Cientistas dizem que há uma necessidade urgente de dar prioridade às crianças afectadas pela morte dos pais ou cuidadores. Adolescentes dos dez aos 17 anos são os mais afectados.
A covid-19 fez pelo menos 5,2 milhões de órfãos – perda do pai ou da mãe, ou de um cuidador, que pode ser uma avó, por exemplo – entre 1 de Março de 2020ne 31 de Outubro de 2021, diz um novo estudo publicado na revista The Lancet Child & Adolescent Health. E é sobretudo entre os adolescentes que mais ficaram órfãos: o grupo dos dez aos 17 anos representa 63,6% do total destas crianças.
É um número esmagador, considerando que as potenciais consequências para as crianças de perderem um dos pais ou o cuidador principal “são devastadoras e duradouras, incluindo serem institucionalizadas, abusos, problemas de saúde mental, gravidez adolescente e doenças crónicas e infecciosas”, enumera a equipa, que tem investigadores norte-americanos e europeus.
A epidemia de VIH-sida tornou bem conhecidas estas consequências, pelo que os cientistas fazem um apelo: “Os nossos resultados sugerem uma necessidade urgente de dar prioridade às crianças afectadas pela morte dos pais ou cuidadores na resposta pandémica. Para serem eficazes, as estratégias nacionais devem ser adequadas à idade das crianças e à circunstância da perda”, escrevem. As respostas devem incluir “programas que reforçam o apoio económico à comunidade e às famílias, e que evitem enviar as crianças para orfanatos”, salientam.
“Estimamos que uma criança tenha ficado órfã ou tenha perdido um cuidador para cada pessoa que tenha morrido em resultado da pandemia [5,9 milhões de mortos e 426 milhões de casos, segundo os últimos números da Organização Mundial de Saúde]. Isto equivale a que uma criança enfrente a cada seis segundos um risco agravado de adversidade para a vida, a não ser que tenha apoio adequado a tempo”, salienta Susan Hilis, dos Centros de Controlo e Prevenção das Doenças dos Estados Unidos, citada num comunicado de imprensa.
A equipa estima que pelo menos 3.367.000 crianças tenham ficado órfãs devido à morte de um dos pais por causa da covid-19 durante os 20 meses em apreciação, e que mais 1.833.300 crianças foram afectadas pela morte de pelo menos um dos avós, que era um cuidador principal, ou de outro familiar mais velho que vivia na mesma casa, e contribuía para o seu cuidado.
“Infelizmente, embora as nossas estimativas sejam elevadas, provavelmente ficam aquém da realidade, e prevemos que estes números cresçam à medida que fiquem disponíveis mais dados globais sobre as mortes de covid-19”, disse Juliette Unwin, do Imperial College de Londres, a primeira autora do trabalho, citada no mesmo comunicado.
Infelizmente, embora as nossas estimativas sejam elevadas, provavelmente ficam aquém da realidade, e prevemos que estes números cresçam à medida que fiquem disponíveis mais dados globais sobre as mortes de covid-19.
Por exemplo, a Organização Mundial da Saúde tem uma quantidade limitada de estatísticas precisas sobre as mortes de covid-19 em África – e os números reais podem ser dez vezes mais altos do que está a ser reportado, disse Unwin. “Isso quer dizer que os números de órfãos da covid-19 estão também drasticamente subestimados [para o continente africano]”, explicou.
Os cientistas estimam que 1.247.300 crianças africanas tenham perdido um ou dois dos pais, esse número cresce para 1,5 milhões se se considerar também a morte dos avós, se forem os cuidadores principais, ou de outros familiares mais velhos que morem na mesma casa e que contribuam para cuidar das crianças. “Mas há dados epidemiológicos que sugerem que o número total real de crianças órfãs [em África] chegou a 6,7 milhões em Janeiro de 2022”, alertou Juliette Unwin. “O nosso estudo fez estimativas até Outubro de 2021, mas a pandemia continuou por todo o mundo, o que significa que os órfãos da covid-19 continuaram a aumentar.”
Os investigadores cruzaram dados de mortalidade da covid-19 com dados relativos à fertilidade e à mortalidade infantil entre 2003 e 2020, por exemplo, para fazerem as suas estimativas. Fizeram isto para 21 países que representam 76% da mortalidade global de covid-19: África do Sul, Argentina, Alemanha, Brasil, Colômbia, Espanha, Estados Unidos, França, Filipinas, Índia, Inglaterra e País de Gales, Itália, Irão, Malawi, México, Nigéria, Polónia, Peru, Quénia, Rússia e Zimbabwe.
Durante os 20 meses do estudo, houve grandes diferenças no número de crianças órfãs, indo desde 2400 na Alemanha até 1.917.100 na Índia. Mas os países em que há mais órfãos por cada mil crianças são o Peru (8,28 por 1000) e África do Sul (7,22 por 1000).
Apesar destas grandes diferenças entre países, os adolescentes (entre os 10 e os 17 anos) foram o grupo com o maior número de órfãos por causa da covid-19, quase 2,1 milhões. Peru, África do Sul, Índia e México foram os países onde mais adolescentes ficaram órfãos por causa da covid-19. Dos zero aos quatro anos há meio milhão de órfãos, e entre os cinco e os nove anos 740 mil.
O estudo acaba por confirmar que a covid-19 tem uma mortalidade maior entre os homens, porque 76,5% das crianças que ficaram órfãs por causa da pandemia perderam o pai. Os países onde isto mais aconteceu foram, mais uma vez, Peru, África do Sul, Índia e México. Portanto, a situação mais comum é que a covid-19 tenha deixado órfãos de pai adolescentes.
“Globalmente, por cada morte por covid-19 houve, pelo menos uma criança ficou órfã devido à morte de um dos pais ou cuidador. Para regiões onde as taxas de fertilidade são mais elevadas, como África, o Mediterrâneo Oriental ou o Sudeste asiático, o número de crianças afectadas excede o número de mortes de covid-19”, escreve a equipa. “Estes dados sugerem que a rápida aceleração das campanhas de vacinação é estrategicamente necessária para proteger as crianças nestas três regiões, mas estas são as regiões que têm a mais baixa cobertura vacinal [contra a covid-19]”, salientam os cientistas.
Como parte deste trabalho, os investigadores desenvolveram uma calculadora em tempo real online que dá estimativas do número de órfãos associados à morte de cuidadores para cada país no mundo, que pode ser consultada a partir do site do Imperial College. A estimativa para Portugal é que 500 crianças tenham perdido os pais, avós que eram os cuidadores principais ou parentes residentes na mesma casa que ajudavam a cuidar deles.