4.2.22

João ameaçou matar a mulher e tentou estrangulá-la. GNR achou que corria risco médio

Joana Gorjão Henriques, in Público on-line

Último relatório da Equipa de Análise Retrospectiva de Homicídio em Violência Doméstica aborda tentativa de homicídio de uma mulher que só escapou porque conseguiu fugir. GNR achou que as condições de segurança estavam asseguradas numa primeira avaliação de agressões, peritos criticam-no.

João e Maria (nomes fictícios) estavam casados há cerca de 30 anos. Tinham dois filhos e sempre houve alguma tensão e conflito na relação, com episódios de violência física entre ambos, em grande parte por causa de ciúmes.

Culpabilizando-se, Maria dizia que em grande parte a tensão era responsabilidade sua porque era ela quem, por ciúmes, gerava as discussões. Até que os dois iniciaram um negócio em conjunto e a situação de controlo inverteu-se, passando a ser João quem, por causa de ciúmes de Maria, iniciava conflitos.

Esta foi a versão que Maria contou a várias entidades relatada no mais recente relatório da Equipa de Análise Retrospectiva de Homicídio em Violência Doméstica, grupo de especialistas que se dedica a analisar em profundidade situações deste tipo em que a falta de intervenção a tempo pelas autoridades pode gerar consequências irreversíveis.

Falhou também o facto de a avaliação não ter sido revista por um profissional com formação especializada até 48h depois do episódio

A verdade é que por mais do que uma vez a GNR foi chamada a casa de ambos por iniciativa de Maria: em início de 2019, ela trancou-se no quarto depois de o marido a ter agredido e ameaçado devido a uma suposta traição. Agarrou-a pelo pescoço e ameaçou: “Vou-te matar e de seguida mato-me a mim.”

Nessa altura, Maria conseguiu ligar para o 112 a pedir ajuda e às 3h30 a GNR deslocou-se a sua casa. Aos militares contou que os dois tinham estado separados e que reataram a relação oito dias antes; confessou que aquele não era o primeiro episódio de violência doméstica. Ficou com uma equimose no braço esquerdo. Na avaliação da situação que todas as forças de segurança têm de fazer destes casos a GNR considerou que Maria estava em situação de “risco médio”. Maria decidiu ficar na casa, e afirmou que aquela ameaça do marido tinha sido um acto isolado.

Agarrou o pescoço de Maria

Só que, 20 dias depois, a GNR voltou à casa. Dessa vez Maria não quis prestar declarações. O filho de ambos, adolescente, afirmou que o pai ameaçou algumas vezes que ia “pôr termo à sua vida”.

Depois de uma discussão, João tinha atirado o telemóvel de Maria pela janela. E passados quatro dias, quando os dois estavam a almoçar na cozinha, João voltou a agarrar o pescoço de Maria com as duas mãos, apertou-as com força e disse: “Hoje vou-te matar”. Maria desmaiou e perdeu o controlo dos esfíncteres. Quando recuperou os sentidos conseguiu libertar-se, ficando sem a camisola; fugiu apenas com as calças e sem parte de cima vestida, apenas com o soutien, gritou por ajuda, os vizinhos socorreram-na.

Mas seria uma médica da urgência do Centro Hospitalar a fazer a denúncia dos abusos: ela tinha vários hematomas na face, um grande hematoma à volta do pescoço, escoriações nos braços e na cabeça. Só nessa altura o grau de risco na avaliação policial foi considerado elevado. Também a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), que acompanhou o caso, sinalizou o risco severo de homicídio. Em 2020, João foi condenado por tentativa de homicídio a quatro anos e seis meses, mas com pena suspensa. Apesar de o filho adolescente ter testemunhado o episódio que relatou à GNR, tanto esse como o mais velho, maior de idade, não queriam contacto com a mãe, assinala o relatório.

A equipa que analisou esta situação critica o facto de a GNR ter atribuído risco médio ao caso e de não ter valorizado alguns factores como “a esganadura da vítima e a ameaça de suicídio do agressor”. “O nível médio resultou apenas do cálculo automático, não tendo sido feita a concreta análise dos factores de risco identificados que, no caso em apreço, poderiam ter levado à conclusão de que o nível de risco seria elevado.”

Falhou também o facto de a avaliação não ter sido revista por um profissional com formação especializada até 48h depois do episódio e não ter existido ainda outra reavaliação até 30 dias depois, acrescentam. “O órgão de polícia criminal voltou à residência após cerca de 20 dias, tendo a patrulha sido recebida pelo filho mais novo do casal, então com 16 anos, que afirmou ser o pai uma pessoa ‘extremamente calma’, tendo posteriormente, quando inquirido, verbalizado a ideação suicida do pai.”

Negou as agressões de que foi vítima

Já Maria, na primeira ocorrência, negou as agressões de que foi vítima e, apesar de ter vontade de sair de casa, deixou-se convencer pelo marido - algo que a GNR corroborou ao considerar “que as condições de segurança estavam asseguradas”, fazendo um aditamento ao auto de notícia sem actualizar a avaliação de risco.

O facto de nessa primeira vez a vítima negar e de não ter ferimentos visíveis, aliados ao facto de um alegado agressor parecer calmo pode criar “a percepção errada de que a situação e a previsão da sua evolução não assumem gravidade”, critica o relatório. E essa percepção tem efeitos negativos “na avaliação do risco da ocorrência de novas agressões à vítima e no aumento da sua gravidade, bem como nas medidas de segurança a adoptar para a sua protecção”. Por outro lado, assinalam, “também pode levar a um menor investimento nas diligências de recolha e preservação de indícios, com eventual comprometimento da prova do crime”.

Outra das falhas apontadas pela equipa foi nunca ter sido avaliado o risco que corria o filho adolescente de ambos, e de a sua situação ter sido ignorada. Os técnicos são claros: na última agressão feita por João, o homicídio de Maria só não ocorreu porque ela “recuperou a consciência e se libertou, fugindo e pedindo auxílio”.

Por isso esta equipa recomenda ao Governo que, na revisão do processo de avaliação de risco se diferenciem os factores especialmente preditores de comportamentos graves, como é o caso dos actos de estrangulamento, sufocação ou afogamento da vítima e a ameaça de suicídio do agressor.

Contactada, a GNR diz que não sabendo a situação específica - estes relatórios são anónimos - não tem condições para comentar por falta de informação.