Em 2019, os imigrantes contribuíram em 800 milhões de euros para a Segurança Social portuguesa e obtiveram 100 milhões de benefícios sociais, o que contraria a retórica populista.
Director-geral da Organização Internacional das Migrações (OIM), António Vitorino falou ao PÚBLICO a partir de uma Genebra com bom tempo. Mas o antigo comissário europeu para a Justiça e Assuntos Internos não confunde a bonança meteorológica suíça com o mundo que virá depois da pandemia planetária. Ainda assim, Vitorino não perde a esperança e considera, sem negar os riscos, acredita que esta crise é uma oportunidade de fazer algo novo e diferente.
Como vai a pandemia moldar o nosso futuro?
A pandemia vai alterar prioridades e deixar lastro durante anos. A humanidade é vulnerável, um pequeno vírus pôs-nos de joelhos. Tudo o que tem a ver com prevenção, saúde e com os impactos das alterações climáticas nos ecossistemas vai estar na primeira linha. Depois, temos as consequências duradouras que são, sobretudo, de ordem psicossocial e de saúde mental, depois desta provação. Em terceiro lugar, os impactos socioeconómicos. A pandemia agrava as desigualdades dentro de cada Estado, mas também entre Estados. Portanto, o efeito da pandemia é profundo e horizontal. Toca todas as áreas de actividade e todos os sítios do mundo.
Vai surgir uma geopolítica da covid-19?
A pandemia tornou algo incontestável: todos dependemos de todos. E como Guterres diz, ninguém está seguro enquanto não estivermos todos seguros. Enquanto não estiverem todos vacinados ou não houver uma significativa imunidade de grupo global. Nesse sentido, a interdependência e a colaboração internacional saíram reforçadas. Do ponto de vista político, é evidente que a vacinação já é um processo altamente politizado e que alguns países estão a utilizar, em função das suas agendas, o acesso às vacinas como forma de ganharem projecção em certas zonas do mundo, onde o acesso é mais difícil.
Também há o nacionalismo da vacina.
Há o nacionalismo da vacina muito evidente no Norte global. Mas vi que o Governo português decidiu que 5% das suas vacinas vão ser distribuídas pelos países africanos de expressão portuguesa e por Timor-Leste. Também o Canadá tem dito que as vacinas encomendadas em excesso poderão ser distribuídas por países com mais dificuldades de acesso. E há a iniciativa Covax que permitiu juntar 92 países para adquirir o acesso às vacinas de países de baixo e médio rendimento. Há nacionalismos e reforço da cooperação internacional. Além de haver países como a China e a Rússia que já estão a fazer uma diplomacia da vacina, permitindo vacinas a países em vias de desenvolvimento.
Já se interiorizou que sem vacinação global não há segurança sanitária?
Temos de distinguir entre o curto e o médio prazo. No curto prazo, acho que a resposta é a vacina. Também há avanços nos retrovirais que permitirão não apenas prevenir mas tratar dos casos mais graves da doença, mas neste momento a grande aposta a vacina. Todos esperamos que, quando atingirmos os 70% da população, isso signifique imunidade de grupo. Tal não nos deve dispensar de reflectir sobre como é que o mundo parou por causa de um pequenino vírus. E quais foram as causas e as origens e a estreita ligação entre alterações climáticas, o fim ou o decair da biodiversidade, entre o mundo animal e a alimentação humana. Todos esses elementos têm de ser tidos em conta. A única coisa de que eu tenho a certeza é de que haverá mais pandemias no futuro.
O vírus mudou a percepção das migrações?
Houve 200 países, regiões, áreas que decretaram fecho de fronteiras, confinamentos, restrições de viagens, a negação da mobilidade humana. Seja das migrações, do turismo, de negócios, até do transporte de mercadorias. A OIM teve de tratar, por exemplo, de uma fila de camiões de 150 quilómetros para garantir numa fronteira que os condutores eram testados antes de serem autorizados a passar. Houve uma redução dos fluxos migratórios regulares muito significativa. O departamento de Estudos Sociais e Económicos das Nações Unidas estima que, este ano, tenha havido menos dois milhões de migrantes do que no ano passado. Mas, em compensação, nós estimamos que haja cerca de 2,7 milhões de migrantes bloqueados nas fronteiras, com 1,2 milhões na região do Médio Oriente e do Norte de África e 1,1 milhões na Ásia do Sudoeste. Que em muitos casos iam regressar a casa por causa da pandemia e ficaram bloqueados em condições humanitárias difíceis. Quando as restrições se aligeirarem, tenderão a deslocar-se, haverá uma vaga migrações à medida que se restabeleça a mobilidade humana.
Corremos o risco de novos anátemas e de políticas securitárias e sanitárias?
O engenheiro Guterres falou sobre medidas autoritárias adoptadas a coberto da pandemia. Há uma coisa evidente: a economia do mundo não recuperará, se não houver liberdade de comércio, de transacções, mas também liberdade e mobilidade humana. Se deixarmos populações fora da vacinação, parte significativa da economia mundial ficará fechada sobre si própria, e isso não é útil para o crescimento mundial. Daí a importância da vacinação. O que vemos é que para atravessar fronteiras se exigem testes PCR, já se fala de um passaporte sanitário. Cada vez mais a liberdade de deslocação estará associada a critérios sanitários. Isto recoloca questões sérias, nem todas as pessoas e países do mundo terão o mesmo acesso aos mesmos cuidados de saúde, e nem todos terão acesso em igualdade à vacinação. É um exemplo que já estamos a viver: no dia em que falamos [24 de Fevereiro] houve a primeira distribuição de vacinas para um país africano, o Gana, quando já foram distribuídos uns 180 milhões de doses nos países do Norte global.
Haverá uma ordem mundial assente em doentes e sãos, sendo os primeiros pobres e os segundos ricos?
Corremos o risco de uma nova fractura baseada nas questões de saúde, que não podem ser isoladas das sociais. Muitas das razões de propagação do vírus entre as comunidades migrantes têm a ver com as suas condições de vida e de trabalho. Vivem concentrados em aglomerados — nas favelas do Brasil, nos bairros em redor da Cidade do México ou nos arredores da cidade de Lagos, na Nigéria — e há ligação entre vulnerabilidade sanitária e condições de vida, a pobreza, a desigualdade e a economia informal. São os que não podem ficar fechados em casa, porque, se não trabalham, não ganham e não têm protecção social. Essa fractura pode existir à escala global na mobilidade, no acesso a testes, à vacina e em exigências de que quem se desloque respeite esses critérios sanitários. As desigualdades já existiam, mas são agravadas pela pandemia, o que responsabiliza ainda mais as políticas públicas, incluindo a política de imigração, para combater a desigualdade como a primeira das prioridades. Por isso, o engenheiro Guterres fala em construir de novo, mas melhor, de forma mais respeitadora do ambiente e mais inclusiva do ponto de vista social.
A crise sanitária reforçou os populismos?
No início, houve a tentativa de imputar aos migrantes a “função” de distribuidores de vírus, mas essa retórica demagógica não funcionou. Foi rapidamente percebido que a expansão do vírus não tinha origem nos migrantes e que estes não potenciavam o impacto do vírus. Agora temos de ter consciência de que, com a recessão económica, os imigrantes continuam a ser para os populistas o bode expiatório fácil. Com as dificuldades económicas e sociais que vamos passar, admito um crescimento da retórica populista.
A administração Trump acabou há pouco. O medo da pandemia poderá ainda vitaminar esses sectores?
Não comento a vida interna de nenhum Estado, mas o que sublinho é que o Presidente Biden, na primeira semana em funções, tomou uma decisão fundamental: tornou claro que todos os imigrantes no território americano, incluindo os 11 milhões em situação irregular, eram abrangidos pela vacinação. Essa decisão corporiza a ideia de que é preciso respeitar a dignidade e os Direitos Humanos do acesso à saúde independentemente do seu estatuto legal. E que isso é feito não só pelo respeito aos imigrantes mas também pelo interesse da saúde pública da comunidade de acolhimento. Tenho expectativas de que esta administração siga uma política de migrações racional, ponderada, equilibrada, que permita responder às necessidades dos imigrantes mas também às da economia americana. Muita gente não sabe que, mesmo durante a pandemia, quando havia confinamento em muitos sítios do mundo, e não apenas nos Estados Unidos, houve autorizações para imigrantes trabalharem nas culturas sazonais, que senão estariam perdidas. Houve países que, para a colheita dos espargos, fretaram charters sem os quais a cultura seria perdida em 2020.
A reconstrução das relações transatlânticas deve ter uma vertente migratória?
Inevitavelmente. É importante que tenhamos consciência de que as migrações só são susceptíveis de serem boas para os imigrantes e para as sociedades de acolhimento se houver cooperação internacional. As declarações da nova administração norte-americana são no sentido de que o país está de volta à cooperação internacional expressa no Acordo de Paris, na Organização Mundial de Saúde e espero que os EUA possam vir a endossar o Pacto Global sobre Migrações Regulares, Seguras e Ordeiras adoptado em Marraquexe em 2018.
A compaixão desapareceu da prática social e política do Ocidente?
As sociedades estão cada vez mais polarizadas e fragmentadas do ponto de vista social, cultural, religioso, e o sentido de coesão social tem vindo a perder terreno. A questão é saber o que fazer para contrariar essa dinâmica negativa. Todos perdem, se se perderem os laços de solidariedade humana fundamentais à coesão da sociedade. Por isso, todas as discriminações baseadas na cor da pele, na religião, no território de origem, no género, ou na orientação sexual minam a coesão social a que há que dar resposta com políticas públicas e o envolvimento da sociedade civil.
O futuro é de esperança?
Quando há uma crise, muitas das questões que tínhamos por adquiridas são postas em causa. Isso também significa a oportunidade de pensarmos nos nossos erros. Se quisermos que prevaleça uma visão racional e responsável sobre o futuro, devemos olhar para a crise da pandemia como fonte de aprendizagem para fazer diferente. Quando temos de estar fechados em casa e só podemos ir ao supermercado, sabemos que no supermercado parte dos trabalhadores são imigrantes ou filhos de imigrantes. No sistema de saúde da Suíça, 50% dos médicos e enfermeiras são imigrantes ou filhos de imigrantes. Vemos que, para que haja produção agrícola, para comprarmos alimentos, alguém teve de continuar a trabalhar e que muitos desses trabalhadores são imigrantes. Talvez seja uma boa ocasião para pormos a mão na consciência, acabarmos com a retórica de que “eles vêm tirar-nos os nossos empregos” e compreendermos o contributo positivo que os imigrantes dão.
Como vê a sociedade portuguesa? Há riscos?
Está um pouco no mesmo comprimento de onda das sociedades europeias. Assiste-se a uma polarização acentuada e ao crescimento das desigualdades. Felizmente, até este momento, e espero que continue assim, há uma reserva de aceitação do papel que os imigrantes desempenham, fruto dos nossos laços históricos, mas também de gerações novas de imigrantes. Repare que a maior comunidade é a brasileira, mas em segundo lugar vem a indiana, que há cinco anos não era significativa. Espero que prevaleça a vocação universalista portuguesa de integrar com sucesso o contributo dos imigrantes. Em todo o lado há o crescimento da retórica populista, discriminatória, às vezes até com laivos de xenofobia e racismo. Em meu entender, tal tem de ser combatida com a evidência. Num recente relatório do Observatório das Migrações revelava-se que em 2019 os imigrantes contribuíram com cerca de 800 milhões de euros para a Segurança Social portuguesa e que dela retiraram 100 milhões de euros em benefícios sociais.