Delfina, Maria e Daniel nunca puseram um pé fora do lar. Fernanda só no Natal. Marco saiu de casa apenas para ir ao barbeiro e ao otorrino. Maria José sai para fazer tratamentos e andar. Nelson ainda deu umas escapadelas no verão, mas vindo o frio não se atreveu a sair do condomínio. São uma espécie de prisioneiros da covid-19. O relato da sua experiência de reclusão é intermediado, a itálico, pelo comentário de António Fonseca, professor da Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa, especializado em Psicologia do Desenvolvimento.
Delfina Leal não sai do Lar António Barbosa, da Santa Casa da Misericórdia de Paços de Ferreira, desde o dia 8 de Março de 2020. Naquele domingo, o coronavírus insinuou-se na conversa da família. Os primeiros casos tinham sido confirmados na segunda-feira, dia 2.
Já não se demorou naquele almoço com o sobrinho, a mulher e os filhos. “Comi e vim.” Estava convencida de que tudo passaria depressa, mas nunca mais foi à família, ao banco, ao contabilista ou ao cemitério pôr verduras na campa do marido. “O meu sobrinho liga e é com ele que eu falo. Uma vez vi-o. O trânsito estava a passar e ele estava lá em baixo e eu aqui em cima.”
É como se o 78º ano da sua vida não contasse. Mesmo assim, está serena. “Trabalhei, estive na Alemanha 23 anos, mas dou-me em casa.” Participa no exercício físico, nos jogos cognitivos, na oração. Rega as plantas perto do seu quarto. Alimenta uma gata que anda por ali. Amiúde, a “Camila” segue-a, “como se fosse um cãozinho”.
O encarceramento não a impediu de ter covid-19. No Outono, houve surto no lar. Entre os 58 idosos residentes, só oito ficaram livres de contágio. “O maior problema foi os intestinos. Colites. Também tive dores de cabeça. A comida não tem sabor. Ainda agora almocei e fiquei com um mau gosto na boca. Um amargo. Parece fel.”
Quando as visitas recomeçaram, à semana, à hora marcada, com um vidro, o sobrinho não arranjou horário compatível. No Natal, alguns saíram, como a amiga Palmira Ribeiro, de 89 anos, que estava doida para ir a Santo Tirso ver a bisneta e lá foi, apesar de tal a forçar a quarentena. Ela não. “A gente até tem medo de ir para a rua.”
Às vezes, pergunta-se para quê tanto sacrifício. “Se a gente morrer, o que é que a gente está cá a fazer? A gente já não está a fazer nada. A gente está aqui à espera. O meu marido não foi?” Ao ouvi-la dizer isto, a animadora Glória Ribeiro pede-lhe que desvie esse pensamento. Levou as duas doses de vacina. Um dia destes, há-de ver o sobrinho e os sobrinhos netos e a campa do marido.
["A pandemia veio pôr a nu o funcionamento dos lares. São lugares de grande inquietação afectiva. As pessoas estão muito sozinhas. As instituições têm pouco pessoal disponível para as ouvir contar a mesma história pela enésima vez, para as ajudar nos processos de luto. Parte-se do princípio que todas recebem visitas e que a pandemia as impediu, mas… há pessoas que estão meses sem visitas. Algumas nunca as tiveram. Já antes, a ideia de que os familiares não os podiam visitar era só meia verdade. Muitos lares têm horários mais restritivos do que os hospitais. A existência de horário de visitas em lares é algo que sempre me provocou desconforto. Para quê?”, questiona António Fonseca, professor da Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa, especializado em Psicologia do Desenvolvimento]
Uma grande solidão
Maria Fernanda Macedo, de 85 anos, não recebeu visita alguma. Já antes recebia muitíssimo poucas. “É qualquer coisa muito íntima que me faz não querer. Mas saía, ia visitar amigos e familiares. Ia ao médico. Ia ao cafezinho, ia ver as montras. Agora, não. Para ir ao dentista tenho de estar 15 dias no quarto fechada!”
No Natal foi a Lisboa ver a família. Desde o primeiro estado de emergência, só daquela vez cruzou o portão. Essa espécie de saída precária aliviou-a. “Foi o que me valeu. Estava a sentir muita solidão. Estava a perder o controlo. A nossa cabeça quando está lúcida trabalha muito, não é?”
O gosto pelas pequenas coisas esmoreceu. Gostava de ler jornais. A leitura perdeu graça. “Eu leio, mas chego a metade e já não me lembro do princípio!” Gostava de fazer crochet. “Não tenho linhas. Está tudo fechado!” Veste-se, penteia-se, maquilha-se e junta-se à sua amiga, Rosário Coelho, de 93 anos. “Passamos muito tempo no quarto a ver televisão ou a ouvir notícias.”
Nada a liga a Paços de Ferreira. Há falta de vagas nos lares das cidades, os lares das zonas mais rurais importam idosos. A irmã estava ali. “Eu vinha cá muitas vezes visitá-la. A minha ideia era ir para um lar algum dia que ficasse sozinha. Não queria acabar os meus dias abandonada. Ela disse-me para vir e eu vim.”
A irmã já não está ali. Fernanda cruza-se com pessoas de estrato social diferente daquele a que se habituara lá fora e isola-se ali dentro. A pandemia só veio agravar esta sensação de pessoa mal situada. “Há um desconforto total. Acho que a solidão faz mal a todos, mas nos velhos é pior.”
["Há uma acomodação aprendida. A pessoa acaba por se habituar, mas, quando falamos da importância de sair de casa ou dos lares, não é só para a pessoa estar no aniversário do neto ou do bisneto. A estimulação cognitiva faz-se através da diversidade de contactos. A pessoa é estimulada na medida em que é introduzida na vida social normal. Quando a tiramos daí, estamos a diminuir substancialmente as suas oportunidades de estimulação. A ausência de contactos também potencia sintomas de depressão, o que, por sua vez, leva a pior funcionamento cognitivo.”]
Um belo namoro
“Eu queria ver a minha mãe”, diz Maria da Costa Martins, de 59 anos. Está cega e um tanto surda em casa de um irmão. “Ao pé dela, falo-lhe ao ouvido. Pela voz, ela conhece-me. Ao telefone, ela pergunta: ‘É a minha Maria?’ E o meu irmão, a minha cunhada ou os meus sobrinhos dizem: ‘É.’” Nada lhe pode dizer sem intermediário.
Entrou debilitada no Lar António Barbosa há dois anos, na sequência de um processo de violência intrafamiliar. Daniel Moreira Fernandes, de 89 anos, deu-lhe muita força, emprestou-lhe uma bengala tripé e, com a ajuda dos técnicos e auxiliares, Maria recuperou. Agora corre tudo para cima e para baixo.
Enamoraram-se, Maria e Daniel. “Uma vez por semana, íamos a casa dele de táxi. Íamos de manhã e vínhamos à noite. Tem lá muita fruta. Íamos à fruta. Noutros dias, íamos a pé até à cidade. Íamos aos correios. Íamos à farmácia. Íamos ao parque. Íamos passear. Encontrava muita gente conhecida. Veio a pandemia, acabou tudo. A fronteira fechou. Não podemos sair.” Nem ao médico voltou. E não sabe o que é uma noite inteira de sono. Tantas vezes, ao passar a ronda, arregala os olhos e assim fica.
A companhia ajuda. “Não fazemos coisas feias”, brinca ele. Vão até à sala de convívio. “Ando a aprender a jogar dominó. Já lhe dou um jeito. Quero ser a parceira dele”, ri-se ela. “Damos uns passeios no recinto do lar.” Conversam. “Vou ao quarto dele. Tenho ordens da doutora. Posso ir lá. Até ao primeiro intervalo do Telejornal, estou lá.”
O surto de covid agravou tudo, embora se tivessem mantido assintomáticos. “Conforme estive aqui, conforme estive sempre”, assegura ele. “Tivemos um tempo dentro dos quartos”, torna ela. Só falavam por telefone. “Ele ia ao passadiço e eu, do quarto, via-o.” A ansiedade de Maria fustigava-a. “A pessoa desesperava. O que me valia era a Praça da Alegria. Dançava, cantava!”
Embora tenham tomado as duas doses de vacina, lá fora não há imunidade de grupo. “Gostava de ir por aí fora e de abraçar aquela gente toda”, diz ela. “Sei que agora não se pode abraçar ninguém, mas tenho muitas, muitas saudades de fazer isso! Tenho medo de nunca mais voltarmos ao tempo que tínhamos.”
["Não estamos a falar de pessoas com demência, afastadas da realidade, com dificuldade em situar-se no tempo e no espaço. Estamos a falar de pessoas conscientes, que estão a passar por uma situação desorganizadora das suas rotinas. É verdade que podem recorrer às tecnologias para falar com familiares e amigos, mas falta o estar com o outro, o tocar no outro, o dar um abraço ou um beijo sem que isso constitua um risco. Isso pode trazer trauma, mas a generalidade das pessoas ultrapassará este tempo. As pessoas são mais resilientes do que supomos. Nem todas sofrem da mesma forma. Algumas, com determinado tipo de personalidade, até estão felizes por estarem isoladas.”]
Uma dependência agravada
No último ano, o filho de Maria Amélia Dias só saiu de casa para ir ao barbeiro e ao otorrino. Ela teve um entupimento de canal lacrimal. O médico proibiu-a de andar ao frio e ela deixou de o levar ao Centro de Actividades Ocupacionais (CAO). Veio a pandemia e ficou a família reduzida àquele sexto andar de Matosinhos.
O CAO da APPCDM do Porto, como os outros, fechou em Março, reabriu em Maio, voltou a fechar no final de Janeiro, sem que Marco tornasse a frequentá-lo. Não é que a covid represente um risco acrescido para quem tem síndrome de Down, como ele. É que o pai sofreu uma traqueostomia. Usa uma cânula. “Não fala. Eu tenho de tratar de tudo. Tenho de proteger o pai e o filho.”
Amélia está exausta. A sua depressão, que já era crónica, “atingiu o auge”. Pouco sai. “Vou à padaria a correr.” Acompanha o marido às consultas. “Os vizinhos têm sido excepcionais. Vêm cá um casal ver se o Marco está bem. Ele tem noção de tudo, sabe o que pode ou não fazer.”
Sente que o filho está a regredir, sem as terapias do CAO. “Até a rotina de se levantar antes das 7h acabou. Não o vou levantar só para manter a rotina, porque também tenho de olhar pelo pai e tenho 75 anos.”
Marco dorme até às 10h30 ou 11h00. Senta-se na mesa de pequeno-almoço preparada de véspera. Come. E desenha, pinta, recorta, vê televisão. Gosta do canal infanto-juvenil Biggs. Adora a série de animação Dragon Ball. E entretém-se com programas de desporto. O wrestling fascina-o.
Pergunta-se-lhe se quer voltar ao CAO, que frequentou tantos dos seus 48 anos. “Está frio e chuva, trevada, não”, responde, apesar de não haver sinal de mau tempo. A mãe faz a pergunta de outra forma e ele volta a recusar. “Os meninos do Porto estão cheios de frio. Não há curso.”
Nunca gostou de sair de casa. “Saídas era para ir ao barbeiro. Se fosse a um restaurante, tínhamos de ir logo para casa. O mundo dele era a casa e o CAO.” Há um ano que o mundo dele é aquele apartamento. A semana passava, os monitores que lhe trouxeram desenhos quiseram levá-lo a dar uma volta e ele declinou. Esta sexta-feira, pela primeira vez, aceitou ir. “Gosta muito deles. É como se fossem família.”
A gestora do processo de Marco liga amiúde a Amélia a perguntar se precisa de ajuda. Podem levar Marco para um lar residencial uns dias para ela descansar. “Isso era matar o meu filho.” O regresso ao CAO terá de se fazer de forma gradual, como se fez com o infantário. “Ele nunca usufruiu tanta presença da mãe.”
["Desconfinar também significará reduzir o medo. Não seremos iguais. Somos resilientes, vamos conseguir ultrapassar a ferida que isto abriu, mas a história não nos abandona. Há pessoas que perderam familiares, amigos, vizinhos. São perdas irreparáveis. A imobilidade provoca perda de massa muscular que nos idosos pode ser irreversível. O desuso contribui para a perda de funcionalidade. Vamos ter mais pessoas com dificuldade em andar, com medo de se deslocar, de cair. Provavelmente, as pessoas vão adoptar comportamentos preventivos de disseminação de doenças, vão dar mais atenção à higienização das mãos, proteger-se com máscara, como na Ásia.”]
Um valente susto
Contra todas as possibilidades, Maria José Marrafa apanhou covid. Com uma recidiva de cancro de mama, metástases nos ossos, na coluna, nos pulmões, no fígado.
A professora de Português, de 54 anos, deixara de trabalhar em Janeiro de 2020. “Não conseguia corresponder. Sentia-me muito cansada.” Fechou-se em casa com o marido e a sogra. Desde que a pandemia começou, entra ali a empregada e pouco mais.
O marido, Manuel Pina, assumiu as compras. “Nunca mais entrei num supermercado.” O professor de Educação Visual e Tecnológica, de 62 anos, também está em casa, com baixa médica. Já teve um linfoma. Faz parte dos grupos de risco. “Tem sido o meu pilar. Ajuda-me em tudo.” A uns minutos de casa, em Oliveira de Azeméis, há uma área arborizada. O casal dá os seus passeios higiénicos com o cão, “Body”. “Faz-me bem tanto ao corpo como ao espírito.”
Maria José não se podia encerrar simplesmente. Não podia deixar de ir ao Instituto Português de Oncologia, ao Porto, fazer os tratamentos. No princípio, tudo lhe parecia estranho. “Controlo de entrada. Corredores vazios. Salas de espera vazias. Ver pessoas que estavam ali pela primeira vez sozinhas, sem apoio, causava-me impressão. Sentava-me sem tocar em nada. Tinha medo de tocar num puxado.”
No início do verão, um susto dos diabos. Um derrame pleural. “A situação evoluiu rapidamente”, conta. “Tive de ir para o hospital. A médica disse que havia suspeita de covid. E foi como se o mundo me tivesse caído. Estava com dificuldades respiratórias. Se tivesse covid, seria muito mau. Que aflição!” Enquanto esperava, isolada, viu o filme da sua vida. “Comecei a pensar nos momentos bons e nas pessoas que me traziam boas recordações. E foi assim que consegui suportar a aflição.” Se tivesse de listar os piores dias da sua vida, os daquele internamento estariam lá. Sozinha, com roupa do IPO, o olhar para o fim.
Depois de um susto tão grande, quando o vírus lhe entrou em casa, em Janeiro, até lhe pareceu que teve sorte. Dores musculares, um pouco de febre, um agravamento das dores nas costas, diarreia. “Não me posso queixar.” Nesta reclusão, ajuda ter hobbies. “Gosto de ler. Gosto de ouvir música. Gosto de ver filme e séries. Gosto de estar com o cão e com os gatos. Gosto de conversar ao telefone. Gosto de fazer palavras cruzadas.”
["Muitas vezes, as situações limite, como um ataque cardíaco ou um acidente vascular cerebral, fazem-nos valorizar o que temos. Seria bom que com isto as pessoas aprendessem a valorizar mais a vida social, as relações sociais, as relações afectivas. Foi um ano muito pobre do ponto de vista relacional, sobretudo para as pessoas mais velhos, para as pessoas com deficiência, para as crianças e jovens que vivem em instituições. As pessoas podem querer compensar este ano perdido. Eu próprio olho para muitas coisas que não fiz e quero fazer em dobro. É o cliché do: éramos felizes e não sabíamos.”]
O “normal” de alguns
Há quem viva uma vida inteira assim, na incerteza. Nelson Morais tinha menos de um ano quando recebeu o diagnóstico de Atrofia Muscular Espinhal. Há uns anos, desenvolveu Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica. Precisa de ventilação não invasiva principalmente durante o sono.
Não se rendeu à doença, que o atirou para uma cadeira de rodas. Com o apoio dos pais, estudou Ciência de Computadores. Especializou-se em “data mining e processamento de dados”.
Quando tudo começou, de segunda a sexta o investigador de 32 anos ia trabalhar para o Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência (INESC). O pai transportava-o numa viatura adaptada. Inscrevera-se no projecto-piloto de apoio à vida independente e tinha assistente pessoal quatro horas por dia.
Agora, está em teletrabalho. Dispensou o assistente social. Deixou de ir às sessões de fisioterapia. “Este tempo lembra-me o último semestre do mestrado”, diz. “Tal como agora, passava imenso tempo a trabalhar em casa no meu portátil. Era a minha janela para o mundo. Os contactos pessoais tinham sido drasticamente reduzidos. As saídas eram raras.”
No Verão, ainda foi “buscar inspiração ao pé do mar” e ainda passou uns dias “na terra”, uma aldeia de Montalegre. Desde que o frio chegou, fica-se pelo condomínio, em Vila Nova de Gaia. “A ironia foi ter passado a conseguir afastar-me um pouco mais de casa porque certos passeios se tornaram acessíveis, num ano em que a circulação esteve tão limitada para todos os cidadãos.”
De certo modo, é como se tivesse vivido sempre em confinamento. Nas suas palavras, “o confinamento é uma experiência do que é viver com mobilidade reduzida”. “Está quase tudo fechado. A pessoa está à porta, mas não pode entrar. Na incerteza, muitas ficam em casa.”
Que faz para se evadir? “Quem está em teletrabalho como eu, acaba por ter pouco tempo livre de segunda a sexta-feira”, diz. “O que sobra é aproveitado para ir ao cinema, ler, reflectir, escutar música, escrever. Quem se vê como um lobo solitário e aprendeu desde cedo a divertir-se sozinho não considera propriamente desafiante arranjar forma de se manter entretido.” Mas tem saudades de estar com as suas pessoas, de ir a festas, de trabalhar no INESC e de sair à hora do almoço para apanhar um pouco de sol no rosto, de estar com pessoas à volta de uma mesa a discutir, de falar com as pessoas na rua e, sobretudo, de não ter medo.
Já não se demorou naquele almoço com o sobrinho, a mulher e os filhos. “Comi e vim.” Estava convencida de que tudo passaria depressa, mas nunca mais foi à família, ao banco, ao contabilista ou ao cemitério pôr verduras na campa do marido. “O meu sobrinho liga e é com ele que eu falo. Uma vez vi-o. O trânsito estava a passar e ele estava lá em baixo e eu aqui em cima.”
É como se o 78º ano da sua vida não contasse. Mesmo assim, está serena. “Trabalhei, estive na Alemanha 23 anos, mas dou-me em casa.” Participa no exercício físico, nos jogos cognitivos, na oração. Rega as plantas perto do seu quarto. Alimenta uma gata que anda por ali. Amiúde, a “Camila” segue-a, “como se fosse um cãozinho”.
O encarceramento não a impediu de ter covid-19. No Outono, houve surto no lar. Entre os 58 idosos residentes, só oito ficaram livres de contágio. “O maior problema foi os intestinos. Colites. Também tive dores de cabeça. A comida não tem sabor. Ainda agora almocei e fiquei com um mau gosto na boca. Um amargo. Parece fel.”
Quando as visitas recomeçaram, à semana, à hora marcada, com um vidro, o sobrinho não arranjou horário compatível. No Natal, alguns saíram, como a amiga Palmira Ribeiro, de 89 anos, que estava doida para ir a Santo Tirso ver a bisneta e lá foi, apesar de tal a forçar a quarentena. Ela não. “A gente até tem medo de ir para a rua.”
Às vezes, pergunta-se para quê tanto sacrifício. “Se a gente morrer, o que é que a gente está cá a fazer? A gente já não está a fazer nada. A gente está aqui à espera. O meu marido não foi?” Ao ouvi-la dizer isto, a animadora Glória Ribeiro pede-lhe que desvie esse pensamento. Levou as duas doses de vacina. Um dia destes, há-de ver o sobrinho e os sobrinhos netos e a campa do marido.
["A pandemia veio pôr a nu o funcionamento dos lares. São lugares de grande inquietação afectiva. As pessoas estão muito sozinhas. As instituições têm pouco pessoal disponível para as ouvir contar a mesma história pela enésima vez, para as ajudar nos processos de luto. Parte-se do princípio que todas recebem visitas e que a pandemia as impediu, mas… há pessoas que estão meses sem visitas. Algumas nunca as tiveram. Já antes, a ideia de que os familiares não os podiam visitar era só meia verdade. Muitos lares têm horários mais restritivos do que os hospitais. A existência de horário de visitas em lares é algo que sempre me provocou desconforto. Para quê?”, questiona António Fonseca, professor da Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa, especializado em Psicologia do Desenvolvimento]
Uma grande solidão
Maria Fernanda Macedo, de 85 anos, não recebeu visita alguma. Já antes recebia muitíssimo poucas. “É qualquer coisa muito íntima que me faz não querer. Mas saía, ia visitar amigos e familiares. Ia ao médico. Ia ao cafezinho, ia ver as montras. Agora, não. Para ir ao dentista tenho de estar 15 dias no quarto fechada!”
No Natal foi a Lisboa ver a família. Desde o primeiro estado de emergência, só daquela vez cruzou o portão. Essa espécie de saída precária aliviou-a. “Foi o que me valeu. Estava a sentir muita solidão. Estava a perder o controlo. A nossa cabeça quando está lúcida trabalha muito, não é?”
O gosto pelas pequenas coisas esmoreceu. Gostava de ler jornais. A leitura perdeu graça. “Eu leio, mas chego a metade e já não me lembro do princípio!” Gostava de fazer crochet. “Não tenho linhas. Está tudo fechado!” Veste-se, penteia-se, maquilha-se e junta-se à sua amiga, Rosário Coelho, de 93 anos. “Passamos muito tempo no quarto a ver televisão ou a ouvir notícias.”
Nada a liga a Paços de Ferreira. Há falta de vagas nos lares das cidades, os lares das zonas mais rurais importam idosos. A irmã estava ali. “Eu vinha cá muitas vezes visitá-la. A minha ideia era ir para um lar algum dia que ficasse sozinha. Não queria acabar os meus dias abandonada. Ela disse-me para vir e eu vim.”
A irmã já não está ali. Fernanda cruza-se com pessoas de estrato social diferente daquele a que se habituara lá fora e isola-se ali dentro. A pandemia só veio agravar esta sensação de pessoa mal situada. “Há um desconforto total. Acho que a solidão faz mal a todos, mas nos velhos é pior.”
["Há uma acomodação aprendida. A pessoa acaba por se habituar, mas, quando falamos da importância de sair de casa ou dos lares, não é só para a pessoa estar no aniversário do neto ou do bisneto. A estimulação cognitiva faz-se através da diversidade de contactos. A pessoa é estimulada na medida em que é introduzida na vida social normal. Quando a tiramos daí, estamos a diminuir substancialmente as suas oportunidades de estimulação. A ausência de contactos também potencia sintomas de depressão, o que, por sua vez, leva a pior funcionamento cognitivo.”]
Um belo namoro
“Eu queria ver a minha mãe”, diz Maria da Costa Martins, de 59 anos. Está cega e um tanto surda em casa de um irmão. “Ao pé dela, falo-lhe ao ouvido. Pela voz, ela conhece-me. Ao telefone, ela pergunta: ‘É a minha Maria?’ E o meu irmão, a minha cunhada ou os meus sobrinhos dizem: ‘É.’” Nada lhe pode dizer sem intermediário.
Entrou debilitada no Lar António Barbosa há dois anos, na sequência de um processo de violência intrafamiliar. Daniel Moreira Fernandes, de 89 anos, deu-lhe muita força, emprestou-lhe uma bengala tripé e, com a ajuda dos técnicos e auxiliares, Maria recuperou. Agora corre tudo para cima e para baixo.
Enamoraram-se, Maria e Daniel. “Uma vez por semana, íamos a casa dele de táxi. Íamos de manhã e vínhamos à noite. Tem lá muita fruta. Íamos à fruta. Noutros dias, íamos a pé até à cidade. Íamos aos correios. Íamos à farmácia. Íamos ao parque. Íamos passear. Encontrava muita gente conhecida. Veio a pandemia, acabou tudo. A fronteira fechou. Não podemos sair.” Nem ao médico voltou. E não sabe o que é uma noite inteira de sono. Tantas vezes, ao passar a ronda, arregala os olhos e assim fica.
A companhia ajuda. “Não fazemos coisas feias”, brinca ele. Vão até à sala de convívio. “Ando a aprender a jogar dominó. Já lhe dou um jeito. Quero ser a parceira dele”, ri-se ela. “Damos uns passeios no recinto do lar.” Conversam. “Vou ao quarto dele. Tenho ordens da doutora. Posso ir lá. Até ao primeiro intervalo do Telejornal, estou lá.”
O surto de covid agravou tudo, embora se tivessem mantido assintomáticos. “Conforme estive aqui, conforme estive sempre”, assegura ele. “Tivemos um tempo dentro dos quartos”, torna ela. Só falavam por telefone. “Ele ia ao passadiço e eu, do quarto, via-o.” A ansiedade de Maria fustigava-a. “A pessoa desesperava. O que me valia era a Praça da Alegria. Dançava, cantava!”
Embora tenham tomado as duas doses de vacina, lá fora não há imunidade de grupo. “Gostava de ir por aí fora e de abraçar aquela gente toda”, diz ela. “Sei que agora não se pode abraçar ninguém, mas tenho muitas, muitas saudades de fazer isso! Tenho medo de nunca mais voltarmos ao tempo que tínhamos.”
["Não estamos a falar de pessoas com demência, afastadas da realidade, com dificuldade em situar-se no tempo e no espaço. Estamos a falar de pessoas conscientes, que estão a passar por uma situação desorganizadora das suas rotinas. É verdade que podem recorrer às tecnologias para falar com familiares e amigos, mas falta o estar com o outro, o tocar no outro, o dar um abraço ou um beijo sem que isso constitua um risco. Isso pode trazer trauma, mas a generalidade das pessoas ultrapassará este tempo. As pessoas são mais resilientes do que supomos. Nem todas sofrem da mesma forma. Algumas, com determinado tipo de personalidade, até estão felizes por estarem isoladas.”]
Uma dependência agravada
No último ano, o filho de Maria Amélia Dias só saiu de casa para ir ao barbeiro e ao otorrino. Ela teve um entupimento de canal lacrimal. O médico proibiu-a de andar ao frio e ela deixou de o levar ao Centro de Actividades Ocupacionais (CAO). Veio a pandemia e ficou a família reduzida àquele sexto andar de Matosinhos.
O CAO da APPCDM do Porto, como os outros, fechou em Março, reabriu em Maio, voltou a fechar no final de Janeiro, sem que Marco tornasse a frequentá-lo. Não é que a covid represente um risco acrescido para quem tem síndrome de Down, como ele. É que o pai sofreu uma traqueostomia. Usa uma cânula. “Não fala. Eu tenho de tratar de tudo. Tenho de proteger o pai e o filho.”
Amélia está exausta. A sua depressão, que já era crónica, “atingiu o auge”. Pouco sai. “Vou à padaria a correr.” Acompanha o marido às consultas. “Os vizinhos têm sido excepcionais. Vêm cá um casal ver se o Marco está bem. Ele tem noção de tudo, sabe o que pode ou não fazer.”
Sente que o filho está a regredir, sem as terapias do CAO. “Até a rotina de se levantar antes das 7h acabou. Não o vou levantar só para manter a rotina, porque também tenho de olhar pelo pai e tenho 75 anos.”
Marco dorme até às 10h30 ou 11h00. Senta-se na mesa de pequeno-almoço preparada de véspera. Come. E desenha, pinta, recorta, vê televisão. Gosta do canal infanto-juvenil Biggs. Adora a série de animação Dragon Ball. E entretém-se com programas de desporto. O wrestling fascina-o.
Pergunta-se-lhe se quer voltar ao CAO, que frequentou tantos dos seus 48 anos. “Está frio e chuva, trevada, não”, responde, apesar de não haver sinal de mau tempo. A mãe faz a pergunta de outra forma e ele volta a recusar. “Os meninos do Porto estão cheios de frio. Não há curso.”
Nunca gostou de sair de casa. “Saídas era para ir ao barbeiro. Se fosse a um restaurante, tínhamos de ir logo para casa. O mundo dele era a casa e o CAO.” Há um ano que o mundo dele é aquele apartamento. A semana passava, os monitores que lhe trouxeram desenhos quiseram levá-lo a dar uma volta e ele declinou. Esta sexta-feira, pela primeira vez, aceitou ir. “Gosta muito deles. É como se fossem família.”
A gestora do processo de Marco liga amiúde a Amélia a perguntar se precisa de ajuda. Podem levar Marco para um lar residencial uns dias para ela descansar. “Isso era matar o meu filho.” O regresso ao CAO terá de se fazer de forma gradual, como se fez com o infantário. “Ele nunca usufruiu tanta presença da mãe.”
["Desconfinar também significará reduzir o medo. Não seremos iguais. Somos resilientes, vamos conseguir ultrapassar a ferida que isto abriu, mas a história não nos abandona. Há pessoas que perderam familiares, amigos, vizinhos. São perdas irreparáveis. A imobilidade provoca perda de massa muscular que nos idosos pode ser irreversível. O desuso contribui para a perda de funcionalidade. Vamos ter mais pessoas com dificuldade em andar, com medo de se deslocar, de cair. Provavelmente, as pessoas vão adoptar comportamentos preventivos de disseminação de doenças, vão dar mais atenção à higienização das mãos, proteger-se com máscara, como na Ásia.”]
Um valente susto
Contra todas as possibilidades, Maria José Marrafa apanhou covid. Com uma recidiva de cancro de mama, metástases nos ossos, na coluna, nos pulmões, no fígado.
A professora de Português, de 54 anos, deixara de trabalhar em Janeiro de 2020. “Não conseguia corresponder. Sentia-me muito cansada.” Fechou-se em casa com o marido e a sogra. Desde que a pandemia começou, entra ali a empregada e pouco mais.
O marido, Manuel Pina, assumiu as compras. “Nunca mais entrei num supermercado.” O professor de Educação Visual e Tecnológica, de 62 anos, também está em casa, com baixa médica. Já teve um linfoma. Faz parte dos grupos de risco. “Tem sido o meu pilar. Ajuda-me em tudo.” A uns minutos de casa, em Oliveira de Azeméis, há uma área arborizada. O casal dá os seus passeios higiénicos com o cão, “Body”. “Faz-me bem tanto ao corpo como ao espírito.”
Maria José não se podia encerrar simplesmente. Não podia deixar de ir ao Instituto Português de Oncologia, ao Porto, fazer os tratamentos. No princípio, tudo lhe parecia estranho. “Controlo de entrada. Corredores vazios. Salas de espera vazias. Ver pessoas que estavam ali pela primeira vez sozinhas, sem apoio, causava-me impressão. Sentava-me sem tocar em nada. Tinha medo de tocar num puxado.”
No início do verão, um susto dos diabos. Um derrame pleural. “A situação evoluiu rapidamente”, conta. “Tive de ir para o hospital. A médica disse que havia suspeita de covid. E foi como se o mundo me tivesse caído. Estava com dificuldades respiratórias. Se tivesse covid, seria muito mau. Que aflição!” Enquanto esperava, isolada, viu o filme da sua vida. “Comecei a pensar nos momentos bons e nas pessoas que me traziam boas recordações. E foi assim que consegui suportar a aflição.” Se tivesse de listar os piores dias da sua vida, os daquele internamento estariam lá. Sozinha, com roupa do IPO, o olhar para o fim.
Depois de um susto tão grande, quando o vírus lhe entrou em casa, em Janeiro, até lhe pareceu que teve sorte. Dores musculares, um pouco de febre, um agravamento das dores nas costas, diarreia. “Não me posso queixar.” Nesta reclusão, ajuda ter hobbies. “Gosto de ler. Gosto de ouvir música. Gosto de ver filme e séries. Gosto de estar com o cão e com os gatos. Gosto de conversar ao telefone. Gosto de fazer palavras cruzadas.”
["Muitas vezes, as situações limite, como um ataque cardíaco ou um acidente vascular cerebral, fazem-nos valorizar o que temos. Seria bom que com isto as pessoas aprendessem a valorizar mais a vida social, as relações sociais, as relações afectivas. Foi um ano muito pobre do ponto de vista relacional, sobretudo para as pessoas mais velhos, para as pessoas com deficiência, para as crianças e jovens que vivem em instituições. As pessoas podem querer compensar este ano perdido. Eu próprio olho para muitas coisas que não fiz e quero fazer em dobro. É o cliché do: éramos felizes e não sabíamos.”]
O “normal” de alguns
Há quem viva uma vida inteira assim, na incerteza. Nelson Morais tinha menos de um ano quando recebeu o diagnóstico de Atrofia Muscular Espinhal. Há uns anos, desenvolveu Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica. Precisa de ventilação não invasiva principalmente durante o sono.
Não se rendeu à doença, que o atirou para uma cadeira de rodas. Com o apoio dos pais, estudou Ciência de Computadores. Especializou-se em “data mining e processamento de dados”.
Quando tudo começou, de segunda a sexta o investigador de 32 anos ia trabalhar para o Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência (INESC). O pai transportava-o numa viatura adaptada. Inscrevera-se no projecto-piloto de apoio à vida independente e tinha assistente pessoal quatro horas por dia.
Agora, está em teletrabalho. Dispensou o assistente social. Deixou de ir às sessões de fisioterapia. “Este tempo lembra-me o último semestre do mestrado”, diz. “Tal como agora, passava imenso tempo a trabalhar em casa no meu portátil. Era a minha janela para o mundo. Os contactos pessoais tinham sido drasticamente reduzidos. As saídas eram raras.”
No Verão, ainda foi “buscar inspiração ao pé do mar” e ainda passou uns dias “na terra”, uma aldeia de Montalegre. Desde que o frio chegou, fica-se pelo condomínio, em Vila Nova de Gaia. “A ironia foi ter passado a conseguir afastar-me um pouco mais de casa porque certos passeios se tornaram acessíveis, num ano em que a circulação esteve tão limitada para todos os cidadãos.”
De certo modo, é como se tivesse vivido sempre em confinamento. Nas suas palavras, “o confinamento é uma experiência do que é viver com mobilidade reduzida”. “Está quase tudo fechado. A pessoa está à porta, mas não pode entrar. Na incerteza, muitas ficam em casa.”
Que faz para se evadir? “Quem está em teletrabalho como eu, acaba por ter pouco tempo livre de segunda a sexta-feira”, diz. “O que sobra é aproveitado para ir ao cinema, ler, reflectir, escutar música, escrever. Quem se vê como um lobo solitário e aprendeu desde cedo a divertir-se sozinho não considera propriamente desafiante arranjar forma de se manter entretido.” Mas tem saudades de estar com as suas pessoas, de ir a festas, de trabalhar no INESC e de sair à hora do almoço para apanhar um pouco de sol no rosto, de estar com pessoas à volta de uma mesa a discutir, de falar com as pessoas na rua e, sobretudo, de não ter medo.
Delfina Leal não sai do Lar António Barbosa, da Santa Casa da Misericórdia de Paços de Ferreira, desde o dia 8 de Março de 2020. Naquele domingo, o coronavírus insinuou-se na conversa da família. Os primeiros casos tinham sido confirmados na segunda-feira, dia 2.
Já não se demorou naquele almoço com o sobrinho, a mulher e os filhos. “Comi e vim.” Estava convencida de que tudo passaria depressa, mas nunca mais foi à família, ao banco, ao contabilista ou ao cemitério pôr verduras na campa do marido. “O meu sobrinho liga e é com ele que eu falo. Uma vez vi-o. O trânsito estava a passar e ele estava lá em baixo e eu aqui em cima.”