17.2.21

Há escolas a deixar imigrantes sem acção social nem computador

Joana Gorjão Henriques, in Público on-line

Escolas não podem recusar imigrantes em situação irregular mas há quem esteja a excluir estes alunos dos apoios sociais e dos que precisam de receber computadores. “É como fechar-lhes a porta da escola”, denuncia Centro Padre Alves Correia. Governo esclarece “que estes alunos têm direito aos apoios no âmbito da acção social escolar” e que escolas têm que os incluir.

Daniel, 14 anos, passou o fim-de-semana anterior a chorar. “Todos os meus amigos têm computador menos eu.” Menos ele e os “amigos indianos”, corrige a seguir.

Do outro lado do telefone com o PÚBLICO nem sempre se ouve bem o que diz este jovem que veio da Guiné-Bissau com o pai. Com o confinamento, ficou isolado em casa enquanto o pai trabalha — na verdade, vivem num quarto em Odivelas pelo qual pagam 350 euros mensais, conta o pai, pedreiro.

A frequentar o 5.º ano, Daniel tem estudado através do telemóvel, sem acesso ao serviço da Google Classroom, ou seja, está fora da sala de aula. São os colegas que lhe enviam os trabalhos pelo WhatsApp. Mas convivem entre eles através da plataforma comum, “podem falar uns com os outros e eu não”, lamenta. Sente-se à parte. “Estou triste.” Na escola “não deram computador, disseram que eu não tinha escalão”.

O pai esclarece que na Escola Básica Carlos Paredes, na Póvoa de Santo Adrião, disseram que não podiam enquadrá-lo em nenhum escalão da Acção Social Escolar, e consequentemente ter acesso ao computador, porque não têm autorização de residência. Já entregaram os papéis no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), mas só têm entrevista marcada para Maio.
Daniel sente-se à parte. “Estou triste”. Na escola “não deram computador, disseram que eu não tinha escalão”.

A vários quilómetros dali, desta vez na Escola Bartolomeu Dias, em Sacavém, Jéssica, 10 anos, são-tomense, tem assistido às aulas através do telemóvel da tia. “Ela diz que consegue aprender as coisas mas não é a mesma coisa do que ver todo o mundo”, comenta a mãe. Às vezes a tia precisa do telemóvel, mas Jéssica está a ouvir o que diz o professor do outro lado e ela tem de esperar.

Na escola não lhe deram computador pelas mesmas razões que não deram a Daniel. À mãe disseram que se “tinha de desenrascar”.

A história repete-se com os filhos de Eva, na Escola Santos Mattos, na Amadora. Natural de Angola, Eva explica que tem um telefone pelo qual os dois meninos estão a tentar assistir às aulas. “O telefone está partido e nem dá para ter a câmara”, afirma. “Ontem conseguiram falar por áudio, hoje nem conseguiram entrar.”
“O telefone está partido e nem dá para ter a câmara. Ontem conseguiram falar por áudio, hoje nem conseguiram entrar”, diz a mãe de dois meninos

Kátia e Bruno perceberam que alguns colegas que vivem perto tinham recebido computadores da escola — e que eles não tinham direito. Perguntaram se podiam ter acesso e a resposta foi negativa, por não terem escalão. “Dizem que temos de escrever para o Ministério da Educação, mas acredito que vai levar muito tempo.” Kátia, a filha de Eva, comenta que tem conseguido aprender “mais ou menos”. “Fico muito distraída. Também não conseguimos fazer pesquisas”, desabafa. Eva não teve acesso ao apoio da acção social, acumulando meses de dívida dos almoços dos filhos na escola, e só recentemente é que a autarquia a contactou para ter acesso às refeições grátis.

Em Portugal, nenhuma escola pode negar inscrição de um aluno imigrante por estar em situação irregular. Daniel, Jéssica, Kátia e Bruno (todos nomes fictícios para proteger as suas identidades) são apenas quatro alunos entres dezenas que estão a ser deixados fora do sistema por escolas com a justificação de que não podem ser enquadrados em nenhum escalão de apoio porque não têm autorização de residência.

Todos estes pais já colocaram o processo de regularização a andar, aguardam o processamento pelo SEF. Isto deveria ser suficiente para que tivessem acesso aos direitos sociais, de acordo com dois despachos do Ministério da Administração Interna (MAI) que regulariza temporariamente todos os imigrantes com processos pendentes no SEF, publicado em Março e depois renovado em Novembro.

Além disso, também o Ministério da Educação (ME) emitiu uma directiva em 2015 que define que os alunos que estejam em situação irregular têm direito a medidas de acção social escolar “desde que, através dos recibos de vencimento, [as famílias] comprovem que se encontram nas condições de ser integrados nos escalões 1 ou 2 do abono de família”.

O próprio Ministério da Educação diz ao PÚBLICO que “sempre que é sinalizada alguma situação (ou dúvida)” como as que foram descritas, o ME “esclarece as escolas que estes alunos têm direito aos apoios no âmbito da acção social escolar”. O ME acrescenta que o mesmo despacho prevê que as escolas podem prestar “a título provisório”, os apoios previstos “até à decisão pelas entidades competentes sobre a atribuição das condições que conferem direito ao seu usufruto”.
Ministério da Educação diz que despacho prevê que as escolas podem prestar “a título provisório”, os apoios previstos “até à decisão pelas entidades competentes sobre a atribuição das condições que conferem direito ao seu usufruto”.

Já o Ministério da Presidência e da Modernização Administrativa diz que “não foi reportada junto do gabinete da Secretária de Estado para a Integração e as Migrações ou do Alto Comissariado para as Migrações” qualquer situação semelhante.
Pelo menos 36 crianças fora da sala de aula

Mas desde segunda-feira que Ana Mansoa, directora executiva do Centro Padre Alves Correia (CEPAC), organização que faz a promoção social de imigrantes e que acompanha cerca de 500 famílias, identificou pelo menos 36 crianças do 1.º ao 3.º ciclo que “não estão a participar nas aulas desde o confinamento”: “Não têm computadores, nem tablet, nem telemóveis ou sequer acesso à Internet. Alguns têm pais com telemóvel e tentaram assistir às aulas, mas é difícil”, comenta ao PÚBLICO.

Diz-se “chocada” com o que se está a passar: “Estamos a dizer aos mais vulneráveis que não tem direito a participar nas aulas. É como fechar-lhes a porta da escola”, lamenta. Deixa-se as crianças com “zero de interacção com a turma e numa segregação ainda maior. É uma injustiça social muito grande”.

Isto porque, segundo explica, apesar de essas 36 crianças terem todas um número de identificação fiscal, de algumas terem número de segurança social, há apenas uma com o apoio de acção social escolar. “É-lhes recusado porque os pais não têm autorização de residência, o que por si é uma incongruência com o que está publicado no despacho do Ministério da Educação.”
Das 36 crianças identificadas pelo CEPAC, há apenas uma com o apoio de acção social escolar. “Estamos a dizer aos mais vulneráveis que não tem direito a participar nas aulas. É como fechar-lhes a porta da escola”, lamenta Ana Mansoa.

A directora executiva refere que “há uma má interpretação da lei e uma assimetria nos apoios” e acusa as escolas de cometerem uma irregularidade. “Se o Governo teve o cuidado de produzir uma portaria que protege os imigrantes no acesso à saúde e à educação, as escolas estão a contrariar e a dizer que as crianças durante a pandemia não podem ir à escola.”

O PÚBLICO contactou as escolas referidas neste artigo, só teve resposta do agrupamento de Escolas de Alfornelos, à qual pertence a Escola Santos Mattos onde estão Kátia e Bruno. A directora Zélia Betes garante que apoia todos os alunos “sem distinção”. Afirma que os computadores são fornecidos pelo ME, que as listagens “vêm elaboradas com os nomes dos alunos e encarregados de educação de acordo com o respectivo escalão”, atribuído pela Segurança Social. Diz ainda que só chegaram computadores do ME para os alunos do escalão A (o mais baixo) do 1.º, 2.º e 3.º ciclos e alguns para o escalão B do 2.º e 3.º. Já a autarquia forneceu alguns que “têm sido cedidos aos alunos sem escalão”. De resto, sublinha, a escola recebe diariamente 37 estudantes para terem aulas síncronas e realizar trabalhos.

Do agrupamento de Escolas Pedro Alexandrino, à qual pertence a escola Carlos Paredes onde estuda Daniel, a funcionária que atendeu o telefonema e disse ser responsável pela distribuição dos computadores remeteu a questão para o ME e recusou encaminhar as perguntas à direcção. Apenas afirmou que os “computadores são do Ministério da Educação” e que estão a entregá-los aos meninos do escalão A. No agrupamento de Escolas Eduardo Gageiro, à qual pertence a Bartolomeu Dias e onde estuda Jéssica, não deram resposta ao email do PÚBLICO.

ME deve comunicar às escolas “procedimentos"

A forma como funciona a inclusão dos alunos no sistema de apoios nem sempre é clara e não parece estar completamente uniformizada. Por exemplo, a filha de Cláudia Afonso, angolana à espera de autorização de residência, integrou os cerca de 500 alunos do Agrupamento de Escolas D. Nuno Álvares Pereira, em Camarate, que receberam o computador com ligação à Internet. Esta escola tem 160 alunos que não têm a sua situação regularizada.

Aida Gonçalves, assistente social da escola que está no Programa Territórios Educativos de Intervenção Prioritária (TEIP), diz que em muitas situações coloca os meninos no escalão A, mesmo que não estejam regularizados. A directora, Marilisa Cambraia, contextualiza que o problema é quando os pais não têm recibos de vencimento que comprovem a sua situação económica porque muitos fazem pequenos serviços e recebem informalmente: “Mas não deixamos ninguém de fora”, afirma. Também é um facto que nem todos os alunos imigrantes sem documentação necessitam do apoio de acção escolar, refere ainda Aida Gonçalves.
"Se for muito frequente, então o Ministério da Educação deveria fazer chegar às escolas os procedimentos a ter nestas situações para que as escolas possam cumprir a lei", diz Filinto Lima

Para Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Directores e Agrupamentos de Escolas Públicas, “poderá existir algum desconhecimento em relação ao legislado”. “Se assim for em algumas escolas tem que ser corrigido e facilmente será. Não vejo má-fé. Ninguém tem prazer em discriminar. Queremos os alunos felizes. Se for muito frequente, então o ME deveria fazer chegar às escolas os procedimentos a ter nestas situações para que as escolas possam cumprir a lei.”

Mesmo nos casos em que não há forma de os encarregados de educação provarem a sua situação de vulnerabilidade este dirigente acredita que “tendo em conta o momento que estamos a viver, tem de haver um espírito de solidariedade": “O ME tem ainda mais obrigação de proteger esses cidadãos.” Sugere que se dê “autonomia aos directores para decidirem em conformidade com a situação”.

Na semana passada, o PÚBLICO noticiou, com base num levantamento da Associação Nacional dos Dirigentes Escolares, que são necessários 300 mil computadores para o ensino à distância. Na primeira semana de Fevereiro o ME anunciou que ia comprar mais 15 mil computadores, adicionados aos 100 mil já entregues a alunos carenciados do ensino secundário; o Governo esperava ainda a chegada de mais 335 mil que tinham tido entrega atrasada por causa de problemas com abastecimento de fabricantes.