Victor M. Pinto (texto), in Solidariedade
O Governo aprovou em Dezembro a Estratégia Nacional de Combate à Pobreza 2021-2030, referindo que se trata de "um instrumento que visa concretizar uma abordagem multidimensional e transversal de articulação das políticas públicas tendo em vista a erradicação da pobreza". A Estratégia tem entre os seus objetivos a redução da taxa de pobreza para 10% da população, o que significa retirar 660 mil pessoas da situação de pobreza até 2030 e a meta de reduzir para metade a pobreza das crianças, o que significará retirar 170 mil crianças desta condição durante o mesmo período de tempo.
A Estratégia Nacional de Combate à Pobreza (ENCP) é a última tentativa para acabar com os níveis persistentes de risco de pobreza em Portugal que têm oscilado entre os 17% e os 22 %.
A estabilidade saída das últimas eleições legislativas, com a maioria absoluta do PS, remove todos os obstáculos de natureza política que podiam impedir a concretização da ENPC.
O risco de pobreza aumentou entre 2019 e 2020, segundo dados do INE, atingindo quase 2 milhões de pessoas e com subidas maiores entre mulheres e idosos, mas também nas famílias. A taxa de risco de pobreza após transferências sociais passou de 16,2% em 2019 para 18,4% em 2020.
Carlos Farinha Rodrigues, é um economista especialista nas áreas de distribuição do rendimento, desigualdade, pobreza e políticas sociais. Integra a comissão que delineou a Estratégia de Combate à pobreza em Portugal.
CARLOS FARINHA RODRIGUES
Carlos Farinha Rodrigues ér Professor Associado da Lisbon School of Economics and Management da Universidade de Lisboa (ISEG/UL) e Investigador do Cemapre (Centro de Matemática Aplicada à Previsão e Decisão Económica) nas áreas de distribuição do rendimento, desigualdade, pobreza e políticas sociais.
É membro da Direcção do Instituto de Políticas Públicas Thomas Jefferson-Correia da Serra e assessor do Instituto nacional de Estatística nas áreas de distribuição do rendimento e das estatísticas das famílias. Membro da comissão de coordenação de preparação de uma proposta de Estratégia Nacional de Combate à Pobreza em Portugal.
É consultor científico do Programa Proinfância promovido pela Fundação La Caixa dirigido a famílias com crianças em situação de pobreza e exclusão social. É coordenador científico em Portugal do projecto europeu "EUROMOD - Tax-benefit microsimulation model for the European Union". Desde 2013 é coordenadpr do Mestrado em Economia e Políticas Públicas do ISEG - Universidade de Lisboa. Tem publicado diversas estudos sobre a distribuição do rendimento em Portugal, a desigualdade, a pobreza e a eficácia redistributiva das políticas públicas.
JORNAL SOLIDARIEDADE – O resultado das eleições é favorável à implementação da Estratégia?CARLOS FARINHA RODRIGUES – Eu diria que sim. Haverá uma intenção maior de que a Estratégia vá em frente. Eu penso, apesar de tudo, que a necessidade de uma Estratégia de Combate à Pobreza é de tal forma urgente e necessária que qualquer partido responsável teria de, com esta fórmula ou com outra, ter este tipo de preocupações. É evidente que aqui o PS comprometeu-se com esta Estratégia, que está definida, quer nos Pilares Europeus dos Direitos Sociais quer no PRR. Dificilmente qualquer governo responsável poderia deixar de dar atenção a esta situação. Estranhei, com pena, que o assunto da Estratégia do Combate à Pobreza tenha ficado fora do debate eleitoral. Com a atual maioria há condições reforçadas para que a Estratégia siga o seu caminho.
Os números da pobreza em Portugal nunca estiveram tão altos, desde 2014, como agora. Considera a pandemia a principal causa?
Entre 2014 e 2019 nós tivemos um caminho que se traduziu numa redução significativa dos principais indicadores de pobreza, desigualdade e exclusão social. Em 2019 atingimos os números mais baixos desde que existe registo dessa informação pelo INE. Havia um percurso que está relacionado com as políticas seguidas, tem a ver com a recuperação da economia, mas a tendência era claramente de diminuição. Não significa que estávamos bem, continuávamos a ser dos países com maior pobreza e desigualdade no contexto europeu, mas estávamos no bom caminho. Os dados do INE referentes a 2020 representam um ponto de travagem da recuperação positiva destes indicadores.
Mais do que travagem foi um retrocesso de 2,2%...
Houve, de facto um retrocesso de 2,3 anos nalguns casos. Nós não podemos deixar de associar isso à pandemia, à travagem da atividade económica e aos efeitos das medidas que foi necessário tomar para conter a pandemia. Não há outra justificação. Aliás, quando se olha para os efeitos da pandemia, em 2020, verifica-se que se traduziram no reforço dos fatores tradicionais de pobreza, exclusão e desigualdade, mas também da emergência de novos fatores. Deixe-me dar um exemplo simples: a experiência que nós temos de crises anteriores, designadamente a que esteve associada ao plano da Troika, mostrava-nos que tínhamos um agravamento grande nos rendimentos das famílias, mas ao mesmo tempo subsistiam alguns fatores que amorteciam esse efeito. Era o trabalho informal, os biscates e os pequenos trabalhos, que constituíram, nas crises anteriores, uma almofada que amorteceu os efeitos económicos que aconteciam na economia formal com a queda dos rendimentos. Com a paralisação completa da atividade económica em largos períodos de 2020 essa almofada deixou de funcionar. Mais, nós descobrimos que a não existência dessa possibilidade tinha uma consequência adicional: essas pessoas que viviam desses trabalhos, negócios e biscates estavam afastados do mercado formal de emprego e não estavam abrangidos pelos sistemas tradicionais de segurança social. Houve um conjunto de famílias que, de repente, encontraram-se sem qualquer tipo de proteção. É verdade que o governo tentou trazer essas pessoas para o sistema de proteção social. Não foi o suficiente, mas terá sido o possível. Os efeitos desta pandemia, do ponto de vista social, têm uma característica: foram profundamente desiguais. Houve sectores que não foram afetados, como os funcionários públicos e os reformados, e outros que foram obrigados a parar. A pandemia provocou um reforço dos fatores de pobreza em Portugal e dos fatores de desigualdade. Há ainda outro aspeto importante... Os dados do INE mostram que em média os rendimentos familiares subiram pouco menos que três por cento, mas quando nós olhámos para os dez por cento mais pobres os seus rendimentos tiveram uma quebra muito grande. Ou seja: uma das características desta pandemia é que ela foi profundamente desigual nos seus efeitos sociais, atingindo sectores mais desprotegidos de uma forma mais intensa. As medidas europeias da desigualdade e pobreza são calculadas a partir dos rendimentos, mas a minha experiência diz-me que cada vez mais há uma determinante da pobreza e exclusão social que não é apanhada nas estatísticas que é a incapacidade de largas camadas da população terem acesso a serviços básicos essenciais. Também se agravaram as desigualdades. E, por via das paralisações do sistema de ensino, tivemos o desenvolvimento de fatores potenciais de desigualdade que são importantes no presente, mas vão ter um peso muito grande no futuro se não forem tomadas medidas ativas para os contrariar.
Uma das surpresas em relação à questão da pobreza foi a descoberta de que não basta ter um emprego estável para evitar ser pobre. Isso chega a ser cruel.
O facto de termos uma percentagem de working poor tão elevada, 10 a 11%, é extremamente preocupante. Significa que o combate à pobreza passa, mais uma vez, pelo combate às desigualdades, mas também por uma valorização do fator trabalho que na minha opinião não tem acontecido como devia nos últimos anos.
Isso leva à discussão do aumento do ordenado mínimo e do ordenado médio...
Leva-nos a uma discussão muito vasta sobre a forma de encarar o salário nos nossos dias. Nós hoje temos formas de trabalho menos tradicional e temos que encontrar respostas de forma que não signifiquem uma desvalorização dos direitos. Por outro lado, continuamos a ser um país de baixos salários e, obviamente, a questão dos aumentos do salário mínimo tem tido um efeito positivo, mas não basta. Temos que ter um aumento do salário médio. Esta aproximação do salário mínimo ao médio acaba por reduzir a eficácia dos aumentos. Aumenta o contingente de pessoas com salários mínimos e dá muito poucas perspetivas para a resolução do problema dos working poor.
Verifica-se que há mais de uma década se fala intensamente no combate à pobreza, mas não há meio de se verem resultados. Porquê?
Há várias questões. É verdade que nós hoje temos uma discussão maior na agenda política e mediática das questões da pobreza. Isso é positivo. Temos que ter presente a ideia de que a pobreza não é um problema dos pobres. É um problema nosso enquanto sociedade. Uma sociedade quem os níveis que nós temos é, do ponto de vista democrático e da coesão social, uma sociedade mais pobre. Colocar-se uma ênfase superior no debate é em si mesmo positivo. Mas só é produtivo se houver alteração de políticas. Temos tidos um conjunto de políticas sociais de combate à pobreza que têm tido resultados, mas o problema da pobreza não se resolve só através das políticas sociais. Temos que ter uma visão integrada do sistema económico que permita ter um conjunto de políticas integradas que não se esgotam nas políticas sociais. Isso implica colocar o combate à pobreza como algo transversal às políticas públicas. Só assim se resolve o problema de forma estrutural. Por outro lado, quando pensamos em reduzir ou erradicar a pobreza eu não tenho dúvidas nenhumas que é necessário ganharmos as pessoas para este combate. É fundamental uma consensualização o mais alargada possível. Cada um de nós tem que sentir que é importante para o futuro coletivo. Deixe-me dar um exemplo elucidativo: quando comecei a estudar a pobreza em Portugal foi pela profunda injustiça que ela representava. Hoje continuo convencido que a pobreza é uma forma gravíssima de injustiça, é uma violação dos direitos básicos das pessoas, mas, e eu sou economista, não tenho dúvidas, a pobreza que temos é um fator que impede o crescimento e o desenvolvimento económico. Por isso o combate à pobreza tem que ser feito por uma questão de equidade, mas também pela eficiência económica. A pobreza é um travão ao crescimento e ao desenvolvimento económico, é uma violação dos direitos humanos e é um fator de fragilidade da coesão social. É por isso que um dos objetivos da Estratégia de Combate à Pobreza é fazer desse combate um desígnio nacional. É um objetivo instrumental para ganharmos o combate.
Considera que há uma componente hereditária, sucessória, transmissível da condição de pobreza nas sociedades, comunidades e famílias?
Nós sabemos que existe uma parcela muito significativa da nossa população pobre que resulta de uma transmissão inter-geracional da pobreza. O que eu rejeito liminarmente é a sua inevitabilidade. Quando se ouve frequentemente dizer uma das frases mais assassinas, a ideia de que “pobres sempre existiram e existirão”, é preciso termos a noção de que não é verdade. A pobreza é o resultado da forma como nós organizamos e fazemos funcionar a sociedade. Como tal, acredito que se houver vontade política, um desígnio nacional, nós podemos quebrar o ciclo de transmissão geracional da pobreza e podemos fazer com que esta frase deixe de ser tão consensual. É por isso que eu defendo que o primeiro objetivo de qualquer estratégia tem que ser combater a situação das crianças em situação de pobreza.
A pobreza envergonhada continua a ser uma realidade?
Existe sim. Quando investigamos a perceção que as populações pobres têm sobre a pobreza é muito frequente nós ouvirmos esta resposta: “Não, eu não sou pobre eu sou remediado, pobres eram os meus pais quando uma sardinha dava para três refeições por dia”. Há uma razão histórica. Ainda está muito presente, muito viva, a memória da pobreza dos anos 50/60 do século passado. Apesar dos indicadores graves que temos em matéria de pobreza, nas últimas décadas demos passos de gigante na melhoria das condições de vida das pessoas. A forma de avaliarmos a pobreza não é estática ao longo do tempo, depende das condições que a sociedade tem e o que é grave é que nós tenhamos milhares de pessoas excluídas das formas normais de funcionamento social.
Acredita que não é uma utopia erradicar a pobreza?
É uma questão complexa. Eu não considero uma utopia nós reduzirmos fortemente a pobreza e melhorarmos as condições de vida da população. Há aspetos, nomeadamente de natureza técnica, que limitam esse tipo de análise. Vamos a um exemplo. Nós hoje medimos a pobreza de forma relativa. Uma família é considerada pobre se tiver menos de 60 por cento do rendimento mediano. Significa que eu só conseguiria erradicar a pobreza com uma distribuição igualitária dos rendimentos que ninguém defende. Não acho que seja uma utopia, é um objetivo que temos que assumir. Deixarmos de ter pobres é uma meta. Isso implica não nos limitarmos à pobreza monetária, mas definirmos o objetivo de encontrarmos maneira de darmos às pessoas que vivem em Portugal uma vida digna.
A Estratégia está aprovada agora falta pô-la em prática. Do ponto de vista político há condições para a sua exequibilidade. Quais são os passos seguintes?
O governo anterior decidiu nomear uma comissão de que tive o privilégio de fazer parte para estudar e propor uma Estratégia de Combate à Pobreza em Portugal. Essa comissão fez um diagnóstico muito aprofundado da situação, fez propostas claras de métodos e objetivos e elaborou um documento extenso que está disponível no site do Grupo de Estudos e Planeamento da Segurança Social. O governo apresentou uma lei que consagra a Estratégia e de uma forma geral consagra muitos dos princípios que foram definidos nessa comissão. Do ponto de visto político há condições para o processo avançar. O que é importante nós percebermos é que a aprovação desta Estratégia é um ponto de partida não é um ponto de chegada, ou seja, espero que haja vontade política para a concretizar. O que significa ter uma nova visão: a ideia de que o combate à pobreza não é um problema exclusivo das políticas sociais, mas é um problema transversal às várias políticas públicas; a ideia de que é necessário definir metas e monitorizar a forma como elas estão ou não a ser alcançadas; a possibilidade de participação que permita às organizações da sociedade civil e cada um de nós, enquanto cidadãos, integrar a elaboração e a avaliação dessa Estratégia. Recordo que houve um debate intenso com a sociedade civil, houve um pedido às instituições que lidam com as questões da pobreza para darem o seu contributo e houve uma resposta muito participada, o documento esteve em discussão pública antes de ser publicado. É preciso vontade política e participação do governo, das instituições do Estado central, das Autarquias, da Instituições de Solidariedade Social, mas também as próprias populações em situação de pobreza. Nós temos as condições para implementar a Estratégia. Um dos fatores de viabilidade é considerar que o combate à pobreza está ao mesmo nível das outras políticas públicas.
O Sector Social Solidário com o conhecimento que tem deve, em seu entender, ser fortemente envolvido?
Eu acho que sim porque uma das limitações no combate à pobreza foi alguma compartimentação, mesmo fragmentação de políticas. Sabemos que há vários atores que têm papéis importantes no combate à pobreza. Fala das Instituições de Solidariedade Social, claro que sim, mas também as Autarquias Locais. Faltava uma Estratégia. E o objetivo de uma Estratégia não é termos ou dizermos que temos uma Estratégia. É termos algo que dê consistência, que permita gerar sinergias de todos os agentes envolvidos. Um exemplo: muitas das Instituições de Solidariedade Social têm um trabalho meritório no combate à pobreza, mas grande parte funcionam como ilhas isoladas. Não temos sido capazes de as integrar num projeto comum. A existência de uma Estratégia pode ser um fator que promova a consistência entre várias políticas, nomeadamente aquelas que implicam ação direta no terreno com os vários agentes envolvidos.
A redução a metade da taxa de pobreza nos próximos dez anos é exequível?
É o objetivo que nós propusemos e deve nortear a nossa atividade. Só o ano da pandemia significou um aumento de dois pontos percentuais. Temos que perceber o que significou este retrocesso em 2020. Há uma inversão da tendência anterior provocada pela pandemia, numa visão negativa, ou numa perspetiva contrária, perceber que foi um ponto excecional, um outlier, como dizem os estatísticos, e a partir daqui, se tomarmos as medidas corretas, vamos recuperar o caminho da redução da pobreza. Os dez por cento é o objetivo de nos aproximarmos dos níveis de pobreza que existem nos países mais desenvolvidos da Europa. Costumamos dizer que a taxa de pobreza em Portugal anda na média da União Europeia. A Estratégia Nacional de Combate à Pobreza serve para nós não nos reduzirmos a isso. Temos que ir mais longe, queremos ser um país com uma das mais baixas taxas de pobreza da Europa.