24.2.21

Pobreza infantil e acolhimento residencial: quando o foco está na criança e na transição para a vida autónoma e familiar

Sérgio Costa Araújo, opinião, Sapo24

Se as instituições e os seus técnicos munirem-se do conhecimento, da busca incessante das afinidades, e das ferramentas que favoreçam a participação, o caminho para a capacitação está ganho e com ela o objectivo maior: a bem-sucedida desinstitucionalização e/ou transição para a vida autónoma da criança e do jovem em acolhimento.

2019 e 2020 serão lembrados como os anos mais significativos da última década para a história do sistema de acolhimento português e, concretamente, para os direitos das crianças privadas de cuidados parentais. A lei 139 de 2019 estabelece o regime de acolhimento familiar, medida de promoção dos direitos e de protecção das crianças e jovens em perigo, tendo em consideração a lei 142 de 2015, que introduziu uma especial preferência da aplicação da medida de acolhimento familiar sobre a de acolhimento residencial, em especial para as crianças até aos seis anos de idade. A portaria nº 278-A de 2020, recentemente publicada, define os termos, condições e procedimentos do processo de candidatura, seleção, formação e avaliação das famílias de acolhimento, bem como o respetivo reconhecimento. Esta mudança representa uma mudança de paradigma na prestação de cuidados, por assumir, inequivocamente, o acolhimento familiar como uma prioridade face ao acolhimento residencial.

O Acolhimento Residencial em Portugal está hoje perante desafios acrescidos que obrigam a uma maior atenção e cuidado ao princípio da “desinstitucionalização”. Isto implica uma mudança nos modos de agir que passa a enfatizar mais os direitos da criança, nomeadamente o seu direito a crescer numa família e, claro está, na qualidade do encaminhamento que lhe é dada e que incluirá a facilitação de acesso a vários serviços, como educação, saúde e segurança social... Esta “atenção redobrada” não passará por uma abordagem unívoca ao processo de desinstitucionalização. Deve ser antes adaptada à criança e à medida de cada instituição. Deve ser vista como um esforço sistemático que abranja o desenvolvimento de uma gama ampla de serviços necessários para as crianças em acolhimento, mas também para as famílias e para o contexto mais alargado.

Fazendo eco de campanhas internacionais como a opening doors, ao contrário de se pensar em fechar as instituições de acolhimento residencial, estas deverão ver a sua acção reconfigurada, e de modo apoiado, o mais possível. No melhor interesse da criança, deverão ser feitos todos os esforços para reunir a criança com a família, e a família deve ter acesso a serviços relevantes que possam ajudar a criança a readaptar-se à vida familiar, caso seja esse o caso. O mesmo quando a perspectiva do jovem é a busca de uma vida independente.

Em 2013 foi adoptada pela primeira vez na União Europeia uma Recomendação: “Investir nas crianças para quebrar o ciclo vicioso da desigualdade”. Nela é sugerida aos Estados-membros que mobilizem indicadores, mas também instrumentos que reforcem os esforços conjuntos "para intensificar a luta contra a pobreza infantil e a exclusão social". A Recomendação assenta em três Pilares: acesso a recursos adequados (I); direito à participação (II) e acesso a serviços de qualidade (III). É neste último que pela primeira vez se sublinha a importância da qualidade das respostas ao nível dos sistemas de acolhimento, e onde se sugere a países como Portugal que deverão: “Reforçar os serviços de proteção das crianças e os serviços sociais em matéria de prevenção; ajudar as famílias a desenvolver competências parentais de modo não estigmatizante, assegurando simultaneamente que as crianças subtraídas à família cresçam num ambiente que corresponda às suas necessidades”. Ou seja, sugerem, entre outras:

“Fazer com que a pobreza nunca seja a única justificação para subtrair uma criança à família; procurar fazer com que as crianças possam permanecer junto dos pais, ou regressar para junto deles, ao suprir, por exemplo, as carências materiais da família;
Prever filtros adequados com o objetivo de evitar confiar crianças a instituições e prever o reexame regular dos casos de institucionalização;
Pôr termo à multiplicação das instituições destinadas a crianças privadas de cuidados parentais, privilegiando soluções de qualidade no âmbito de estruturas de proximidade e junto de famílias de acolhimento, tendo em conta a voz das crianças;
Garantir que as crianças privadas de cuidados parentais têm acesso a serviços de qualidade (tanto tradicionais como específicos) em matéria de saúde, educação, emprego, assistência social, segurança e habitação, nomeadamente durante a transição para a idade adulta.”

Um dos projectos mais significativos que decorre em contexto Europeu: carepath, cujo o foco é precisamente a perspectiva de saída da criança e do jovem entregue aos cuidados dos sistemas de acolhimento, refere a dificuldade dos sistemas providenciarem uma prestação de serviços de qualidade ao nível da prestação dos cuidados, do suporte terapêutico, no apoio psicossocial e a subsequente dificuldade de implementar práticas do interesse das crianças, bem como de metodologias participativas que envolvam a criança em todo o processo tendo em linha de conta as suas opiniões, idade e maturidade.

O encontro e reflexão promovido pela EAPN e pela PAJE em Dezembro de 2020, subordinado ao tema “acolhimento residencial: foco na criança e na transição para a vida autónoma”, e que teve como objectivos: partilhar experiências e estratégias de atuação/ intervenção; explorar formas e modelos de atuação que permitam repensar práticas institucionais mais inclusivas das crianças e jovens e produzir mudança das práticas instituídas, surge por isso num momento oportuno.

Deste encontro, onde os olhares dos intervenientes se entrecruzaram, sublinham-se ao nível mais macro, os desafios trazidos pela Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens (CNPDPCJ) a partir dos contributos do Relatório CASA 2019, cujo olhar se foca na criança e na transição para a vida activa:

I- Os desafios impostos pela legislação publicada: é destacado o decreto Lei 164/2019 de 25 de outubro - regime de execução do acolhimento residencial, reforçando a importância do trabalho articulado e cooperado entre os vários interventores.


II. O ajustamento da rede das respostas de acolhimento: é destacada a concretização dos projetos de autonomização dos jovens em acolhimento, que representam 39,6% do total de Projectos de Vida definidos, e que importa continuar a impulsionar o crescimento da rede dos apartamentos de autonomização. Igualmente a construção e consolidação de culturas organizacionais sólidas, centradas na garantia do efetivo exercício dos direitos e na satisfação das necessidades das crianças e dos jovens.

III. A satisfação das necessidades das crianças e jovens em acolhimento: é destacado que mais de metade (53%) dos jovens acolhidos com 15 e mais anos tem como projeto de vida a autonomização. Destaca-se o que refere o relatório CASA: “...importa desenvolver intervenções mais individualizadas, com atenções especificas ao género, aos problemas específicos, à deteção precoce de diferentes necessidades. Exige uma estreita coordenação entre as áreas da educação, saúde mental, segurança social e respostas de acolhimento no âmbito do sistema de promoção dos direitos e de protecção de crianças e jovens.”.

IV. A obrigatoriedade do trabalho com as famílias e redes de apoio: destaca-se que “...importa conseguir a colaboração das famílias, ouvir as crianças e jovens em todo o processo. Definir projetos de vida centrados no que é necessário para integrar as crianças e jovens na comunidade de forma segura, com laços familiares duradouros, mesmos nas situações em que não possam viver juntos.”

V. A produção de conhecimento e trabalho articulado com as Academias: é destacada a importância da qualificação da rede do sistema de acolhimento; direções capazes de construir e iniciar a implementação destas mudanças; programas a desenvolver baseados em evidências, com uma forte e estreita relação com a academia.

Segundo a CNPDPCJ, daqui resulta uma série de orientações para a boa prática neste género de intervenções:
A transição para a vida independente é um processo;
A importância da construção de um plano de transição;
Com os jovens, avaliar os seus pontos fortes e necessidades;
A importância de trabalhar com jovens para entender os impactos na sua vida das experiências traumáticas e como pode afetar a sua transição para a vida independente;
Os planos de transição, geralmente, concentram-se na logística da saída/aptidões instrumentais - casa, assistência médica, emprego etc. – mas é também fundamental os aspetos emocionais, psicológicos e de desenvolvimento que não podem ser esquecidos/negligenciados;
O planeamento deve ser guiado pelos desejos, esperanças e expectativas e sonhos dos jovens, mas com apoio do gestor de forma a gerir expectativas e garantir que os objetivos sejam atingíveis;
Ajudar os jovens a desenvolver conexões ao longo da vida também deve fazer parte do processo de planeamento de transição;
Acompanhamento pós-acolhimento, mentoria continua.

Torna-se então imperativo que toda a acção técnica tenha no seu centro a criança, juntamente com a multiplicidade das suas necessidades.

Organizações como a Eurochild, o Conselho da Europa, a Comissão Europeia, as Aldeias SOS Internacional, mostram-nos as atitudes técnicas de partida para que, vamos chamar-lhe, afinidades entre técnicos e crianças se possam construir e estreitar e que poderão partir, precisamente, da própria acção da instituição e do técnico-cuidador:
Uma maior e melhor compreensão dos direitos da criança e dos direitos humanos;
A capacidade de identificar limitações ou violações aos direitos das crianças;
Assumir uma perspectiva centrada na criança e no jovem e uma visão das crianças e dos jovens como "pessoas na sua totalidade";
Adoptar uma postura técnica que passe por uma mente mais aberta, arejada, vontade de experimentar novas formas de trabalhar e a motivação para o fazer.

Apenas uma abordagem institucional amplamente comprometida com a concretização plena dos direitos destas crianças e jovens será reconhecida por elas como suficientemente securativa. Só com esta base será possível a construção dessas afinidades.

Com a adopção em 1989, na Organização das Nações Unidas, da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, a criança e o jovem passaram a ser considerados como cidadãos dotados da capacidade de serem titulares de direitos. Dos três grupos de direitos consagrados na Convenção, os direitos de participação assumem-se hoje como o grande desafio para as instituições de acolhimento, particularmente para aquelas que trabalham junto de crianças e jovens em situação de pobreza e exclusão. Este grupo de direitos incluem os direitos civis e políticos consagrados às crianças - ao nome e identidade, a serem consultadas e ouvidas, a terem acesso à informação, à liberdade de expressão, opinião e tomada de decisões.

Impõe-se hoje que as instituições de acolhimento residencial incorporem na sua acção ferramentas de escuta. É a este propósito motivo de destaque o “Vade Mecum”, sobre a participação de crianças e jovens em processos de tomada de decisões, editado pelo Eurochild em 2014. Nesse documento enumeram-se regras simples e acessíveis no modo como se devem abordar estas crianças e jovens:
Explicar porque é importante ouvir a sua opinião.
As crianças e jovens poderem falar por elas próprias através das suas próprias palavras, expressões e linguagem.
Evitar a utilização de termos técnicos e jargões.
Todos os participantes deverão estar em igualdade de oportunidades para a participação nos processos consultivos.
Os técnicos envolvidos no processo de consulta deverão ter uma atitude franca e aberta e dar um feedback claro e compreensivo.
Evitar tratar as crianças e os jovens como vítimas ou seres mais fracos.
Evitar a utilização de estereótipos de género;
Evitar situações que favoreçam a estereotipização e o enviesamento;
Confirmar o rigor do que a criança ou o jovem disseram.
Participar é voluntário.
As crianças e os jovens têm o direito de não responder e permanecer em silêncio.
Explicar que não existem perguntas e respostas correctas e incorrectas.
Garantir que existe tempo suficiente para pensar e responder.
Valorizar as opiniões e tomar como sendo sérias as suas visões.
Compreender a criança e o jovem no seu contexto.

Só assim iremos garantir a concretização dos 9 requisitos, já consensualizados, para activar o processo de participação de crianças:

1. Transparente e informativo.

2. Voluntário.

3. Respeitoso.

4. Relevante.

5. Animado com um ambiente e métodos de trabalho amigos da criança.

6. Inclusivo.

7. Apoiado por adultos com preparação.

8. Seguro e resiliente ao risco.

9. Responsável.


Se as instituições e os seus técnicos munirem-se do conhecimento, da busca incessante das afinidades, e das ferramentas que favoreçam a participação, o caminho para a capacitação está ganho e com ela o objectivo maior: a bem-sucedida desinstitucionalização e/ou transição para a vida autónoma da criança e do jovem em acolhimento.

Este texto foi redigido no âmbito do encontro de reflexão e de partilha de casas de acolhimento do Distrito de Bragança: “Acolhimento residencial: foco na criança e na transição para a vida autónoma”, organizado pela EAPN PORTUGAL / Rede Europeia Anti-Pobreza em Dezembro de 2020.

Intervieram neste encontro: Ivone Florêncio (Núcleo Distrital de Bragança da EAPN Portugal / Rede Europeia Anti-Pobreza); Catarina Matos (vice-presidente da mesa do conselho-geral do núcleo distrital de Bragança da EAPN Portugal / Rede Europeia Anti-Pobreza); Fátima Veiga (Departamento de Investigação e Projectos da EAPN Portugal / Rede Europeia Anti-Pobreza; Fernanda Almeida (coordenadora da Equipa Técnica Regional Norte da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens); Orlando Vaqueiro (diretor de segurança social do Centro Distrital de Bragança, do Instituto de Segurança Social, I.P.); Ana Cristina Barros (Polo de Coimbra do IAC - Instituto de Apoio à Criança); João Pedro Gaspar (mentor e coordenador da PAJE - Plataforma de Apoio a Jovens Ex-acolhidos); Carolina Té (jovem ex-acolhida) e Sérgio Costa Araújo, relator do encontro e autor do texto com as conclusões / recomendações.

Toda a documentação do encontro pode ser consultada aqui.