Allyson Chiu, in Público on-line
Não é um diagnóstico clínico, mas é um termo que ganhou alguma popularidade. Refere-se a pessoas que lidam com depressão, mas que, aparentemente, não têm qualquer problema, pois são altamente funcionais. Mas quais os perigos e as vantagens da expressão?
Depois de a Miss EUA de 2019, Cheslie Kryst, se ter suicidado a 30 de Janeiro, uma expressão dominou o debate nas redes sociais e nas notícias: “depressão altamente funcional”.
Num comunicado enviado ao Extra, um canal de notícias de entretenimento onde Kryst era correspondente, a sua mãe, April Simpkins, disse que a modelo de 30 anos estava “a lidar com uma depressão altamente funcional, que escondia de toda a gente, incluindo [da mãe], a sua confidente mais próxima — até muito perto da sua morte”.
“Depressão altamente funcional” não é um diagnóstico clínico que possa ser encontrado no Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM), um manual utilizado por profissionais de saúde. É um termo coloquial que ganhou popularidade nos últimos anos, ainda que alguns especialistas tenham sentimentos contraditórios em relação ao seu uso.
A expressão realça “um ponto bastante importante, que mostra que as pessoas podem estar a sofrer de uma doença mental e, ainda assim, parecerem funcionais ou não parecem doentes para quem observa de fora”, refere Rebecca Brendel, presidente da Associação Psiquiátrica Americana.
Mas, acrescenta Brendel, o termo pode exacerbar a vergonha e a incompreensão acerca da saúde mental e depressão. “Dizer que alguém é altamente funcional, ainda que tenha uma doença mental, aumenta o estigma associado a doenças mentais.”
Aqui fica o que alguns especialistas em doença mental pensam acerca desta expressão cada vez mais comum.
O que é “depressão altamente funcional” e porque pode a expressão ser útil?
“Depressão altamente funcional” é um termo não médico que pode ser usado para descrever algumas pessoas que cumprem os critérios para um diagnóstico clínico de depressão, mas que conseguem ser funcionais no dia-a-dia, de tal forma que a sua condição mental provavelmente não é evidente para os outros e até para eles”, diz Jameca Woody Cooper, psiquiatra e professora auxiliar na Webster University, no Missouri.
Ainda que “altamente funcional” possa ser associado a figuras públicas ou “poderosas”, nem sempre esse é o caso, ressalva Woody Cooper.
“Pode ser um professor, uma pessoa que trabalha num centro de dia, um trabalhador de uma cadeia de fast food”, diz. “Toda a gente pode experienciar depressão severa, e todos podem parecer ou apresentar-se como uma pessoa com depressão altamente funcional.”
A depressão clínica é diagnosticada de acordo com um espectro que tem em conta a capacidade funcional da pessoa. Mas a expressão “depressão altamente funcional” pode ser esclarecedora para os que têm ou não depressão.
“Só porque algumas pessoas têm traços de personalidade que as tornam mais capazes de ser funcionais, não deviam ser levadas menos a sério, e receio que isso seja o que possa começar a acontecer se começarmos a usar mais este termo.” Woody Cooper, psiquiatra
As pessoas têm, normalmente, “a imagem de indivíduos que choram, não saem da cama, são suicidas”, refere Woody Cooper. “Quando, na verdade, é totalmente diferente em pessoas que são funcionais todos os dias.”
Montrella Cowan, terapeuta de relacionamentos, oradora e autora de Washington D.C., concorda. Perceber a depressão altamente funcional pode ajudar a criar consciencialização pública de que é possível uma pessoa “ser produtiva, ter um salário de seis dígitos, uma mansão, um bom carro, e estar deprimida”, atira.
Também pode ajudar as pessoas a perceberem que não estão sozinhas, afirma Cowan, porque “muitas vezes as pessoas não se estão a sentir elas próprias e não conseguem simplesmente identificar o que está errado, por isso apenas sofrem em silêncio. Mas agora as pessoas percebem: ‘Oh, altamente funcional. OK, então já percebo porque me ponho a pé para ir trabalhar.’”
Que questões suscita a designação?
A expressão pode reforçar a vergonha em relação à depressão, defende Natalie Dattilo, psicóloga clínica no Brigham and Women’s Hospital, em Boston. “O estigma é a razão por que usamos essa expressão, como se fosse chocante que as pessoas bem sucedidas pudessem ter depressão.”
Mas, acrescenta, “não devia ser chocante que as pessoas tenham depressão”. “Devia ser uma coisa como outra qualquer, como qualquer outra doença.”
Outro aspecto, adianta Woody Cooper, é que usar o termo “altamente funcional” pode levar a uma forma incorrecta de interpretar a doença como uma forma menos séria de depressão.
“Depressão é depressão”, diz. “Só porque algumas pessoas têm traços de personalidade que as tornam mais capazes de ser funcionais não deviam ser levadas menos a sério, e receio que isso seja o que possa acontecer, se começarmos a usar mais esta designação.”
Mais ainda, usar o termo “altamente funcional” para descrever o problema pode ser enganador, ressalva Matthew Rudorfer, director de programas no National Institute of Mental Health, porque não tem em consideração o esforço que é feito para se ser funcional.
“Se todos os carros que estão na Connecticut Avenue estiverem a andar a 50 quilómetros por hora, mas um condutor tiver de carregar no pedal a fundo para conseguir manter essa velocidade, para o observador externo tudo parece normal”, diz. “Mas essa pessoa está a esforçar-se imenso. Não deveria ser preciso pôr prego a fundo para chegar aos 50 quilómetros por hora.”
Devemos usar a expressão “depressão altamente funcional”?
Os especialistas dividem-se sobre se a expressão deve ser amplamente utilizada ou tornar-se um diagnóstico oficial.
“A melhor coisa que podemos fazer é afastar-nos dos rótulos”, diz Brendel, uma vez que “eles podem interferir com o entendimento acerca do que está a acontecer com a saúde mental”. Ao invés, encoraja conversas abertas “sobre os sintomas de sofrimento mental” e trabalho com vista à redução do estigma e outras barreiras que impedem o tratamento.
“Se começarmos a dizer ‘não podes usar este ou aquele termo’, não vamos ter muito sobre o que falar.” Montrella Cowan, terapeuta de relacionamentos
Cowan, contudo, pensa que os benefícios de utilizar a expressão podem pesar mais do que as desvantagens, e diz que a designação devia ser incluída na próxima actualização do DSM. (Até à data, não foram submetidas propostas para incluir “depressão altamente funcional” no DSM, de acordo com a Associação Psiquiátrica Americana.)
“Estamos a tentar normalizar a conversa”, diz Cowan. “Se começarmos a dizer ‘não podes usar este ou aquele termo’, não vamos ter muito sobre o que falar.”
Ainda que tenha algumas preocupações, Dattilo refere que está confortável com o termo se isso permitir que alguém vá procurar ajuda. “Se isso permitir que alguém olhe para si e pense ‘talvez seja isto que eu tenho’, então vamos usá-la e continuar a trabalhar em direcção a algo melhor.”
Quem está em risco?
É importante, avisam os especialistas, reconhecer quem pode estar em risco de ter este tipo de depressão.
Woody Cooper afirma que normalmente o detecta em pessoas com “personalidade tipo A”. Outras características podem incluir ter uma posição importante, sofrer de perfeccionismo, ser alguém dedicado aos outros ou querer ser visto como forte e capaz”, diz Dattilo.
“Nenhuma delas é um mau traço da pessoa, mas podem interferir com o seu sistema de crenças acerca de si própria”, refere Dattilo. Todos elas “podem contribuir para a pressão para ter um bom desempenho, ser de uma certa forma e ter certas coisas”.
Woody Cooper e Cowan também dizem que a depressão altamente funcional é normalmente observada em comunidades racializadas, em que as barreiras para o seu tratamento podem ser mais altas devido ao custo, disponibilidade e estigma cultural. “Na comunidade negra, por exemplo, ainda estamos a tentar acabar com o estigma do ‘tu és fraco’”, lamenta Cowan. “Como se se fosse fraco por procurar ajuda — e isso não é verdade.”
As dificuldades para procurar ajuda podem ser ainda maiores para mulheres negras, acrescenta Woody Cooper. “Elas têm esta imagem de supermulheres, que podem fazer tudo e não sentir nada”, diz.
Quais os sinais da depressão altamente funcional?
Pode ser difícil encontrar sinais de depressão em pessoas que podem não a reconhecer ou que podem estar activamente a mascarar sintomas e a tentar ultrapassá-la, talvez porque passar uma imagem de força e capacidade é essencial para a sua identidade, defendem os especialistas.
Brendel refere que as pessoas que estão preocupadas com uma possível depressão, nelas ou em outros, devem procurar mudanças subtis, incluindo mudanças de energia, humor e qualidade do sono. Essas mudanças podem ser um sinal de que alguém precisa dar prioridade a tomar conta de si próprio, observa. Mas, acrescenta, se essas mudanças persistirem durante um período de duas semanas, pode ser um sinal para procurar ajuda. Outros sinais são pensamentos negros acerca do futuro, bem como sentimentos de desesperança e impotência.
“Se estás a tentar ajudar outra pessoa, evita afirmar coisas. Não digas, por exemplo, que a pessoa precisa de fazer terapia”, diz Cowan.
Woody Cooper sugere fazer perguntas primeiro e abordar potenciais comportamentos preocupantes como algo que tenhas notado. “Por exemplo, podes dizer: ‘Tenho notado que, quando saímos com o grupo, ultimamente, não tens falado tanto’”, exemplifica Woody Cooper. Podem seguir-se perguntas como: “Está tudo bem? Há algo de que queiras falar?”
Especialistas recomendam ter uma referência de um profissional de saúde mental pronta. Também pode ajudar se quem pergunta estiver disponível para partilhar experiências pessoais de procura de ajuda.
“Admitir e aceitar que se precisa de ajuda não é algo fácil de fazer”, diz Dattilo. É por isso que os especialistas acreditam que uma das mais importantes abordagens sobre a depressão altamente funcional é a necessidade de as conversas, a educação e as atitudes perante a depressão e a saúde mental continuarem a mudar.
Exclusivo PÚBLICO/ The Washington Post