Por Marisa Soares, in Público on-line
A casa de José e Rosa ficou destruída em 2003 com as obras de construção da A10. O pedido de indemnização foi para tribunal, mas o empreiteiro faliu e o processo foi arquivado.
Já lá vão nove anos, mas a memória, ao contrário das pernas, não falha a José Clemente, de 80 anos. Lembra-se do dia em que acordou e viu o chão da sala rachado de uma ponta à outra. Foi quando percebeu que as obras da auto-estrada 10 (A10), que liga Bucelas a Benavente, estavam a destruir a casa onde morava com a mulher, em Trancoso, Vila Franca de Xira. Desde então, o casal tem vivido num contentor à espera da decisão do tribunal sobre a indemnização devida pela construtora Acoril Empreiteiros, que entretanto faliu.
O veredicto saiu há poucas semanas, no início de Fevereiro: o juiz do Tribunal de Vila Franca de Xira arquivou o processo que opõe os idosos à construtora, porque a lei não permite a condenação da empresa insolvente. O casal está agora em risco de ficar sem indemnização e sem tecto. "O dono do contentor [que é credor da Acoril] já disse que quer vir buscar o que é dele", diz José. Também o dono do terreno onde está instalado o pré-fabricado quer que a estrutura saia dali.
O caso remonta a 2003. Para construir um viaduto da A10, o empreiteiro fez escavações a cerca de 200 metros da habitação do casal. "Choveu muito naquele Inverno e as terras cederam", diz José. Por arrasto, as paredes da casa racharam e o chão abriu. Também o poço, uma arrecadação e uma garagem ficaram destruídos. "Avisei os engenheiros, eles vieram aqui, fizeram retratos e disseram que iam resolver o problema."
A solução provisória - "disseram que era só por dois meses" - foi a instalação, num terreno ao lado da casa, de um contentor de obra com quarto, sala, cozinha e uma casa de banho minúscula onde os idosos, ambos agarrados às canadianas, mal conseguem entrar. "Acartaram a mobília toda para lá e até as portas de casa arrancaram, para não voltarmos", recorda Rosa Rodrigues, 76 anos. Os meses passaram, a A10 ficou pronta e o empreiteiro desapareceu "sem dizer água vai".
A construtora accionou o seguro e ofereceu ao casal uma indemnização de 30 mil euros, que não foi aceite. "Seis mil contos não chegam para nada", reclama José. Segundo a seguradora da empresa, a Fidelidade Mundial, o valor foi calculado tendo em conta os danos e o tipo de construção: era uma casa de 54 metros quadrados, com 50 anos, sem casa de banho nem água canalizada.
A proposta da seguradora contemplava a "demolição e reconstrução da habitação, bem como o custo do alojamento" até que a casa ficasse pronta, diz a assessora de imprensa da Fidelidade, Ana Fontoura. Segundo a mesma fonte, a Acoril "propôs-se reconstruir a habitação". A filha do casal, Maria Rosa Catorze, nega. "Foi ao contrário. Nós é que propusemos isso, mas eles foram embora e nem adeus disseram."
A advogada do casal entrou com uma acção judicial contra a Acoril, em Setembro de 2003, pedindo uma indemnização de 203.500 euros, um valor que a seguradora considera "desajustado". Desde então, o caso tem-se arrastado no Tribunal de Vila Franca de Xira. Em 2007, a Acoril entrou em insolvência e em Fevereiro passado o juiz arquivou o processo.
A Fidelidade Mundial, que é assistente no processo, "nada pode fazer", diz Ana Fontoura, mas está disponível para voltar a analisar o processo, mantendo a proposta inicial de indemnização de 30 mil euros. "É melhor que nada, mas não é suficiente. Quero que a advogada recorra", diz a filha dos idosos. O PÚBLICO tentou contactar a advogada, mas não obteve resposta.
A Câmara de Vila Franca de Xira diz que apenas soube da situação no início de Fevereiro, após um alerta da GNR. "Os serviços de acção social deslocaram-se ao local, mas eles [os idosos] não se queixaram das condições do contentor", refere a assessora da autarquia, Susana Santos. "Estava muito frio na altura e propusemos o reforço do aquecimento, mas não quiseram", afirma, sublinhando que os dois se queixaram apenas da "morosidade da justiça".
A visita dos técnicos municipais foi antes de os idosos terem ficado sem os aparelhos de ar condicionado, há poucas semanas. O dono dos equipamentos é um dos credores da Acoril e foi buscar os aparelhos como pagamento. À vista estão agora os buracos nas paredes, alguns já tapados com farrapos "para não deixar entrar a chuva e os bichos". Ao canto do quarto com vista para a A10, Rosa tem um aquecedor. "Se não fosse isso, não se podia aqui parar."