1.10.21

Fundações, sociedade e Estado

Maria do Céu Ramos, opinião, Expresso

A maior parte de nós já teve ou tem algum contacto direto com uma fundação: numa consulta médica ou tratamento diferenciado de doença oncológica; num dos muitos equipamentos de resposta social para idosos, crianças ou pessoas vulneráveis em risco; num projeto de empreendedorismo e inovação social; na visita a um museu; numa ação de voluntariado para proteção da natureza, do património ou apoio à comunidade; num concerto ou outra manifestação cultural; num projeto de investigação ou difusão do conhecimento; através de uma bolsa ou prémio.

Estas são, tipicamente, atividades próprias das fundações, que prosseguem a sua missão dando corpo aos valores, visão e legado dos seus instituidores.

São esses fundadores que celebramos a 1 de outubro, Dia Europeu das Fundações e Doadores, sublinhando o valor social da filantropia, num gesto de reconhecimento pelo contributo efetivo que dão para uma sociedade mais justa, desenvolvida e inclusiva. São pessoas que instituem, de forma perene e generosa, a partilha da sua riqueza pessoal, dando-lhe sentido social. Pessoas que acreditam num mundo melhor e se comprometem com a sua construção.

Na esteira dos seus instituidores, as fundações promovem a igualdade de oportunidades, fortalecem a comunidade e criam impacto social.

Há quem não goste das fundações — da própria ideia de fundação — por razões ideológicas, porque não concebem o altruísmo privado como uma missão de interesse público.

Há quem pense que este altruísmo é apenas a veste do desejo de imortalidade ou a mera devolução à sociedade do muito que dela se recebeu. São fracos argumentos contra tão grandes benefícios.

No Dia Europeu das Fundações, falta ainda dar o passo decisivo da sua libertação pelo Estado em Portugal

Há ainda quem entenda que o gesto filantrópico é, afinal, egoísta e apenas procura as vantagens que a lei confere, como os benefícios fiscais. Mas o que a lei fiscal reconhece e tutela é o valor social da doação de recursos privados para fazer face à limitação dos recursos do Estado numa sociedade cada vez mais complexa, onde a pobreza, os problemas e os desafios são crescentes e não podem ser declarados insolúveis. É aí que as fundações atuam, na emergência e no longo prazo, assumindo riscos, inovando, de forma independente e em cooperação com outros atores sociais.

Os anos da pandemia trouxeram profunda fragmentação e transformações da realidade social e económica, dando novo sentido e alcance ao movimento filantrópico e ao papel social das fundações. Este foi também o tempo de revisão da Lei-Quadro do Estatuto de Utilidade Pública, aplicável a todas as pessoas coletivas sem fins lucrativos, e da Lei-Quadro das Fundações. São, no seu conjunto, reformas positivas. Mas há ainda caminho a percorrer.

Ao contrário do que alguns proclamam, não se trata de levar mais longe a transparência e a prestação de contas das fundações, que há muito existe e das quais as fundações são as principais interessadas e defensoras. O Estado tem plenos poderes para escrutinar o bom governo e a boa gestão das fundações privadas, incluindo o da sua extinção. É aí que o Estado deve atuar, com independência e rigor.

O que falta é dar o passo decisivo da libertação das fundações pelo Estado, porque as fundações são as únicas organizações da sociedade civil cuja existência depende de reconhecimento jurídico pelo Governo.

E, de entre as fundações, falta separar o que é da sociedade e o que é do Estado. Em nome da transparência. Esta é a reforma que falta fazer: uma causa e um desígnio para o sector fundacional em Portugal.

Presidente do Centro Português de Fundações