Claudia Carvalho Silva, in Público on-line
Com um planeta mais quente, as medidas terão de ser cada vez mais fortes. O IPCC apresentou esta segunda-feira um relatório que é sobre “as consequências da inacção” num mundo em que as alterações climáticas já afectam milhões de pessoas.
As alterações climáticas são uma ameaça gigante para o nosso bem-estar e para um “planeta saudável” e “é agora claro que mudanças pequenas, marginais e reactivas não serão suficientes”, alerta o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC). O novo relatório feito pelo Grupo de Trabalho II do IPCC foi apresentado na manhã desta segunda-feira e indica que são precisas (mais) medidas urgentes para nos adaptarmos aos efeitos das alterações climáticas, em simultâneo com um corte nas emissões de gases com efeito de estufa para impedir que o planeta continue a aquecer. Chegámos a um ponto em que não se pode continuar a pensar só a curto prazo. “Meias medidas já não são uma opção”, assevera o presidente do IPCC, Hoesung Lee.
“As nossas acções de hoje definirão como as pessoas se adaptam e como a natureza responde aos riscos crescentes causados pelas alterações climáticas”, lê-se nas conclusões do relatório. Nas próximas duas décadas e com um aumento da temperatura global de 1,5 graus Celsius, as ameaças serão uma realidade e são “inevitáveis”. Se o aumento da temperatura for superior – mesmo que temporariamente –, alguns destes impactos serão irreversíveis.
Apesar de muitos indicadores serem alarmantes, ainda há esperança: as acções que limitem o aquecimento global a 1,5 graus Celsius “reduziriam substancialmente as perdas e danos previstos” – “mas não os poderão eliminar a todos por completo”.
Dependência dos combustíveis fósseis é um “beco sem saída”
O secretário-geral da ONU, António Guterres, afirmou na conferência de imprensa virtual desta manhã que metade da humanidade está agora a viver na zona de perigo das alterações climáticas. O relatório é sinal do “sofrimento humano”, de uma “catástrofe” que se avizinha.
Diz que os combustíveis fósseis estão a “esganar” a humanidade e que a dependência destes recursos nos deixa vulneráveis a crises e a choques geopolíticos. “Os combustíveis fósseis são um beco sem saída para o planeta, para a humanidade e para as economias”, afirmou Guterres, dizendo que a adaptação pode salvar vidas. Mas há urgência.
Na mesma conferência de imprensa, a directora executiva do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, Inger Andersen, manteve o tom: “Estamos numa emergência à espera de um desastre”, afirmou, dizendo que as medidas têm sido “demasiado fracas”. “A natureza pode salvar-nos – mas só se a salvarmos primeiro.”
Certo é que, a cada subida da temperatura global, as medidas tornam-se menos eficazes. Existem “grandes lacunas” entre o esforço que está a ser feito por uns e a adaptação que é necessária para se responder ao ritmo a que galgam as alterações climáticas. Sem nunca esquecer que tudo está interligado: o clima, a biodiversidade, as pessoas.
De resto, os riscos das alterações climáticas já são conhecidos: haverá mais ondas de calor, mais seca, mais cheias – que já estão a desafiar os limites dos animais e das plantas, causando a morte e extinção de espécies, incluindo árvores e corais. Não é um problema do futuro: “É inequívoco que as alterações climáticas já estão a prejudicar os sistemas humanos e naturais.”
3,6 mil milhões vivem em zonas vulneráveis
O relatório sublinha também que as alterações climáticas interagem com outros riscos: a população mundial está a aumentar, há um consumo de recursos excessivo e insustentável, há cada vez mais pessoas a morar nas cidades e as desigualdades e pobreza permanecem. Como acontece noutros contextos, quem sofre mais são as populações mais vulneráveis. O IPCC estima que cerca de 3,3 a 3,6 mil milhões de pessoas vivem em contextos altamente vulneráveis às alterações climáticas. Os riscos para as sociedades estão a aumentar, incluindo quem vive em zonas costeiras.
O grupo de trabalho alerta que os impactos e os riscos estão a ser cada vez mais “complexos e difíceis de gerir”. Há fenómenos causados pelas alterações climáticas que passarão a acontecer com mais frequência e em simultâneo. “O aumento de extremos climáticos levou a alguns impactos irreversíveis, enquanto os sistemas naturais e humanos são levados além da sua capacidade de se adaptarem.”
O diagnóstico vai sendo feito nas linhas do relatório. As alterações nos ecossistemas aumentam o risco de doenças nos animais e nas pessoas. Há mais alturas perigosas de risco de incêndios florestais e a área ardida é cada vez maior. Também “as condições de seca se tornam mais frequentes em muitas regiões, afectando negativamente a produção agrícola e de energia das centrais hidroeléctricas”. Foi o que aconteceu em Portugal neste mês de Fevereiro.
Estes perigos estão a tornar-se evidentes “em todas as regiões” do planeta, desde “o fundo do oceano até ao topo das montanhas mais altas”, assim como em cidades e zonas rurais – e a magnitude destes impactos “é maior do que se estimava anteriormente”, revela este documento do IPCC. O aumento das temperaturas faz com que os animais e as plantas tendam a migrar em direcção aos pólos, para altitudes mais altas ou para águas mais profundas. “Muitas espécies estão a atingir o limite das suas capacidades de se adaptarem às alterações climáticas”, lê-se. As que não conseguirem ficam em risco de extinção.
Qualquer atraso adicional numa acção global concertada fará com que percamos a oportunidade de assegurar um futuro habitável Hans-Otto Pörtner, vice-presidente do IPCC
Como se pode resolver esta ameaça à vida e à biodiversidade? “É preciso uma acção ambiciosa e acelerada para nos adaptarmos às alterações climáticas” – tudo isto enquanto se fazem “cortes profundos” nas emissões de gases com efeito de estufa. Por enquanto, denuncia o relatório, as medidas têm sido tomadas de forma desigual pelos países.
“Qualquer atraso adicional numa acção global concertada fará com que percamos a oportunidade de assegurar um futuro habitável”, garante o vice-presidente do IPCC, Hans-Otto Pörtner, citado em comunicado. Salvaguardar a biodiversidade e os ecossistemas é essencial. As decisões que se tomarão nesta próxima década ditarão a resiliência climática, mas tudo isto será limitado “se as emissões de gases com efeito de estufa actuais não diminuírem rapidamente”.
Uma das soluções é restaurar ecossistemas danificados, já que os meios saudáveis conseguem enfrentar melhor as alterações climáticas. A natureza é a nossa melhor aliada, já que consegue absorver e armazenar carbono. Já certas práticas humanas são vistas como inimigos: o uso intensivo e pouco sustentável de recursos naturais, uma urbanização crescente, desigualdades sociais, e as perdas causadas por eventos extremos e por uma pandemia. O IPCC refere que há milhões de pessoas por todo o planeta que sofrem já o impacto da escassez de água e de alimentos.
Quem fica em risco não somos só nós – é o futuro. Para o IPCC, é preciso uma resposta coordenada: estes desafios precisam de uma resposta de todos, dos governos à sociedade, ao sector privado e à comunidade científica e escolar, desenvolvendo também “parcerias com grupos tradicionalmente marginalizados”, como os jovens, as mulheres, minorias étnicas e comunidades locais. As alterações climáticas são um desafio global, mas muitas das respostas devem ser locais, refere o grupo de trabalho.
O relatório, intitulado Alterações Climáticas 2022: Impactos, Adaptação e Vulnerabilidade, era para ser apresentado em Setembro de 2021, mas a pandemia atrasou o processo. É a segunda vez que o IPCC apresenta um relatório destes de forma virtual. O IPCC tem três grupos de trabalho e este segundo dedica-se aos impactos, adaptação e vulnerabilidade das alterações climáticas.
As cidades em risco
As cidades têm um lugar especial neste relatório. É nas cidades que vive mais de metade da população mundial e é lá que muitos dos impactos das alterações climáticas se fazem sentir, como as ondas de calor, as tempestades e outros fenómenos mais lentos, como a subida do nível médio da água do mar. “As zonas quentes estão a ficar mais quentes e está a reduzir-se drasticamente o tempo que as pessoas podem passar ao ar livre.”
Quem vive nas cidades sofre também com uma qualidade do ar mais fraca. Tudo isto pode afectar a saúde mental de quem lá vive – mas também a saúde física, podendo causar mortes.
Nas cidades em que há maiores níveis de pobreza e pouco planeamento urbano, o risco é maior. Ainda assim, estas malhas urbanas podem também ser uma oportunidade: há que apostar em “edifícios mais verdes, segurança no abastecimento de água potável e de energias renováveis, sistemas de transportes sustentáveis que conectem as áreas urbanas e rurais”, resume Debra Roberts, também vice-presidente do IPCC. Tudo isto poderá contribuir para uma “uma sociedade mais inclusiva e mais justa”.
Na Europa, as medidas em curso não estão a ser suficientes
Na parte do relatório dedicada à Europa, fica claro que o mundo actual (que já está 1,1ºC mais quente) está a afectar os sistemas humanos e naturais no continente. Os efeitos já são visíveis, incluindo nas ondas de calor e secas que se tornaram mais frequentes. Em Portugal, 2022 está a ser um dos piores anos de seca e um dos mais secos. Com o aumento de temperaturas, haverá também um maior número de mortes e de pessoas com complicações de saúde.
“Em muitas partes da Europa, as medidas de adaptação existentes e planeadas não são suficientes para evitar o risco”, lê-se no documento do IPCC, sobretudo com a subida da temperatura global perto ultrapassar os 1.5ºC em relação aos níveis pré-industriais. Este risco pode levar a uma perda de habitats e de ecossistemas, falhas na produção agrícola e até a um racionamento de água durante as secas no sul da Europa.
O IPCC refere precisamente que as zonas a sul da Europa serão as mais afectadas do continente e que haverá perdas significativas na produção agrícola na maior parte da Europa. A escassez de água agravará este cenário. No Sul da Europa, aliás, “mais de um terço da população estará exposta à escassez de água”, se as temperaturas subirem 2ºC. Isto também afectará as indústrias que estão dependentes da água e da energia hidroeléctrica.
A subida do nível médio da água do mar é outro dos riscos identificados na Europa. Os danos causados pelas inundações costeiras poderão ser dez vezes mais frequentes até ao final do século. “A subida do nível do mar representa uma ameaça da existência de comunidades costeiras e da sua herança cultural, sobretudo depois de 2100”, lê-se.
As soluções passam por uma melhor gestão da água, repensar a forma como se rega na agricultura, uma melhor gestão dos incêndios florestais, sistemas de aviso para inundações, e também intervenções em edifícios para se enfrentar as ondas de calor.
Como “barreira” a estas medidas está o pouco financiamento, “um reduzido sentido de urgência” e também “falta de liderança política”. É urgente deixar de pensar a curto-prazo, ressalva o IPCC. E há que pensar a nível local: “O sucesso da adaptação dependerá do nosso conhecimento de quais as opções de adaptação são fazíveis e eficazes num contexto local”.