19.2.21

Pobreza e privação voltaram a diminuir nos últimos dois anos. E depois da pandemia? “Dificuldades vão voltar a agravar-se”

Natália Faria, in Público on-line

A partir de informação recolhida entre Abril e Setembro de 2020, o INE constatou uma nova redução da proporção de portugueses que vivem em privação material para os 13,5%. Mas mesmo aqui há um indicador que se agravou: a dificuldade em custear uma refeição de carne ou de peixe a cada dois dias. É um alerta para a crise que começa a instalar-se, avisa investigador.

A taxa de privação material dos portugueses, que traduz desde a dificuldade em pagar a renda ou manter a casa aquecida até à incapacidade para custear um telemóvel, desceu quase dois pontos percentuais no ano passado: passou dos 15,1% de 2019 para os 13,5% em 2020. A partir da informação recolhida entre Abril e Setembro do ano passado, já com a pandemia instalada, mas com os respectivos efeitos colaterais ainda amortecidos pelos apoios assegurados pelo Governo, do layoff às moratórias, o INE confirma assim a tendência da redução da privação material verificada nos últimos anos (era de 18% em 2017).

Há, porém, um indicador que não apresentou melhorias em 2019 e 2020: a proporção de portugueses incapazes de custear uma refeição de carne ou de peixe de dois em dois dias aumentou de 2,3% em 2019 para 2,5% em 2020. Parece um pormenor, mas não é: “É talvez o indicador de resposta mais imediata e que permite antecipar alguns sinais da crise” que está à porta, antecipa o investigador Carlos Farinha Rodrigues.

Lembrando que a taxa de material é pouco específica, porque “dá o mesmo peso a uma família que não consiga pagar a casa a outra que não consiga custear as despesas de um telemóvel”, este especialista em pobreza e desigualdades lembra que “não ter dinheiro para pagar electricidade ou outras despesas constantes não terá sido ainda problemático, devido às moratórias de diversos tipos” que ajudaram a amortecer os efeitos da crise pandémica na vida dos portugueses.

“Ao contrário do que se passou com a crise anterior, em que toda a população sofreu cortes nos rendimentos, aqui não sofremos cortes nas reformas nem nos rendimentos dos funcionários públicos e tivemos mesmo um reforço de algumas transferências sociais”, começa por enfatizar Farinha Rodrigues, para lembrar que, porque as políticas públicas são temporárias e também porque muitos dos inquéritos do INE foram feitos na primeira metade de 2020, “o mais provável é que o inquérito do próximo ano mostre já um agravamento das condições de vida de muitos portugueses”.
Dois milhões em risco de pobreza ou exclusão

Outra boa notícia a pedir cautela na leitura é a diminuição do número de pessoas em risco de pobreza: 16,2% em 2019 contra os 17,2% de 2018. “É uma evolução bastante positiva em termos globais”, congratula-se o investigador do ISEG. Mas, neste caso e ao contrário do que se passa ao nível da privação material, os indicadores são relativos ao período pré-pandemia, pelo que a tendência para a redução da pobreza ver-se-á com muito mais probabilidade contrariada no próximo inquérito, a realizar numa altura em que se sentirão já de forma mais evidente os danos colaterais do novo coronavírus.

“O desemprego vai ter aqui um impacto muito significativo e o mais plausível é que tenhamos em 2020 um agravamento da pobreza, que pode ou não significar uma inversão de ciclo, consoante a recuperação económica que se vier a realizar depois de contida a pandemia”, acrescenta Carlos Farinha Rodrigues.

Convirá aqui lembrar num parêntesis que este indicador vai oscilando de ano para ano para corresponder sempre a 60% da mediana do rendimento por adulto de cada país. Em 2019, couberam aqui todos os que dispunham de rendimentos monetários líquidos anuais por adulto inferiores a 540 euros por mês (6480 euros por ano).

Ora, se o rendimento da população baixar na generalidade, esta “linha” de pobreza baixa também, o que poderá excluir imediatamente das estatísticas oficiais pessoas que, continuando pobres, auferem acima de 60% da mediana. “É plausível pensar-se que os rendimentos vão cair e que, por causa disso, as pessoas que eram pobres e que vão continuar a ser pobres, deixem de contar como tal”, admite.

Feita esta ressalva, o inquérito do INE fixa em mais de dois milhões os portugueses que em 2019 estavam em risco de pobreza ou exclusão social. Mas, sendo verdade que a taxa de risco de pobreza para os adultos em idade activa diminuiu para 14,2% em 2019 (menos dois pontos percentuais do que no ano anterior), o mesmo não se aplica aos menores de 18 anos e aos idosos: aqui, os riscos de pobreza aumentaram para 19,1% e 17,5%, respectivamente.

Entre os reformados, aliás, o risco de pobreza agravou-se ligeiramente dos 15,2% de 2018 para os 15,7% do ano seguinte.
Pobreza dispara para os 39,8% nas famílias com três ou mais crianças

Entre as famílias com crianças, normalmente um dos subgrupos mais fustigados pelas dificuldades materiais, a diminuição do risco de pobreza baixou 1,3 pontos percentuais, tendo-se fixado em 2019 nos 17%. Nas famílias sem crianças a cargo, esse valor também baixou, mas mais ligeiramente para os 15,4% (menos 0,8 pontos percentuais).

Seja como for, e como o próprio INE sublinha, “a presença de crianças num agregado familiar continuou em 2019 a estar associada a um risco de pobreza acrescido”. E, de facto, se nos fixarmos nos agregados compostos por um adulto com pelo menos uma criança dependente, a taxa de risco de pobreza sobe aos 25,5%. Já nas famílias constituídas por dois adultos com três ou mais crianças, o valor dispara para os 39,8%. “É uma brutalidade e aqui houve um agravamento de quase dez pontos percentuais”, esmiúça o investigador, para quem “as crianças em situação de pobreza exige medidas muito selectivas e muito dirigidas a este tipo de famílias”, num processo “complexo porque implica a conjugação da melhoria dos recursos monetários com questões ligadas à educação e saúde”.

A nota positiva aqui é que a percentagem de trabalhadores pobres baixou de 10,8% em 2018 para os 9,6% do ano seguinte. E, por outro lado, sublinha ainda Farinha Rodrigues, “a redução da taxa de pobreza ocorreu em todas as regiões do país, nomeadamente nas regiões autónomas”.

Em termos gerais, se considerássemos apenas os rendimentos do trabalho, de capital e transferências privadas, 42,4% dos portugueses estariam em risco de pobreza antes de a pandemia ter começado. Os rendimentos provenientes de pensões e reformas desagravam esse risco para os 21,9%. E só quando a isto somamos as transferências sociais relacionadas com a doença, a incapacidade, a família ou o desemprego é que a taxa desce em 5,7 pontos percentuais para os referidos 16,2%.

Apesar da diminuição do número de pessoas em risco de pobreza registado em 2019, o INE sublinha que naquele ano a taxa de intensidade da pobreza entre os que dela padecem se densificou ligeiramente para os 24,4%, contra os 22,4% do ano anterior.

Por outro lado, se à taxa de risco de pobreza somarmos os indivíduos que vivem em agregados com intensidade laboral per capita muito reduzida (todos aqueles em que os adultos trabalharam em média menos de 20% do tempo de trabalho possível) ou em situação de privação material severa, a proporção dos portugueses em risco fixa-se nos 19,8%, isto é, menos 1,8 pontos percentuais do que no ano anterior.
Saúde agravou-se

Sem surpresas num ano de pandemia, a necessidade não satisfeita de consultas médicas agravou-se e afectou 3,9% da população com 16 ou mais anos, em contraste com a tendência verificada nos cinco anos anteriores. Esta necessidade não suprida de consultas médicas não se prende exclusivamente com listas de espera ou dificuldades financeiras: mais de 60% dos inquiridos que apontaram esse problema indicaram motivos como a falta de tempo, a distância e o receio de médicos, hospitais e tratamentos, entre outros.

Por outro lado, a existência de doenças crónicas ou problemas de saúde prolongados aumentou no ano passado: 43,2% da população apontou a prevalência de doenças crónicas ou problemas de saúde susceptíveis de se prolongarem por mais de seis meses. As mulheres surgem como mais afectadas do que os homens (46,3% e 39,6%, respectivamente), sendo que entre os idosos a proporção dispara para os 73,8%, mais do que duplicando a população abaixo dos 65 anos de idade.

Ainda em termos de saúde, o aziago ano de 2020 foi, por outro lado, o que nos últimos cinco anos o que registou a maior proporção (43,2%) de pessoas com 16 e mais anos com morbilidade crónica, num indicador que se agravou em dois pontos percentuais relativamente ao ano anterior. O que não mudou foi a ligação entre saúde e pobreza: tomando como referência os rendimentos de 2019, o INE conclui que o risco de uma pessoa com doença crónica ou problema de saúde prolongado ser pobre situava-se 4,7 pontos percentuais acima de alguém sem privações de qualquer espécie.