Sérgio Aníbal, in Público on-line
Governo explica taxa de execução da despesa pública mais baixa do que o normal em ano de pandemia com a quebra das receitas próprias dos organismos públicos e a consequente diminuição da despesa que podem realizar.
A taxa de execução da despesa pública inscrita no orçamento suplementar de 2020 apresentado pelo Governo em Junho é a mais baixa dos últimos dez anos. Um resultado que ocorre num momento de crise económica profunda e que o Governo diz que acontece por causa da quebra extraordinária que a pandemia provocou nas despesas financiadas com as receitas próprias dos organismos da Administração Pública.
A discussão sobre a execução do OE em 2020 tem estado acesa nas últimas semanas, com o Governo a ser acusado de estar a poupar nas despesas numa altura em que o apoio do Estado às empresas e às famílias se revela mais importante do que nunca. Em particular, o Executivo é criticado por não ter realizado todas as despesas que tinha sido autorizado a fazer pelo Parlamento.
João Leão tem respondido a essas críticas afirmando que os dados até agora divulgados da execução orçamental estão em contabilidade pública e que, nessa óptica, aquilo que está inscrito no OE não é uma estimativa, mas apenas um tecto de despesa. E que, por isso, afirma o ministro das Finanças, o normal é a execução ficar abaixo do orçamentado, algo que acontece em todos os orçamentos, sejam do Estado ou de autarquias.
Uma análise do PÚBLICO às taxas de execução dos orçamentos do Estado da última década confirma que, como diz João Leão, em todos os anos o nível da despesa pública executada ficou abaixo daquilo que tinha sido autorizado pelo Parlamento, com diferenças na ordem dos milhares de milhões de euros. No entanto, também é claramente visível que o ano de 2020 foi aquele em que esta diferença atingiu uma dimensão mais significativa.
Entre 2011 e 2019, usando os valores inscritos em cada OE em contabilidade pública e comparando-os com a despesa registada nos boletins de execução orçamental publicados em Janeiro pela Direcção Geral do Orçamento (DGO), a taxa de execução dos últimos orçamentos ficou invariavelmente entre os 96% e os 98%. Isto é, as Administrações Públicas – que incluem para além da Administração Central, também as autarquias, os governos regionais e os serviços e fundos autónomos – realizaram um total de despesa que ficou entre 2% e 4% abaixo do montante autorizado nos OE.
Em 2020, considerando o OE suplementar publicado em Junho, a taxa de execução da despesa foi consideravelmente mais baixa, de 93,2%. No OE suplementar estava inscrita uma despesa total de 101.302,6 milhões de euros, mas, de acordo com o boletim da DGO publicado em Janeiro, foi executada uma despesa de 94.436,6 milhões de euros, ou seja, menos 6866 milhões de euros.
Para que se tivesse registado uma taxa de execução mais próxima das dos outros anos da última década, de 96%, por exemplo, teria sido preciso executar mais 2800 milhões de euros de despesa.
O Ministério das Finanças, em resposta às questões colocadas pelo PÚBLICO, explica que esta menor taxa de execução orçamental durante o ano de 2020 se deve, não a uma tentativa de conter a despesa num ano em que o défice disparou, mas ao facto de, do lado da receita, se terem registado este ano alguns resultados extraordinários relacionados com a pandemia que acabaram por ter influência também na execução da despesa.
Em particular, as Finanças dizem que, se ao nível da receita de impostos da Administração Central, a execução até ficou acima do orçamentado, no que diz respeito às receitas próprias e aos fundos europeus, a taxa de execução foi de apenas 89%. As receitas próprias são receitas que diversos organismos públicos têm, como por exemplo as custas nos tribunais ou as taxas de reguladores, e sem as quais não podem realizar parte da despesa prevista no seu orçamento.
O Governo argumenta que este tipo de receita ressentiu-se com a pandemia e que “cerca de 76,2% do desvio registado na execução da despesa da Administração Central encontra explicação no resultado da receita própria e da receita de fundos europeus, ou seja, 4200 milhões do total de 5500 milhões de euros”. “Se corrigirmos deste último efeito, a taxa de execução teria sido de 97,5%, em linha com os anos anteriores”, garantem as Finanças.
Para além dos tectos
Para além dos tectos de despesa aprovados pelo Parlamento, em contabilidade pública, os Governo apresentam nos orçamentos do Estado as suas estimativas de quanto é que realmente prevêem gastar durante o ano. Neste caso, contudo, a informação relativa à execução apenas é apresentada em contabilidade nacional, e esta informação ainda não está disponível (apenas será divulgada pelo INE no final de Março).
Contudo, quando apresentou o OE para 2021 em Outubro, o Governo também apresentou, para o ano de 2020, uma estimativa de despesa em contabilidade pública. Neste caso, não se está a falar de tectos de despesa mas da previsão do Governo que era, a apenas três meses do final do ano, de uma despesa total das Administrações Públicas de 96.586 milhões de euros. Isto é, mesmo assim, a despesa acabou por ficar 2149 milhões de euros abaixo daquilo que estava a ser previsto em Outubro, um número que dá argumentos aos que defendem que o Governo poderia ter ido mais longe nos apoios orçamentais dados durante a crise.
Em favor do Governo está o facto de o ano passado ter sido, a vários níveis, de constante incerteza, por causa da pandemia. E um dos factores de incerteza esteve precisamente na forma como seriam executadas as medidas criadas para enfrentar a crise económica provocada pela covid-19.
Esta sexta-feira, na sua análise aos dados da execução orçamental, a Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) da Assembleia da República fez uma comparação entre as previsões de despesa que o Governo apresentou no Programa de Estabilidade e no OE suplementar para as medidas anti-covid e a forma como essas medidas foram executadas. Não chegou a uma conclusão para o valor global (em muitas das medidas, as previsões ou não foram divulgadas ou eram de despesa mensal), mas assinala que, por um lado, se verificou “uma sobreestimação considerável nas medidas covid-19 anunciadas no Programa de Estabilidade de 2020”, e por outro, que no OE suplementar “encontra-se uma heterogeneidade considerável na magnitude dos desvios nas medidas para as quais havia esta previsão”.
Há medidas que tiveram uma execução próxima da previsão, como a do layoff simplificado, houve outras cuja despesa superou as expectativas, como o subsídio de doença por infecção através do coronavírus e o apoio ao teletrabalho. Mas houve outras, como as da protecção aos trabalhadores independentes e informais, do Rendimento Social de Inserção COVID-19 ou do apoio à retoma progressiva, cuja execução orçamental ficou claramente abaixo do estimado.
No relatório, a UTAO fala ainda daquilo que diz ser “o alargamento dos desvios entre execução e previsão verificado neste ano, por comparação com os que existiram no passado”, reconhecendo que “uma parte dos erros de previsão em 2020 tem explicação na pandemia e, portanto, tem justificação na incerteza associada à mesma”. Ainda assim, avisa, este desvio "deve servir como alerta para a necessidade de reconstrução do pensamento e da acção estratégicos nos serviços públicos”.