17.2.21

Susana não queria pedir ajuda. Mas teve mesmo de pedi-la (enquanto isso a Bíblia está aberta nos Salmos, “oração por auxílio divino”)

Marta Gonçalves e Ana Baião, in Expresso

Na casa do Barreiro onde Bruno e Susana vivem há mantas nas janelas presas com molas - é para não deixar o frio entrar. Nesta casa de um só quarto, pequeno, vivem os dois e mais seis filhos entre os quatro meses e os 11 anos. Vão ser despejados

Susana não queria pedir ajuda. Mas teve mesmo de pedi-la (enquanto isso a Bíblia está aberta nos Salmos, “oração por auxílio divino”)

No parapeito da chaminé está uma pequena bíblia. O tempo trouxe àquelas folhas uma cor amarelada, o uso deixou-lhe as pontas rasgadas. A lombada está gasta de há tanto tempo o livro estar aberto entre as páginas 520 e 521 - são os Salmos, capítulo 22 ao 25, “oração por auxílio divino”. Na casa com apenas um quarto vivem oito pessoas: os pais Bruno e Susana Vaz, de 44 e 34 anos; os filhos Maísa, Yolene, Miguel, Daniela, Tiago e Davi. Nenhum dos adultos tem trabalho e o senhorio deu-lhes até ao final do mês para saírem.

“Já estamos a viver da caução. O senhorio diz que podemos ficar mas, claro, só se pagarmos a renda. Nós não temos dinheiro.” Bruno não se lembra de viver sem trabalhar. “É o que mais preciso: um emprego.” “Isso e a ajuda com os documentos”, interrompe Susana - ambos são angolanos e esperam a regularização em Portugal. Não pedem dinheiro, comida ou roupa para os filhos embora precisem. “Só quero uma vida normal como qualquer pessoa”, continua ele.

Susana é crente e é a fé que lhe vale. É pelo “profeta e estes anjinhos que tenho ao colo” que faz promessas e juras de que nunca pensou estar a viver nestas condições. No único quarto da casa montaram um varão com uma cortina para dividir o espaço: de um lado o beliche com duas camas individuais onde cabem quatro, do outro um berço para os gémeos e uma cama que parece de casal. “Tivemos de improvisar”, diz Bruno enquanto levanta a manta que tapa o colchão da cama. Afinal é apenas um colchão individual encostado a um amontoado de coisas macias que o faz parecer muito maior do que realmente é.

Há duas mantas presas à janela por molas para impedir o frio de entrar. Esta segunda-feira, com o dia de sol e aumento das temperaturas, já não escorrem gotas de água pelas paredes brancas cheias de verdete e bolor. “Os miúdos andam sempre engripados, tenho medo que isto lhes cause alguma doença”, diz Susana.

Na cozinha, junto ao fogão que não parece utilizado há vários dias, estão empilhadas quatro caixas de alumínio. “Vou duas vezes por dia à misericórdia. Dão-nos almoço e jantar para todos. Antes ainda compramos umas coisinhas para os lanches dos meninos, frutas e coisas dessas, mas agora só gastamos mesmo nas papas e no leite.”

“Nem espaço tenho para nos sentarmos todos a jantar. E isso é triste. É das coisas de que sinto mais falta”, lamenta Susana, que carrega sempre Tiago ou Davi ao colo. “No Natal ainda tentámos pôr a mesa para todos mas não dá.” Uns ficam à mesa, outros no sofá na marquise e junto à máquina de lavar a roupa, quando é preciso também ficam de pé, encostados ao pequeno balcão.

A entrada da casa de banho é uma porta de madeira tosca na cozinha. A sanita fica logo ali, a banheira é minúscula. Quando o Expresso entrou em casa da família Vaz, Daniela estava a meio de uma birra que se fazia ouvir do lado de fora por quem passa na rua. “É sempre a mesma coisa para ir tomar banho”, dizia a mãe enquanto secava o cabelo à menina enrolada na toalha em cima da cadeira da cozinha - não há espaço para o fazer noutro lado.

Maísa está no 5º ano, Yolene no 2º e Miguel na pré-primária. Estão todos em regime de ensino à distância. O pai arranjou-lhes um computador que comprou barato em segunda ou terceira mão. Um fica no computador quando funciona. Outro usa o telemóvel já partido da mãe, enquanto o terceiro fica em frente à televisão, na telescola.

O computador está bloqueado. À medida que passam junto ao computador montado na cozinha-escritório-sala de aula, Maísa e Miguel vão clicando em teclas como quem já está mais que habituado àquele acontecimento e sabe as manhas para, ainda que mal, a máquina volte a funcionar. “Está quase sempre a travar”, conta a mais velha dos seis irmãos. Ela é a mais sossegada, a que ajuda a mãe com os gémeos.

“Alguma vez lá pensei pedir ajuda? Nunca.” Sentada na beira da cama enquanto dá de mamar a Tiago, Susana fica com os olhos vermelhos e à beira das lágrimas. “Tive de ganhar coragem para fazer este apelo. Mas há um bem maior que nos faz engolir a vergonha. Pelos filhos fazemos tudo.”

O casal já pediu apoio à Segurança Social (SS) mas aguardam por respostas - no entanto, dizem-lhe que apenas ela, que tem número de SS por ter aberto atividade com recibos verdes, pode ser beneficiária. Na igreja perto de casa conseguiram roupas e alguns bens essenciais para os recém-nascidos. Ainda esta semana vão receber alguma ajuda alimentar do Cordão da Amizade, uma organização sem fins lucrativos. Além da incapacidade de continuarem a pagar a renda, a família tem ainda em atraso contas de eletricidade, água e internet. São cerca de €300 de dívidas e umas quantas ameaças de que os serviços podem ser cortados em breve por falta de pagamento.

“Estamos a tentar fazer tudo certinho. Uma vizinha minha já me avisou para ter cuidado ou ainda me aparecem aí para me levar os meninos. Isso é que não. Os meus filhos não vão para lado nenhum. Não os tive para os entregar. Os pais e filhos são para ficarem juntos em família”, diz Susana enquanto agarra Tiago ainda mais junto ao peito.

DOCUMENTOS, TRABALHO, CASA

“O meu marido já foi aqui às obras todas pedir que lhe dessem algum trabalho”, conta Susana enquanto mostra o quarto que partilha com o marido e os filhos, “não dão porque dizem que ele precisa de ter papéis para assinar um contrato”. A família tem entrevista marcada com o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras a 7 de abril. “Ele é um bom marido, a sério que é. Até se pode esquecer dele, mas comida em casa para os filhos nunca pode faltar.”

Susana e Bruno estão juntos há 12 anos. São os dois de Luanda, Angola. Ele trabalhou sempre em sonorização em rádios e televisões. Mais recentemente trabalhou no gabinete de comunicação e imagem do anterior Governo, presidido por José Eduardo dos Santos. “Quando veio o novo Executivo fomos todos despedidos.” Trabalhou depois numa produtora mas aquilo, acrescenta Susana, nunca foi emprego sério, “nem lhe fizeram um contrato”. Ela cozinha, tinha uma banca no mercado onde montava uma pequena esplanada e servia refeições. “O negócio acabou por falir”, explica Bruno.

O desejo por uma melhor educação e saúde para os filhos, assim como melhores empregos, levou o casal a vender todos os bens materiais que tinham. Mudaram-se para Lisboa. Chegaram a 27 de dezembro de 2019. E traziam dinheiro suficiente para se aguentarem uns tempos até Bruno e Susana encontrarem trabalho. E depois apareceu uma pandemia. A pandemia.

“Fechou tudo e ficámos confinados. Primeiro morámos em Alcântara, mas depois tivemos de sair e o preço das casas era impossível. Procurámos na Margem Sul porque era mais barato”, conta Bruno. Na zona do Barreiro começaram por alugar uma casa por €650 mas era demasiado cara e a meio de 2020 acabaram por se mudar para a casa onde agora vivem e de onde dentro de alguns dias vão ter de sair. A renda é de €400.

“Sem um contrato de trabalho e os documentos em dia não conseguimos arrendar uma casa. Desde já não temos dinheiro porque não conseguimos trabalhar e depois porque um contrato de arrendamento exige muitas coisas que não temos. Esta casa só a temos porque pagamos €2000 de caução e não temos qualquer recibo de arrendamento”, explica Susana. É a ironia da situação que a faz soltar uma gargalhada. “O meu marido está sempre a dizer que isto é um país organizado, onde são precisos papéis para tudo. Em Angola não havia nada disto e também foi por isso que viemos embora. Muitas coisas nós não fazemos ideia como se fazem ou como funcionam.”

Susana engravidou nos primeiros tempos em que o país fechou totalmente. Foram apanhados de surpresa. “Não sabíamos o que fazer, ponderámos tudo. Tínhamos medo de dar a mais um bebé estas condições de vida”, diz Bruno. Só já quase com quatro meses Susana conseguiu uma consulta. Outra surpresa: “eram gémeos”. “Nunca chorei tanto na minha vida como nesta gravidez, tive tanto medo do que ia acontecer.”

A mãe acabou por ser internada antes do fim da gestação. Passou pelos hospitais do Barreiro, Garcia de Orta até ser transferida para Coimbra por falta de camas. Voltou para o Garcia de Orta, em Almada, para ter os meninos às 33 semanas. “Estiveram dois meses internados, um mês na incubadora. Eu ainda fiquei três semanas também.”

Às vezes a mãe de Susana telefona, pede-lhe para vir visitar os netos e para vir ajudá-la. “Está sempre a dizer que quer vir para cá para ficar com os meninos em casa. Mas que condições tenho eu aqui para ela? Em Angola, nem a família de Susana nem a de Bruno sabem as condições em que estão a viver, que estão sem trabalho, sem dinheiro e à beira de serem despejados de casa. Não querem preocupar ninguém e têm vergonha do que estão a viver.

Daniela, que foi até há bem pouco tempo a mais nova da família, corre para todo lado e é a mais barulhenta. Corre de um lado para o outro, pede pelo carrinho de brincar e pela atenção do pai. “Ela é minha sombra”, diz Bruno. Mas é ao colo da mãe que acalma mais um ataque de choro. “Não quis almoçar, agora junta-se a fome com o sono”, diz Susana. “Te amo”, atira Daniela. Di-lo naquela voz fininha e de dicção pouco articulada de um bebé que começou há pouco a falar. Não saberá a força do que diz porque parece apenas repetir a expressão que ouve muitas vezes ali por casa. “Te amo”, volta a dizer. E continua. E repete. E outra vez.