22.2.22

Imigrantes nas estufas do Alentejo assumem luta por trabalho mais digno

Ana Dias Cordeiro (texto) e Nuno Ferreira Santos (fotografia), in Público on-line

As más condições de trabalho nas explorações agrícolas em Odemira não são uma novidade . “A novidade aqui é que houve 300 trabalhadores que perderam o medo e foram pedir explicações à administração, no fim da jornada de trabalho. Foram em grupo, ordeiramente, num movimento espontâneo”, diz Alberto Matos, da Solidariedade Imigrante “Isto cria pressão.”

Estar vigilante tornou-se parte da natureza —​ e da condição — de Birat Khatri. Cinco anos a trabalhar nas estufas da empresa Sudoberry, no litoral alentejano, mostraram a este nepalês de 32 anos que há várias formas de silenciar os imigrantes que chegam desejosos de trabalho a Portugal, mas sem nenhum conhecimento da língua, das leis do trabalho ou dos seus direitos individuais.

São formas difusas de intimidação; e de tal forma enraizadas que, só muito recentemente, Birat começou a fazer-lhes face. Passam-se meses, ou anos, em que não se ouve uma queixa.

Em 2021, as más condições em que imigrantes trabalhavam ou estavam alojados, nas próprias instalações de algumas grandes empresas, motivaram reacções quando um surto de covid-19 entre os trabalhadores trouxe a realidade laboral em Odemira para as primeiras páginas dos jornais.

Neste mês, foi diferente. As queixas fizeram-se ouvir pelos próprios trabalhadores. “O copo encheu”, como dirá o representante da Solidariedade Imigrante em Beja, Alberto Matos, que conheceu Birat esta semana.

No dia 11 de Janeiro, no final da jornada de trabalho, Birat Khatri e largas dezenas de trabalhadores dirigiram-se aos escritórios da empresa para falar com a administração. O movimento ganhou força pela visibilidade dada por uma reportagem da SIC (a estação que esteve no local refere 300 manifestantes).

Ao falarem para a câmara, tanto Birat como a Pramila Bamjan, de 35 anos, tornaram a sua revolta pública e, sem medo, colocaram as suas queixas na agenda da Sudoberry, no centro das preocupações da associação Solidariedade Imigrante e no foco das prioridades da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT). De forma assertiva, denunciaram o contrato “pouco transparente” o que, quanto a eles, abre a porta a abusos.

Nesse protesto pacífico, em movimento compacto, quiseram perguntar por que motivo, para as mesmas horas de trabalho, receberam uma menor quantia no mês de Janeiro; entre 200 e 400 euros a menos consoante os casos.

Um imposto sem explicação

Birat, Pramila, Robin Thapa e Urmila Bamjan contam que a empresa justificou com algo que estaria fora do seu alcance: a suposta aplicação de um imposto novo decidido pelo Governo português, dizem ao PÚBLICO. “Foi isso que nos foi transmitido”, insiste Birat. “Mas nós não sabemos se isso é verdade, não sabemos de que imposto se trata, continuamos à espera de uma explicação”, completa Pramila.

Para Alberto Matos, dirigente da Associação Solidariedade Imigrante e representante desta associação de defesa dos direitos dos imigrantes na delegação em Beja, “este foi mais um problema de uma situação sistemática” criada por “abusos sobre os direitos dos trabalhadores que esta e outras empresas consideram estar na sua dependência”.

“A novidade aqui é que houve 300 trabalhadores que perderam o medo e foram ao escritório da administração, pedir explicações, no fim da jornada de trabalho. Foram em grupo, ordeiramente, num movimento espontâneo”, diz Alberto Matos. “Isto cria pressão.”

A novidade aqui é que houve 300 trabalhadores que perderam o medo e foram ao escritório da administração, pedir explicações, no fim da jornada de trabalho. Foram em grupo, ordeiramente, num movimento espontâneo Alberto Matos, Solidariedade Imigrante

“É importante sermos nós a luta pelos nossos direitos”, diz ao PÚBLICO Pramila Bamjan, de 35 anos. Também por isso, a sua irmã mais velha Urmila Bamjan e o amigo Robin Thapa juntaram-se neste projecto. “Nesta luta, devemos ser como uma família”, acrescenta. São queixas por “excesso de horas de trabalho sem contrapartidas financeiras”, “com pausa de apenas 30 minutos” em cada jornada completa de trabalho.

Os trabalhadores sentem-se igualmente injustiçados por nunca lhes ter sido explicado como são contabilizadas as horas; e quando calculados os totais, não percebem por que são retiradas quantias (apresentadas como subsídios de vários tipos) aos 6,22 euros que o trabalhador julgava ser o valor líquido a receber por hora. Enquanto descrevem a situação, comprovam o que dizem mostrando os recibos de vencimento.

“Não podemos confiar em ninguém”, diz outro trabalhador que pede para não ser identificado. “São eles que decidem se nós temos trabalho ou não, e eu preciso deste trabalho. Viemos para trabalhar e trabalhamos para ganhar dinheiro. O problema é vermos o total do vencimento reduzido sem qualquer explicação, como aconteceu em Janeiro. Sentimos que não querem saber de nós.”
Mais depressa, mais depressa

O contrato prevê um horário flexível, em que o trabalhador é convocado de véspera. Da mesma forma, pode ser dispensado, se a mensagem pretendida pelo patrão for de penalização ou intimidação. Além de tudo isto, aquilo que mais perturba alguns dos manifestantes do dia 11 de Fevereiro, em frente à própria empresa, é “a permanente pressão psicológica”.

“Querem que a gente ande cada vez mais depressa, a colher as bagas com movimentos dos braços sem parar. Estão em cima de nós, a gritar: ‘Mais depressa, mais depressa’”, diz Robin Thapa, também nepalês, disposto a protestar.

“É muito duro. Estamos a trabalhar num ambiente quente, dentro das estufas, e só podemos beber a água que trazemos de casa. Às vezes por mais de oito ou 10 horas”, diz Pramila. “Se bebemos toda a que trazemos, pedimos, mas eles não nos dão, recusam. Se protestamos, chegam a mandar-nos para casa”, salienta Pramila. “A pressão psicológica faz-nos mal.”

Quem não cumpre o objectivo de encher um determinado número de caixas numa hora, ou percorrer uma determinada distância nesse mesmo intervalo, sem deixar uma só baga na árvore, é dispensado para o resto do dia, e no seguinte, segundo os testemunhos de vários trabalhadores. “Alguns colegas têm medo de falar, mas eu não aceito estas condições, não tenho medo de falar. Sei que posso perder o trabalho”, continua Pramila.

Birat identifica uma dependência, mas nos dois sentidos. “A empresa precisa de nós. Os portugueses não aceitam estes trabalhos, nem a maioria dos imigrantes.”

De acordo com os dados mais recentes do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, conhecidos ontem, no ano passado foram atribuídas autorizações de residência sobretudo a cidadãos indianos, brasileiros, nepaleses, italianos, franceses e alemães. Além disso, os nepaleses e os indianos surgem em segundo e terceiro lugares, logo a seguir aos brasileiros, na lista das nacionalidades com mais autorizações de residência para exercício da actividade profissional.

Num dos contratos assinados pelo empregado e empregador, e que o PÚBLICO leu, está expresso que, no caso de trabalho acima do máximo diário de oito horas, “o trabalhador terá direito a compensação”. As horas extras são apresentadas como “eventual trabalho prestado em acréscimo”, e que essa compensação pode ser na forma de uma redução de trabalho ou “mediante o pagamento em dinheiro” das horas extra.

Oportunidade para juntar dinheiro

Estar na apanha da fruta dez ou 12 horas seguidas, na época alta entre Março e Julho, pode ser visto por alguns como algo positivo, uma forma de juntar mais dinheiro em pouco tempo, para enviar para a família no Nepal ou na Índia, ou para garantir meios para os meses de Inverno em que não há muito — ou mesmo nenhum — trabalho. São os meses de Outubro a Dezembro.

“Alguns não se queixam que são demasiadas horas porque provavelmente estão nessa lógica de ganhar mais dinheiro. O que não pode acontecer é que, nessas circunstâncias, o trabalho não seja mais bem pago”, diz Alberto Matos.

Pramila vem de Sarlahi, no Nepal, já trabalhou na Holanda, e reconhece aqui “um tratamento inaceitável”. Além das horas extraordinárias e dos feriados pagos de forma não diferenciada, lamenta a situação de um colega que quando partiu o braço a trabalhar, a empresa não accionou o seguro por acidente de trabalho; antes, exortou-o a apresentar a situação como um acidente doméstico, obrigando-o a meter uma baixa.

Os objectivos definidos pela empresa são conhecidos de todos mas, por vezes, impossíveis, de cumprir. E não constam dos contratos lidos pelo PÚBLICO, como está previsto na lei. Na época alta da framboesa, quem não colhe pelo menos cinco quilos deste fruto em cada hora, é dispensado no momento, fica com a jornada de trabalho reduzida a uma hora, ou poucas mais, faz o percurso de vários quilómetros a pé para casa, e não é chamado a trabalhar no dia seguinte. Quem completa o dia, tem transporte para casa.
Empresa indisponível

Contactada pelo PÚBLICO, a Sudoberry não esclareceu as dúvidas sobre a quantia retirada aos trabalhadores em Janeiro nem se queixas de pressão psicológica se justificam. A directora dos Recursos Humanos, Mónica Rosendo, não respondeu às perguntas colocadas por escrito e transmitiu não estar disponível por se encontrar em reunião, tanto pelo telefone como num contacto presencial.

Os trabalhadores andam durante anos a pagar os milhares de euros cobrados por quem os trouxe para Portugal aliciando-os com supostas condições de trabalho favoráveis. E as ameaças são reais. É-lhes incutido o medo de falar Alberto Matos, Solidariedade Imigrante

A Sudoberry tem mais de 500 trabalhadores (que chegam aos mil na época alta da Primavera e Verão) e dispõe de dezenas de hectares de plantações. No Alentejo, há pelo menos 130 campos agrícolas, o que justifica que todos os dias esteja no terreno uma equipa da Autoridade para as Condições de Trabalho. A ACT já abriu um processo de averiguações a esta empresa, como já fez no passado a outras.

No centro de São Teotónio, numa conversa informal sobre as condições de trabalho, “Routine Stars” surge como um exemplo de uma agência de emprego temporário a que alguns prefeririam não estar ligados.

Em silêncio, um jovem de nacionalidade indiana, há pouco tempo em Portugal, escreve o nome numa folha, indica Malavado como local da empresa, e não responde a mais nenhuma pergunta. Com um sorriso aberto, nega ter medo de falar. “Não, não, não”, diz em inglês antes de abandonar a conversa para não mais voltar.

Na Internet, esta agência não tem registo de morada. Mas em Malavado, é fácil encontrar a casa com tectos baixos, os vidros de trás partidos, e um pátio, a que todos chamam “o escritório da Routine Stars”, embora sem qualquer indicação.

Aqui, não há qualquer escritório, mas vivem nove pessoas em dois quartos e nenhumas condições de higiene ou conforto. Na mesma aldeia mas numa grande vivenda, vive o dono da “Routine Stars”. Diz o nome — Tilak — mas não o apelido e esquiva-se a perguntas sobre a actividade da firma com vários anos.

Garante que, com ele (que diz estar em Portugal há 20 anos), ninguém foi trazido do Nepal, da Índia ou do Paquistão. “Os meus trabalhadores encontraram-me aqui.” Só trata da regularização dos documentos no SEF, quando os trabalhadores não podem e não cobra nada por isso. Apresenta-se como alguém que ajuda os seus contratados, pagando renda e alimentação, quando eles são dispensados de um dia para o outro.
Gabinetes de apoio

Sabita Karki foi dispensada de um dia para o outro, ao fim de três meses de trabalho. Pensava ter um horizonte, não colhendo fruta por estar grávida, mas empacotando-a — foi o que fez nos últimos meses. Sabita e o marido, Hum Bahadur, estão por isso no Centro Local de Apoio à Integração de Migrantes (CLAIM) de São Teotónio, onde já vieram várias vezes, para pedir aconselhamento.

Este é um dos 120 gabinetes em todo o país pertencentes ao Alto Comissariado para as Migrações, mas “um dos que não têm apoio jurídico”, diz a responsável Tânia Guerreiro. “Quando nos surgem estes casos, encaminhamos directamente para a ACT [Autoridade para as Condições do Trabalho].”

Algumas empresas de emprego temporário funcionam de forma totalmente ilegal e são “as mais ameaçadoras” perante o trabalhador por quem a empresa produtora não se responsabiliza, diz Alberto Matos.

“Nos intermediários, os chamados prestadores de serviços, a situação é pesada”, acrescenta. “Os trabalhadores andam durante anos a pagar os milhares de euros cobrados por quem os trouxe para Portugal aliciando-os com supostas condições de trabalho favoráveis. E as ameaças são reais. É-lhes incutido o medo de falar.”

Com supostas ligações a redes criminosas em países do Sudeste Asiático, continua o representante em Beja da Solidariedade Imigrante, algumas dessas agências mantêm-se m Portugal “para garantir que o dinheiro é cobrado”.

Na Sudoberry, a realidade é distinta, e a contratação é feita directamente com o trabalhador, na maioria dos casos, sobretudo desde que a ACT há uns anos impôs essa condição.

Mesmo assim, quando se pergunta a um dos contratados para colher framboesas, pensando que vinha para uma das melhores na zona em matéria de cumprimento dos direitos laborais, diz: “Nesta empresa? Nunca nada vai melhorar.”