ou há uma medida que consiga compensar a situação ou quando as pessoas tiverem de começar a pagar as prestações das casas vai ser terrível. E há ainda o fim das situações de lay-off que vão trazer muitas surpresas”, resume Rita Valadas, presidente da Cáritas Portuguesa, que já apoiou 8 mil famílias com cabazes e tickets para usar nos supermercados.
Somam-se também os pedidos de ajuda ao gabinete de apoio ao sobre-endividado da Deco, sobretudo desde o fim das moratórias dos créditos pessoais, em setembro do ano passado. Nos três últimos meses do ano, 40% dos novos pedidos de ajuda foram de famílias que não conseguiram retomar o pagamento desses créditos. Natália Nunes, coordenadora do gabinete, vê com preocupação esse balão de oxigénio a chegar ao fim. “O que está à vista em termos de pobreza só é menos grave porque ainda temos a moratória do crédito à habitação. A fase mais preocupante é quando terminar no final de setembro”, avisa. “Desde março que assistimos a uma diminuição dos rendimentos, seja pelo desemprego, por deixarem de receber horas extra, por situações de lay-off ou porque tinham rendimentos informais que desapareceram, seja de pequenos negócios, de alojamento local ou arrendamento.”
Muitas famílias começaram já a contactar a Deco preocupadas por não saberem como irão conseguir retomar o pagamento da prestações da casa em outubro. “Há um ano, muitas destas famílias tinham uma situação regular e estável do ponto de vista financeiro”, sublinha Natália Nunes. E é exatamente a esse cenário de dificuldades económicas transversais na sociedade que a Cáritas tem assistido. “Vemos entrar pela porta de pedir as pessoas que entravam pela porta de doar. Acho que a crise da saúde há de resolver-se primeiro que a económica e depois dessa ainda vamos estar a amparar a social. E o tempo que vai levar dependerá de onde se vai cair.”
ESTRATÉGIA PARA A POBREZA
Os dados recolhidos pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) entre abril e setembro de 2020 não refletem ainda um agravamento da privação monetária dos portugueses. Pelo contrário, o indicador que mede as dificuldades das famílias em garantir um conjunto de bens baixou de 15,1% em 2019 para 13,5% em 2020. Há apenas duas regiões — Algarve (19,5%) e Madeira (27,7%) — onde se registou um agravamento que poderá estar ligado à queda abrupta do emprego e receitas no turismo.
As melhorias no mercado de trabalho, alavancadas pelo turismo, tinham sido precisamente um dos contributos para uma redução da pobreza em 2019 para 16,2%. Só que o turismo tem sido um dos sectores mais afetados pela pandemia e confinamento. Rita Valadas recorda que logo em março e abril do ano passado as primeiras famílias a pedir ajuda estavam muito ligadas ao sector. “Eram pessoas não-assalariadas, que viviam cheias de esperança e de potencial em atividades ligadas ao turismo. Tinham rendimentos do alojamento local, de plataformas como a Uber ou de restaurantes e bares.” E o maior problema é que este é um dos sectores para os quais se estima uma recuperação mais lenta.
Neste momento está em elaboração a Estratégia Nacional de Combate à Pobreza, desde que em outubro o Governo criou uma comissão específica para esse efeito. Na opinião de Farinha Rodrigues, membro do grupo de trabalho, este documento não deve ser entendido como resposta à crise atual. “A estratégia não deverá ter como preocupação principal dar resposta a problemas pontuais que existem em determinado momento, mas aos problemas estruturais da pobreza. Deve, no entanto, garantir que as políticas públicas dispõem de mecanismos e de formas de atuar, mais ou menos automáticas, perante qualquer crise e qualquer emergência como a atual.”
NÚMEROS
1,7
milhões de portugueses chegaram a 2020 com menos de 540 euros por mês
2,5%
dos portugueses não conseguiram ter uma refeição de carne ou peixe a cada dois dias em 2020. Eram 2,3% em 2019, segundo o INE
1,5
milhões de euros foram já dados às famílias pela Cáritas, que lança esta semana o peditório nacional online