28.2.22

O bairro de casas pré-fabricadas onde 28 famílias ciganas começam uma nova vida

Por Elisabete Rodrigues, in Sul Informação

Uma equipa técnica da autarquia acompanha no terreno o realojamento e integração das famílias, numa relação de proximidade

«Esse é o pedido de adesão para ter a senha de acesso ao Portal das Finanças. Assim, não tem de ir lá, trata tudo no computador, nós ajudamos. Agora vamos pedir a senha do acesso à Segurança Social», explicava Dina Barradas, uma das técnicas do gabinete de apoio à comunidade cigana do Vale da Arrancada, em Portimão, a uma das novas moradoras.

Uma mulher cigana mais nova, ao lado de uma mais velha, vestida de preto da cabeça aos pés, segurava o papel com a senha apontada. «Não vou perder isto, fique descansada», dizia, em resposta a Dina Barradas.

O gabinete de apoio conta com três técnicas – Dina Barradas, Paulo Vasco e Joana Pedro – e fica instalado numa casa pré-fabricada, quase igual às que foram construídas no terreno do Vale da Arrancada, entre Setembro do ano passado e Janeiro deste, para alojar as 28 famílias ciganas que, durante três décadas, viveram no bairro de barracas clandestinas em pleno centro da cidade de Portimão, ao lado do mercado e do cemitério.

As casas modulares são brancas, mas têm barras com as cores da bandeira cigana: azul como o céu, verde como a terra, vermelho como as suas carroças. Lá naquele sítio já moravam outras cinco famílias, a que se juntaram agora mais estas 28, num total de mais de uma centena de pessoas.

Vera Frederico, de 41 anos, e o seu marido João Negrão, de 32 anos, são dois dos novos moradores e esperam, muito aprumados, à porta da sua casa nova que chegue a vereadora Teresa Mendes e o vice-presidente da Câmara Álvaro Bila, bem como técnicos vários da autarquia e a jornalista do Sul Informação.

A D. Vera não tem papas na língua e diz: «da casa não reclamo, mas da rua sim. Quando chove, isto fica tudo cheio de água e de lama. Aqui à frente parece uma piscina. O que nos vale é que não tem chovido quase nada, senão não sei como seria».

A vereadora, que tem também o pelouro da Ação Social, diz: «vai ser tudo tratado, só que demora algum tempo. Tem que ter paciência».

Por seu lado, o vice-presidente Álvaro Bila, que conhece bem os novos moradores já que, antes de ser eleito para a Câmara, foi durante anos presidente da Junta de Freguesia de Portimão, garante que «as ruas vão ser pavimentadas». Voltando-se para a jornalista diz: «vamos melhorar as condições do exterior, até para que os novos moradores percebam que isto tem de estar tudo limpo e arranjado».

A D. Vera abre a porta da sua casa, deixando ver a sala de entrada, que também é cozinha e o sofá onde ainda dormem dois dos seus filhos. Mostra com orgulho as paredes da sala, que ela e o marido forraram com um material a imitar azulejos cinzentos brilhantes. A cozinha está muito arrumada.

«A casa tem três quartos, mas eu tenho quatro filhos, uma delas já tem 23 anos. Tive de comprar umas caminhas, mas também dormem na sala».

Apesar do aperto, garante: «aqui estamos muito melhor. Lá não tínhamos estas condições, aqui temos uma cozinha como deve ser. quartos, casa de banho. É pequena, mas tem tudo».

João Negrão, o marido, sorridente mas de poucas falas, concorda: «lá era uma barraca, era muito diferente».

Os filhos mais novos de Vera ainda andam da escola. Depois de ter enviuvado, casou-se com o João, mas ainda não tiveram filhos. «A vida está difícil para ter mais filhos», desabafa, olhando para os meninos que dormem aconchegados no sofá cama.

João acrescenta: «há aí zonas onde não se vê crianças, mas nos nossos bairros há sempre muitas. O cigano gosta de crianças, de filhos».

Tanto João como Vera (e os seus filhos) recebem Rendimento Social de Inserção (RSI), mas estão ambos inscritos no IEFP, embora nunca tenham sido chamados para nenhum emprego. João diz que vai fazendo «uns biscates, sempre que aparece alguma coisa». Vera tirou um curso de costura no IEFP e está esperançada que a chamem: «posso ir para uma casa fazer bainhas ou arranjos, posso trabalhar num hotel», diz. «A gente não tem aquelas grandes capacidades, é mais difícil». Nem sequer refere que dificilmente uma mulher cigana consegue um emprego, mas isso fica implícito nas reticências do seu sorriso.

Paula Pereira, chefe de Divisão de Habitação, Desenvolvimento Social e Saúde da Câmara de Portimão, que também acompanha a visita, explica que a comunidade cigana do Vale da Arrancada se ocupa com a venda ambulante ou recebe o RSI. Mas, com a pandemia, diz uma das técnicas do Gabinete de Apoio, «a venda ambulante parou e eles deixaram de ter uma fonte de rendimento importante».

Mais à frente, está outra vizinha, que teve um bebé há pouco tempo, logo que se mudou para o novo bairro do Vale da Arrancada. Mal vê a vereadora e o vice-presidente aproximarem-se, diz: «isto não é uma casa, é um contentor! Tive uma bebé, foi a primeira a nascer aqui neste bairro, e agora não tenho um quarto para ela, tem de ficar comigo».

A vereadora Teresa Mendes pergunta: «então não está aqui melhor? Lá onde estava não tinha água canalizada, nem esgotos, mas aqui tem».

Uns metros mais adiante, duas avós, uma delas com um neto ainda bebé ao colo, garantem: «Gostava mais de estar na barraca que aqui onde estou. Isto é só bonito, de resto não vale nada!»

A autarca assume que «há aqui coisas que têm ainda de ser retificadas. Os arruamentos, por exemplo, vão ser melhorados. E precisam mesmo de ser!».

Paula Pereira acrescenta: «depois de instalar aqui estas famílias, tivemos o cuidado de ir de casa em casa para ver quais os problemas existentes. Vai ser tudo retificado».

Joana Pedro é a gestora do projeto de intervenção social «(Re)Viver no meu bairro», que atua no bairro social da Cruz da Parteira, nas Cardosas e agora também no Vale da Arrancada, ou seja, em todos os locais de relojamento de famílias da comunidade cigana na cidade de Portimão.

No fundo, explica Joana, o seu trabalho é fazer «mediação», estabelecendo uma muito necessária «ponte entre a Câmara e a população cigana».

E é no âmbito desse trabalho, de que fala com entusiasmo, que está a desenvolver um ateliê de jardinagem, para que sejam os moradores do novo bairro a criar os seus próprios jardins e recantos floridos.

Por outro lado, recorda Joana, «foram as crianças que, noutro ateliê, criaram as decorações para os seus quartos, nas casas novas».

Outra das frentes em que o projeto social vai atuar é na alfabetização, esta mais virada para os adultos. «Aqui, a maior parte das pessoas não têm escolaridade, tirando os miúdos que vão à escola ou perdem o RSI».

«Vamos iniciar uma turma de alfabetização para adultos e já temos três pessoas interessadas». Uma delas é a D. Ivone, uma matriarca mais idosa, viúva e vestida de preto. «A D. Ivone até já tinha feito um curso de alfabetização há uns anos, no IEFP, mas depois não usou a aprendizagem para nada e acabou por esquecer a maior parte. Não usam e perdem. Agora diz que quer ir de novo aprender a ler e a escrever», explica Paula Pereira.

O processo começou agora, com a mudança da comunidade para o seu novo bairro, mas as aulas de alfabetização só deverão começar daqui a três meses.

Para as crianças, há apoio escolar, nas tardes de terça. quarta, quinta e sexta-feira.

Aos sábados de manhã, há atividades infanto-juvenis: ginástica, expressão plástica, criação de pulseiras, origami, música. Tudo atividades que ajudam os miúdos ciganos a desenvolver capacidades como a concentração numa tarefa ou até regras básicas de convivialidade. «Na Cruz da Parteira, já tínhamos estas atividades, que começámos agora também aqui».

E há progressos? «Sim, já se nota muitas diferenças no comportamento dos miúdos. Já dizem obrigado, com licença, têm mais cuidado com o lixo. Ainda há dias um deles, o Igor, comeu um croissant e jogou o papel para o chão. Mas foi ele mesmo a ir apanhar e disse-me: se deixo isto aqui vai parar ao mar, não é? São coisas que aqui e na escola lhes vamos ensinando».

E há por ali verdadeiros talentos: «duas crianças que moram aqui no Vale da Arrancada, o Junior e o António, de 10 e 12 anos, tocam guitarra e um deles canta muito bem. Vão às quartas-feiras ter com o Samuel ao estúdio do projeto “PorTiArtista” que temos na Cruz da Parteira», criado no âmbito da candidatura ao programa governamental «Bairros Saudáveis».

Para os adultos, em especial para as mulheres, há formações sobre coisas aparentemente triviais, mas com as quais têm de aprender a lidar, no âmbito da economia doméstica: «Como é que se limpa o exaustor, que não tinham nas barracas? Como é que se trabalha com a máquina da roupa? Como é que se paga a água e a luz ou se tira uma senha do portal das Finanças ou da Segurança Social?». Estas são, segundo Paula Pereira, algumas das coisas que é preciso ensinar…e aprender.

A chefe da Divisão de Desenvolvimento Social acrescenta que «todas estas são famílias muito numerosas, que juntam debaixo do mesmo teto várias gerações. Temos aqui três matriarcas, mulheres mais velhas, as avós, com quem os netos ficam, quando são pequenos ou quando não estão na escola. Avó que é avó faz comida de tacho para todos, nem que seja uma panela de sopa».

Todas as famílias que se mudaram para as casas préfabricadas do novo bairro do Vale da Arrancada assinaram, com a Câmara de Portimão, um contrato de comodato. Mas a água e a luz que consomem está em nome de cada família, que tem de as pagar. Uma obrigação nova a que não estavam habituadas, mas que agora estão a aprender.

Ao contrário do boato que chegou a circular nas redes sociais quando a demolição das barracas começou, em Setembro, nenhuma das famílias ciganas recebeu dinheiro – havia rumores de vários milhares de euros… – para sair das barracas e mudar-se para o Vale da Arrancada.

A vereadora Teresa Mendes salienta que foi apenas um boato, lançado em tempo de campanha eleitoral, para dar a entender que a autarquia privilegiava a comunidade cigana em detrimento dos outros municípes. «Não é verdade!», garantiu. Aliás, durante a visita ao novo bairro, seriam duas moradoras do Vale da Arrancada a pedir satisfações à autarca em relação ao dinheiro que, supostamente, a Câmara lhes havia de dar. «Nunca recebemos nada. Como é?», interpelaram as duas mulheres ciganas.

Todo o trabalho que, há pelo menos duas décadas, a Câmara Municipal de Portimão, as igrejas e outras entidades, têm feito com a comunidade cigana começa a dar bons frutos. «Temos aqui já alguns ciganos, ligados à igreja, que trabalham em supermercados, investem na educação dos filhos, que estão a fazer cursos técnico-profissionais. Um deles até já se voluntariou para vir aqui fazer atividades aos sábados», revela Paula Pereira.

Nem tudo é um mar de rosas, admite: «há mais rapazes que raparigas ciganas no 11º e no 12º ano, mas cada vez vai havendo mais. Há mesmo um cigano de Portimão que é militar da GNR», acrescenta.

«Para mudar, são precisas gerações, mas já se vai notando a diferença», conclui.

Joana Pedro explica que uma das coisas que tenta incutir aos miúdos ciganos é orgulho na sua etnia. Por isso lhes mostrou a sua bandeira, a tal cujas cores estão nas barras das casas, lhes deu a ouvir o hino, ou lhes falou dos muitos membros da etnia que são figuras públicas e reconhecidas. «Eles já tinham ouvido falar do nosso Quaresma, jogador de futebol da seleção. Mas quando eles descobriram que o jogador sueco Ibrahimović também é cigano, os miúdos passaram-se!»