22.2.21

Gaza: Mulheres lutam contra imposição de autorização de homens para viajar

Maria João Guimarães, in Público on-line

Organizações palestinianas dizem que veredicto de tribunal islâmico exigindo autorização de familiar para viagens de mulheres solteiras não respeita a Lei Básica da Palestina nem as convenções de direitos de que é signatária.

Um juiz de um tribunal islâmico de Gaza está a rever uma decisão polémica impondo a necessidade de autorização de um familiar para mulheres que queiram viajar, depois de uma onda de protestos de organizações de defesa de direitos humanos e de direitos de mulheres no território.

A medida, anunciada no domingo passado, é especialmente controversa, já que a Faixa de Gaza está sujeita a um bloqueio de Israel e do Egipto, que controlam tudo o que sai e o que entra no território e limitam muito a circulação de pessoas.

“É uma decisão chocante, é um erro que tem de ser corrigido”, disse ao PÚBLICO por telefone Mona Al-Shawa, responsável do departamento de direitos das mulheres no Palestinian Center for Human Rights (PCHR). Mona Al-Shawa, que faz parte de uma delegação que discutiu a decisão com o juiz do Supremo Conselho Judicial, sublinha que há vários pontos problemáticos e que o magistrado só parecia disponível para rever um deles.

O ponto que recebeu mais atenção foi a obrigação de uma mulher solteira receber autorização de um familiar masculino antes de viajar. Esta obrigação existia, por exemplo, na Arábia Saudita, mas foi entretanto revertida.

A decisão do tribunal islâmico sugere ainda que uma mulher casada precisaria da autorização do marido para viajar, e o juiz decretou também que os homens podem ser impedidos de viajar pelo seu pai ou avô, se isso significar “dano grave”, mas o parente teria de iniciar um procedimento em tribunal para o impedir de ir.

A primeira alteração foi deixar a necessidade prévia de autorização escrita mas manter a possibilidade de a viagem ser bloqueada por um parente masculino – algo que, aponta Mona Al-Shawa, já tende a ser feito na prática pelas autoridades que controlam as saídas.


Finalmente, o tribunal diz que em casos de casais divorciados em que a custódia seja detida pelo pai, este pode decidir sobre viagens de filhos sem a permissão da mãe. Mas se for a mãe a ter a custódia, ela terá de pedir autorização ao pai (e caso sejam casados, o pai também tem de dar autorização).

O juiz Hassan al-Jojo, que preside ao Supremo Conselho Judicial, diz que estas decisões são necessárias porque houve casos de raparigas que viajaram sem o conhecimento dos seus pais, e homens que deixaram mulheres e filhos sem ganha-pão.

Mona Al-Shawa enumera os modos em que este veredicto, ao apresentar medidas diferentes para homens e mulheres, desafia a lei básica palestiniana de 2003 (a base para uma futura Constituição de um Estado) e tratados internacionais de que a Palestina é signatária, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW). A medida está a ir além da aplicação da lei, diz ainda – o papel do tribunal não é fazer novas leis.

“Estamos sob bloqueio há 13 anos”, sublinha Mona Al-Shawa, notando a ironia de, com tantas restrições, haver mais uma a restringir a liberdade, em especial das mulheres.

“Já é suficiente mau que as políticas de Israel e do Egipto tenham deixado os palestinianos encurralados em Gaza durante tantos anos”, escreveu Rothna Begum, da Human Rights Watch, sobre a decisão. “Agora uma nova imposição do Supremo Conselho Judicial ainda impõe mais restrições às poucas mulheres que podem sair.” Esta decisão é “um terrível passo atrás”.

Mesmo as provisões que não discriminam o género deverão afectar mais as mulheres, diz Begum – é mais provável que as famílias ponham mais restrições ao movimento das mulheres. E mesmo antes desta medida, não será preciso falar com muitas jovens em Gaza até uma dizer que não foi estudar para fora porque os pais não permitiram.

O processo para qualquer habitante do território já é cheio de dificuldades, e um pedido de saída pode ser aprovado uma vez, e não autorizado noutra. Não se sabe em que espaço de tempo poderá vir a autorização de saída, se vier. Se for rejeitada, não será dado um motivo, contam os habitantes que já fizeram estes pedidos.
Mais mulheres a trabalhar

O veredicto coincide com a abertura do posto fronteiriço de Rafah, no Egipto, e Reham Owda, analista e especialista em direitos das mulheres, disse à Reuters que pode destinar-se a diminuir uma recente tendência de mulheres tentarem sair do território para conseguir emprego – as mulheres têm grande presença nas universidades e o território tem muito poucas oportunidades de emprego (a taxa de emprego é de 49%).

“O governo de Gaza quer limitar [as viagens] a restringir o movimento das mulheres que sejam ambiciosas e queiram sair à procura de formação ou trabalho, e escapar ao bloqueio israelita”, declarou Owda à Reuters.

As dificuldades económicas dos últimos anos mudaram a perspectiva em relação ao trabalho das mulheres, antes mais professoras ou enfermeiras, e as famílias, que viam com maus olhos outras profissões, mudaram de opinião. Algumas organizações, como a academia de código/incubadora de startups Gaza Sky Geeks, privilegiam mulheres e uma das apps com mais sucesso é de uma mulher.

Há ainda outro factor, a aproximação das eleições palestinianas. Há quem veja aqui um potencial problema para o Hamas, no poder desde 2007 (depois de ter vencido as eleições, uma disputa com a Fatah levou a uma luta entre as duas facções e à divisão do território, ficando o Hamas no poder em Gaza e a Fatah na Cisjordânia).

As condições de vida na Faixa de Gaza têm piorado com a falta de fornecimento regular de energia eléctrica e o bloqueio de não deixa entrar materiais básicos de construção (Israel diz que podem servir para fazer túneis, que já foram usados para ataques no seu território). Por outro lado, este poderia ser um modo de o movimento conseguir apoio da base mais conservadora, diz o diário britânico The Guardian.

Mona Al-Shawa está a ver as eleições com “alguma esperança” traga possibilidade de avançar medidas de protecção dos direitos das mulheres. Todos os partidos vão ter de ter 20% de mulheres, e não podem estar relegadas para o final das listas: tem de estar uma mulher nos três primeiros lugares, outra nos quatro seguintes, e assim sucessivamente.

93% de eleitores palestinianos registados para as próximas eleições

Quinze anos depois da última vez que foram às urnas, cerca de 93% dos palestinianos que podem votar inscreveram-se para participar nas próximas eleições legislativas de 22 de Maio e presidenciais de 31 de Julho, segundo a Comissão Central de Eleições.

Os palestinianos com mais de 18 anos podiam fazer o registo online, por telefone ou pessoalmente. Dos 2,8 milhões de palestinianos com direito a voto, registaram-se 2,6 milhões. Nas últimas eleições, em 2006, a percentagem foi de cerca de 80% dos 1,6 milhões de eleitores potenciais – mas apenas um milhão acabou por ir às urnas.

Essa votação acabou com uma vitória do movimento islamista Hamas, que concorreu pela primeira vez em eleições nacionais.

Isso levou a uma reacção internacional e uma luta entre o Hamas e a Fatah, do presidente Mahmoud Abbas. Esta terminou com a divisão do poder entre Gaza, a cargo do Hamas, e a Cisjordânia, que se manteve sob tutela da Fatah.

O anúncio das novas eleições foi encarado com um cepticismo generalizado, depois de décadas de inimizade entre as duas facções. Mahmoud Abbas, 85 anos, deverá recandidatar-se.

Em aberto está ainda a participação nas eleições dos palestinianos que vivem em Jerusalém Oriental, que Israel tomou em 1967 e anexou em 1980, numa acção nunca reconhecida pela comunidade internacional.

Em 2006, Israel permitiu que os palestinianos votassem em Jerusalém Oriental, que querem ter como capital de um futuro Estado (Israel, pelo seu lado, reivindica toda a cidade, una e indivisível, para sua capital).