Marta Gonçalves, in Expresso
“Muitos dos miúdos perdem horas na fila da padaria para conseguir pão e deixam de ir à escola”: o padre Gonçalo viveu quatro anos na Síria e tem uma história para contar
Gonçalo Castro Fonseca é jesuíta e ao longo de quatro anos dirigiu a missão na Síria. Viveu em Damasco, a capital, conheceu cidades que viraram ruínas como Alepo e Homs. E é “de um jogo misterioso” entre a “miséria extrema e a alegria contagiante” que quer falar
Voltou a Portugal mas continua sem estar ainda inteiramente em casa, ainda se sente em processo de regresso apesar de já estar fisicamente no país há quase quatro meses. Gonçalo Castro Fonseca é jesuíta e liderou a missão do Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS) na Síria, onde chegou em 2017, numa altura em que a guerra se alastrava por todo o país, o Daesh tinha invadido o território e em Damasco, a capital, o conflito estava muito presente. “Canhões, aviões que largavam bombas, pessoas armadas”.
Pediu-nos para não falar da política local da Síria, onde a JRS permanece em missão – há assuntos “que por segurança” não devem ser falados mas há outros que acontecem todos os dias e que devem ter toda a atenção. “Há um jogo misterioso entre a extrema miséria e um desejo de alegria. Os sírios não se queixam, há sempre um lado positivo e dizem-no sempre de forma verdadeira.”
Aos 49 anos, Gonçalo Castro Fonseca terminou a missão que começou no país onde diz ter aprendido o que é o medo e esta segunda-feira à noite participou no evento “Fraternidade: uma utopia?”, uma conversa promovida pela Associação para o Desenvolvimento MEERU | Abrir Caminho na Casa Comum, na Reitoria da Universidade do Porto.
Que futuro é possível num país como a Síria?
A guerra está mais localizada mas não terminou. O que está acontecer neste momento são consequências da guerra e das sanções internacionais. A situação financeira e económica do país é um descalabro; o povo tem energia, força e capacidade de recuperar, por isso, há uma linha de futuro, mas não será próxima nem ninguém conta que seja. Para isso é preciso que se criem condições. Primeiro, a nível interno – e sem entrar em muitos detalhes políticos – as pessoas defrontam-se há pelo menos duas gerações. Depois, as sanções internacionais têm prejudicado muito a motivação das pessoas e a sua capacidade de responder às necessidades e à crise. No fundo, estas sanções são para punir os poderosos, mas dão mais poder ao regime e enfraquecem os mais vulneráveis, que são quem podia lutar por um futuro melhor. Honestamente, lá senti muito desespero e sensação de que não havia um amanhã. Pensei nisto muitas vezes com eles. Mas, olhando com distância, há potencial de futuro. Não está à vista seguramente, mas o potencial e a capacidade, os sírios têm-no. A semente de futuro está lá, só é preciso deixar que cresça e, se lhe tirarem a água do terreno, a semente não vai crescer.
Como é possível que esse potencial e capacidade fiquem visíveis?
Desde logo com a queda das sanções e permitindo que haja transações comerciais, financeiras e mercado livre. O que está a florescer cada vez mais são os mercados negros e paralelos. O nível de corrupção é enorme. E uma maior ajuda não tanto no sentido humanitário de distribuição de coisas, mas sim de capacitar a população. Isto seria a água que podia fazer crescer a semente.
Numa entrevista ao DN, elogiava a resposta de emergência mas, ao mesmo tempo, referia que não era o prato de sopa que lhes era distribuído que lhes dava futuro. O que lhes pode dar futuro?
Estamos a falar maioritariamente de crianças, portanto educação. O sistema educativo sírio também deixa muito a desejar, é preciso formar as pessoas a nível humano e de conhecimentos. Segundo, o capacitar de técnicas e facilitar que as pessoas recebam a formação. Depois há um nível de investimento para empresas locais, nas fábricas que possam desenvolver ou recuperar aquilo que perderam. Acho que são estas três dimensões: educação, formação técnica e capacitação humana e, por fim, investimento.
Uma boa parte do projeto da missão jesuíta na Síria está relacionada com a educação de crianças e jovens. Qual foi e qual é desenvolvido pela JRS na Síria?
De há uns anos para cá começámos com um sentido de emergência, dar um lugar seguro às crianças para estarem e criarem ali alguma distração. Depois, ao mesmo tempo, percebemos que havia uma grande necessidade de educação porque podem ter dez anos e nem sabem pegar numa esferográfica, não sabem ler ou escrever. Então, desenvolvemos um programa de ensino que complementa a escola. A grande maioria dos miúdos vão à escola – há alguns que não vão porque trabalham – e isto é um ciclo próprio de suporte à escola formal. Temos 402 mil crianças no programa de um ano e o objetivo é sempre ensinar os miúdos, dando-lhes não só conhecimento como também dotá-los da capacidade de estudarem sozinhos.
Centros de estudos para onde as crianças vão e de onde vêm diariamente? Fazendo uma comparação com a nossa realidade, uma espécie de ATL?
Sim, mais ou menos isso. Prestamos ainda apoio às famílias das crianças – capacitação, alfabetização, formação técnica, ensino de línguas e computadores. Temos serviços de saúde, com três clínicas. Em termos de custo, as clínicas são o que custa mais, mas em termos de impacto na população e futuro é a educação.
Referiu que as crianças iam à escola. É possível ter uma vida normal na Síria?
Não, de todo. Bom, o que é normal para nós é diferente do normal para os sírios. Mas mesmo para os sírios, não há uma vida normal. Os miúdos irem à escola é esquecer todo o conceito que temos de ir à escola. Os números de alunos registados até são bastante bons porque o registo é obrigatório – outra coisa é participarem e, de facto, as condições das escolas são muito limitadas porque algumas foram destruídas, outras foram ocupadas pelo exército ou servem de armazém. Há uma sobrelotação de alunos, uma sala que teria capacidade de 30 tem 80. Uma secretária que daria para dois, está a ser partilhada por cinco ou seis alunos. Não têm material, não têm uma esferográfica, papéis, livros, cadernos ou manuais. Não têm nada. Ir à escola é muito relativo: na escola servem também uma refeição quente e isso já é razão suficiente para muitos irem.
“Muitos dos miúdos perdem horas na fila da padaria para conseguir pão e deixam de ir à escola”
Como é vida na Síria?
Há uma série de coisas que não têm: eletricidade, por exemplo. No frigorífico não conseguem conservar nada, têm de comprar as coisas diariamente. Ainda se vê muito uma lógica da sobrevivência, de chegar ao dia e ter uma refeição e, embora ainda tenham acesso a bens essenciais, a outros bens não têm. Comer carne é luxo. Muitos dos miúdos perdem horas na fila da padaria para conseguir pão e deixam de ir à escola, já para não falar daqueles que têm de ir trabalhar. Há uma grande necessidade sem respostas. Não há eletricidade, gás, gasolina e, quando há, é tudo muito limitado e racionado. Ou se tem muito dinheiro para entrar na lógica do mercado negro ou não se tem e a grande maioria não tem. Como nos países de terceiro mundo, não há classe média. Há muitas pessoas muito pobres e depois há alguns ricos.
Muitas das pessoas que acabam por não fugir da Síria eram os mais pobres de todos.
Sim, porque não tinham capacidade de pagar as exorbitâncias para sair do país.
Que geração acha que ficou mais marcada pela guerra: a das crianças que já nasceram durante a guerra e nunca conheceram mais nada ou a daquelas que eram crianças quando a guerra começou e hoje são jovens adultos?
Acho que aqueles que hoje são jovens adultos são os mais afetados, a geração hoje com 20–30 anos. A adolescência e a juventude foi-lhes tirada, tiveram de assumir responsabilidades que não lhes competiam. Uma criança que nasce e cresce neste contexto não tem memória, claro que sofrem mas não têm referências. Para os mais velhos, como têm uma boa memória antes da guerra, está a ser muito duro. Foram estas idades que saíram – sobretudo homens e rapazes por causa dos oito anos de serviço militar obrigatório – e que assumiram as responsabilidades da família. Passaram por situações muito delicadas, acho que eles ainda estão no trauma, ainda não se pode falar do pós-trauma.
Em qual destas encontra menos esperança?
Na geração dos 30. As crianças dão-nos mais esperança e isso também nos motiva. Eles não têm nada: receber um par de sapatos é a alegria da vida deles e, para uma jovem de 30 anos, que já teve vários pares, receber só um não lhe basta. Têm um sentido de desânimo muito maior.
Como é que cada um de nós pode ajudar? É possível fazê-lo?
Financeiramente, confiando em alguma organização – e bem sei que neste mundo não se pode confiar em tudo -, o que nos permite responder a necessidades para as quais muitas vezes faltam fundos, porque já não se fala tanto na Síria como antes. Outra forma é dando voz. Um dos lemas da JRS é defender, dar voz a quem não a tem. Criar uma opinião de forma a ter também alguma influência junto da comunidade internacional e dos governos, quanto mais não seja para pressionar o levantamento das sanções.
Como é que surge a possibilidade de ir para a Síria em 2017?
Sendo padre, religioso e jesuíta, surge sempre de uma dimensão espiritual e o sentido é de vocação. Na prática houve um pedido do superior mundial dos jesuítas, que pedia jesuítas para o Médio Oriente. Depois, em conversa com o meu superior em Portugal pensámos no assunto e eu ofereci-me para ir para por três anos. Uma vez lá, propus ir para a Síria: foi uma oferta por três anos mas ainda foi estendida por mais um ano.
Havia mais estrangeiros?
Não, até porque é muito difícil conseguir um visto e residência. Mas como sou padre e tenho a estrutura da Igreja para me proteger, não me foi tão difícil conseguir a residência. Por mais interesse que existisse de outros para ir fazer voluntariado, não era possível recebê-los por questões logísticas. Os primeiros meses foram a tentar aprender árabe, depois comecei a trabalhar no campo diretamente com os miúdos e depois achou-se que eu teria capacidade de ser o diretor da JRS e fazer a gestão.
Teve medo?
Sim, claro. Eu não sabia bem o que era ter medo, eu acho que sou uma pessoa destemida de maneira geral e não sabia o sentimento de ter medo e aprendi lá. Foi a primeira vez que tive realmente medo.
Lembra-se em que situação é que foi?
Lembro. Foi uma bomba que caiu a dez metros de mim. Lembro-me perfeitamente, não me vou esquecer disso. Nunca me sentia ameaçado mas havia sempre a sombra de que algo podia acontecer. Depois havia um medo pelos outros, era um medo de impotência, de que os outros ficassem feridos.
No momento em que tudo isso acontece, a pessoa consegue perceber que é tudo real?
Mete impressão quando se chega e não é nada uma realidade paralela, é muito real: são os sons, os barulhos e aquilo que se vê. O assustador é que a paisagem de destruição se torna normal. É assustador passar a adormecer porque as explosões já fazem parte da banda sonora do dia . Os conflitos em Damasco só duraram uns meses: cheguei a meio mas depois, em menos de um ano, aquilo tinha terminado.
Em algum momento pensou em vir embora?
Não, nunca. Pelo contrário: foi-me proposto vir embora e eu achei que se as pessoas não podiam eu também não podia. Eu sei que parece, mas isto não é uma questão de heroicidade. A minha missão era estar por isso estava. O privilégio de vir embora sempre o tive mas nunca pensei em vir embora.
E os seus, a sua família e amigos?
Isto não é bonito mas eu tive de esconder a verdade durante o tempo em que lá estive, sobretudo no primeiro ano. Quando viam aqui as notícias e imagens eu dizia que estava muito longe.
O que é um conflito?
Eu cheguei na altura do cerco a Ghouta. Estavam os rebeldes do lado de dentro e o exército do lado de cá e houve a decisão de tomar conta outra vez de Ghouta. Havia tiros de canhões e aviões a passarem de um lado e de outro a atirarem bombas. Havia pessoas armadas em todo o lado, postos de controlos, onde nos revistavam e pediam documentação. Havia mesmo um panorama como o que se vê nos filmes, mas vivi na vida real.
De que forma é que tudo isto evoluiu desde 2017?
Quando os conflitos terminaram e conseguiram recuperar Ghouta, a cidade rejuvenesceu completamente. Até para mim foi como estar numa nova cidade. Havia muitas coisas fechadas: lojas, restaurantes… E quase no dia seguinte ao fim dos conflitos reabriu tudo. As pessoas estavam com muita sede de vida, ânimo e festa, houve ali uma reação quase excessiva, no imediato. Com a crise económica, as coisas abrandaram novamente. A pandemia também não ajudou ao ânimo, que foi de curta duração, mas a cidade de Damasco é muito viva. Tínhamos projetos em Alepo e Homs, que foram muito mais destruídas e as pessoas basicamente ainda vivem nas ruínas. Damasco, nesse sentido, foi mais poupada.
Como é regressar a Portugal? “Pergunte-me daqui a um ano”
Com tudo isto a acontecer, e sendo religioso, em algum momento se questiona onde está Deus?
Pode ser normal que a pergunta exista, se alguém a tivesse eu veria isso como normal, porque é uma questão muito forte quando se vê a morte de inocentes, o sofrimento. Mas eu acho que fui com uma bagagem diferente de vida espiritual e não tive dificuldade em encontrar Deus naqueles que sofriam e perceber que Deus sofre com eles.
As diferenças religiosas foram em algum momento um problema, sobretudo num país maioritariamente muçulmano e em que, à época, parte do território era controlado pelo Daesh?
A Síria sempre estive habituada a ser um lugar de encontro de várias religiões e etnias. Há uma cultura de respeito e solidariedade. Claro que com algumas tensões, mas sempre com uma lógica de acolhimento do outro. Os cristãos perseguidos não o eram por causa dos sírios nem dos muçulmanos de maneira geral, era por causa do Daesh, que entrou e começou a invadir a Síria. Mas não era só cristãos que executavam, eram todos os que não pensassem da mesma maneira. Eu nunca estive nesta situação de estar perto do Daesh, nunca senti este risco e a minha fé nunca me pôs em problemas, punha mais o facto de ser estrangeiro do que ser cristão. Ser padre até me poderia ter ajudado em alguma situação limite de ameaça, em que não estive.
Como é regressar a Portugal?
Deixe passar um ano e volte a perguntar-me depois.
Pensa voltar?
Essas coisas não dependem de mim. Se tivesse oportunidade agora, acho que não. Agora preciso eu de regressar a Portugal para poder eventualmente ir. A minha missão ali terminou e, se voltasse, seria para uma nova missão.
O que custou mais deixar lá?
As pessoas, os amigos que se fizeram e que ficaram muito próximos. Há sempre o sentimento de não saber se os vou voltar a ver na vida. E há um punhado de pessoas que me ficaram muito próximas.
“Chegaram [as imagens] das destruições de Alepo e Ghouta, mas nada desta realidade de pessoas que estão no limiar da miséria — e são mesmo muitas”
O que é que acontece na Síria que na Europa e nos EUA não se sabe?
É um jogo misterioso entre duas coisas. O que estão a viver financeiramente é tremendo. Mesmo durante a guerra, não via miúdos na rua a pedir esmola e agora estão revolver o lixo para encontrarem alguma comida, é chocante. Não deve ser o único pais onde isso acontece, mas essas imagens não chegam cá. Chegaram [as imagens] das destruições de Alepo e Ghouta, mas nada desta realidade de pessoas que estão no limiar da miséria — e são mesmo muitas. Ao mesmo tempo, há um ânimo e desejo de alegria. Não se queixam, há sempre um lado positivo em tudo. Acho que isto não chega cá. Também não haveria maneira de os meios de comunicação passarem isto.
Já reencontrou em Portugal algum dos sírios que conheceu em missão e que agora estão como refugiados cá?
Há um amigo meu que está cá a estudar na Universidade Católica, que é um jovem sírio que conseguiu uma bolsa e estuda comunicação social. Temos uma história em comum de pelo menos um ano. Estou a tentar trazer mais três pessoas, também os conheço bem e estamos a trabalhar para conseguir integrá-los. São rapazes e todos tiveram de interromper os estudos para trabalhar. Sabem inglês e estou a tentar que venham para estudar na universidade (Educação, Contabilidade e Economia), com um grupo de amigos a suportar os custos.