Por Carlos Diogo Santos, in iOnline
Presidente do Banco Alimentar diz que o êxito se deve aos portugueses e garante que nenhum produto se estraga
A participação num debate na televisão deixou-a debaixo dos holofotes. Isabel Jonet ponderou muito antes de dar esta entrevista. Depois de ter aceitado recebeu o i nas instalações do Banco Alimentar contra a Fome, em Alcântara, avessa a fotografias, mas disposta a falar do êxito da última campanha nos supermercados – que ocorreu no primeiro fim-de--semana de Dezembro – e sobre o estado do país. Explica que não está preocupada com os casos de idosos que aparecem mortos em casa, mas sim com as carências por que passam quando estão vivos. Nada preocupada com o que dela se escreve, criticou os jornalistas que deturpam as declarações dos entrevistados e garantiu que por isso há quem fuja da comunicação social.
No que respeita a carências alimentares qual é a situação de Portugal?
Não há nenhum estudo sobre as carências alimentares em Portugal actualmente. Aquilo que eu e os 20 bancos alimentares contra a fome – que todos os dias apoiam instituições de solidariedade social – temos é o conhecimento daquilo que as instituições nos solicitam. Não há um levantamento muito exaustivo, até porque há muitas pessoas, sobretudo com mais idade, que têm carências alimentares, mas que não as tornam públicas. É aquilo a que chamamos a pobreza envergonhada. Quando um idoso que tem rendimentos muito muito baixos porque vive apenas de uma pensão de viuvez tem que escolher entre comer e tomar medicamentos opta sempre pelos medicamentos.
Como se descobrem esses casos?
A essas pessoas só temos acesso se elas pedirem ajuda ou se alguém for a sua casa fazer a limpeza, ou dar apoio, e vir que passam por necessidades.
Mas há os que vivem a vida toda a esconder...
Claro, ainda no ano passado houve uma grande exaltação da sociedade portuguesa quando foram encontrados idosos mortos nas suas casas. No entanto, a minha grande preocupação é que esses idosos vivam sozinhos e não que morram sozinhos ou sejam encontrados depois de mortos. O problema para mim é se em vida tiveram fome ou tiveram necessidades a que ninguém acorreu. E_há aqui todo um trabalho a fazer nas instituições e no terreno, é precisa uma rede capilar que permita perceber quais os reais problemas no terreno.
Como se processa a ajuda dos bancos alimentares?
Os bancos alimentares não distribuem comida a ninguém, dão os produtos a instituições de solidariedade social e estas é que os levam até às pessoas. São as instituições que no terreno conhecem as pessoas.
Há desperdício no Banco Alimentar ou a hipótese de os alimentos não chegarem aos mais carenciados?
Acho muito difícil estragar-se a comida que é doada pelos portugueses, até porque os bancos alimentares distribuem a tantas instituições que não dão sequer a quantidade que elas precisam que não vejo que sobras é que possam ser mal aproveitadas.
Mas há quem tenha essa ideia. Porque acha que isso acontece?
Houve situações, e isso é incontestável, em que foram mal distribuídos os excedentes da União Europeia – produtos destinado a carenciados. Estes bens alimentares são entregues pela Segurança Social e aconteceu grandes quantidades de arroz e de outros produtos, como manteiga, terem sido mal aproveitados.
Porquê?
Por imposição das regras comunitárias esses produtos são distribuídos por uma só vez e em grandes quantidades e as famílias mais pobres não têm capacidade de armazenamento e por isso se estragaram muitos produtos. Mas a distribuição dos bancos alimentares é diferente e permite ter a certeza de que nada se perde, porque é distribuído em poucas quantidades.
O balanço da última recolha nos supermercados, 1 e 2 de Dezembro, mostra que os portugueses não desistiram de apoiar o Banco Alimentar...
As campanhas dos bancos alimentares têm três modalidades. A dos sacos com voluntários espalhados por vários supermercados e cujo resultado foi praticamente igual ao da campanha do ano anterior, ou seja, 2930 quilos de produtos alimentares, a campanha por internet, que mostra os resultados em tempo real, e por fim a campanha por vale, à venda nos supermercados.
O facto de os números serem iguais aos do ano passado, apesar do agravamento da situação financeira das famílias, é um sinal importante?
Eu acho que é incrível o resultado que se conseguiu obter, porque esta foi a primeira campanha depois dos cortes nas prestações sociais e até nos subsídios de Natal e poder-se-ia prever uma diminuição da solidariedade, mas não. Há uma manutenção, as quantidades recolhidas são praticamente as mesmas, e eu penso que isto é um sinal de grande esperança da sociedade portuguesa. Aliás, os portugueses quando bem mobilizados estão dispostos a participar para construir algo de novo.
É um voto de confiança no Banco Alimentar e no seu trabalho?
É isso, certamente, e mais que isso. As pessoas sentem que podem fazer a diferença na vida de outros e essa é que é para mim a grande mensagem. Uma mensagem de querer fazer parte deste projecto social, porque há pessoas que têm menos que eu. Recebemos cartas de pessoas a dizer que já contribuíram com alimentos e que querem contribuir com trabalho, mas que também precisam de receber do Banco Alimentar – claro que contribuíram com um pacote de esparguete de 40 cêntimos –, mas sentiram que apesar de também precisarem tinham de participar neste projecto, e esse gesto é inexplicável…
O seu trabalho no Banco Alimentar é amplamente conhecido. O que podia ter feito melhor?
Não sou capaz de lhe dizer. Tenho a sorte de poder colaborar num projecto em que diariamente trabalham outras 600 pessoas. Os 20 bancos alimentares que existem são autónomos juridicamente e independentes do ponto de vista financeiro. Cada banco alimentar tem uma direcção própria e estão congregados na Federação Portuguesa dos Bancos Alimentares, e esta cadeia que se conseguiu instituir é uma rede de solidariedade que se articula com grande proximidade com as instituições beneficiárias, num clima de confiança. Podíamos ter feito mais? Podíamos…
Em quê?
Talvez pudéssemos ter aberto já um banco na região de Bragança, mas nós nunca suscitamos o aparecimento de bancos. Eles surgem quando há grupos de pessoas com boa vontade que querem seguir o nosso modelo, porque nós temos um modelo muito bem definido que é seguido por todos os bancos em Portugal e alguns na Europa.
O trabalho desta cadeia é fazer solidariedade ou caridade?
Hoje em dia as pessoas têm medo da palavra “caridade”, têm medo de palavras, atribuem conotações e pesos à palavra “caridade”. Na acepção de São Paulo, caridade é amor, é espírito de serviço, é o outro precisar de nós sem que nós precisemos do outro e portanto levamos o que ele precisa e não o que nós queremos levar. A solidariedade é algo mais frio que incumbe ao Estado e que não tem que ver com amor, mas sim com direito adquiridos. Infelizmente empobrecemos a nossa língua atribuindo algumas conotações a algumas palavras e portanto temos medo de as usar.
Resumindo, solidariedade ou caridade?
Sou mais adepta da caridade do que da solidariedade social… Embora defenda que ambas se completam e ambas fazem parte do bem fazer.
Há um limite a partir do qual uma pessoa passa a ser carenciada?
Há. Esse limite é o querer ser ajudado, não se pode ajudar quem não quer ser ajudado. Uma coisa é ajudar os sem-abrigo com fome, outra é ajudar uma família desestruturada numa situação de endividamento e em que às vezes até os filhos estão a sofrer com essa situação. As respostas que têm de ser dadas são diversas. E é por isso que a caridade é melhor que a solidariedade, porque nos permite ir um a um. Esse papel só pode ser desempenhado pelas instituições que conhecem caso a caso. Uma família habituada a um determinado nível de rendimento e que de repente se vê numa situação diferente não pode ter a mesma resposta que um idoso com uma pensão de reforma baixa. É por isso que esta resposta não deve caber ao Estado.
Como vê o corte de algumas garantias por parte do Estado?
Eu não sei que garantias vão acabar, porque uma coisa é o que é anunciado outra coisa é o que é adoptado. Mas tudo o que tenha que ver com reduções de rendimentos ou de prestações sociais a idosos pobres é muito preocupante. Porque esses idosos – e em Portugal há um milhão de pensionistas que vivem com menos de 280 euros por mês – suportam os aumentos do IVA como os outros e portanto eu não gosto e penso que seria muito complicado reduzir as suas prestações.
As alterações na saúde e na educação podem pôr em causa o equilíbrio de muitas famílias?
Temos de ver como é que isso é feito primeiro. A educação é um direito universal que tem de ser garantido, mas a sua gratuidade se calhar tem de ser vista em função dos rendimentos. Não é possível lutar contra a pobreza estrutural que existe em Portugal sem educação e formação. Tenho pena que em muitos casos se confunda educação com formação. Há um conjunto de educação e de valores que se foram perdendo ao longo dos anos indispensáveis a uma sociedade justa e a uma sociedade que se pretende desenvolvida. Em Portugal esta noção de que podemos fugir aos impostos ou de que podemos não votar é...
Acha então que somos hoje um país mais pobre desse ponto de vista do que há algumas décadas?
Acho… Há um desinteresse grande dos jovens na política ou até na responsabilização de quem nos governa. Quando não se vota não se podem apontar erros a quem governa. Se as pessoas se desinteressam não podem vir apontar responsabilidades e há muitos jovens que não votam. Se fizer um estudo nas universidades verá que a maior parte dos jovens não votam porque estão desinteressados e isso é pena. Põem na mão dos outros o seu futuro e depois não podem exigir nada.
Numa entrevista recente disse que as crianças chegam à escola com fome porque os pais se demitem do seu papel. Não põe a hipótese de ser por insuficiência económica?
O que leu foi o que a jornalista escreveu e não o que eu disse. O que eu disse foi que acho inqualificável que no século xxi haja crianças que cheguem com fome às escolas, porque nenhuma criança pode ter bom aproveitamento se estiver com a barriga vazia. Nesses casos é preciso apurar se esta criança chega à escola sem tomar o pequeno-almoço – ou até sem dinheiro para a senha do almoço – porque a família não tem rendimentos ou porque há uma desresponsabilização dos pais.
Então não disse o que vem naquela entrevista…
Não, mas em Portugal há muito daquilo a que eu chamo interpretadores, que são aqueles que dizem que nós dissemos coisas que não dissemos, mas que eles gostavam que tivéssemos dito. E é por isso que depois as pessoas com mais responsabilidades fogem dos meios de comunicação social, porque estes deturpam. E foi o que aconteceu com essa jornalista. O pior é que tudo é feito impunemente. Então no online há uma total impunidade, muitos comentários são feitos sob anonimato e assim não se pode querer construir uma sociedade democrática.
Se pudesse, que medida aconselharia a este governo para travar o aparecimento de novos pobres?
O que eu conheço melhor são as instituições de solidariedade social e sei das grandes exigências que lhes são feitas para o seu funcionamento. Há um conjunto de normas impostas que em meu entender são excessivas e não fazem qualquer sentido. Portanto considero que isso devia ser revisto. Não significa isto abrandar a qualidade, mas sim racionalizar recursos.
Ainda sobre a actual situação do país, acha que seria positiva a suspensão da democracia para pôr tudo na ordem, como aliás sugeriu Manuela Ferreira Leite?
Na Europa como a vivemos hoje em dia não seriam possíveis ditaduras como as que existiram. Deixar de viver em democracia é uma questão que não se põe, há direitos e conquistas que alteraram para melhor a sociedade portuguesa. Quando foi o 25 de Abril eu tinha 14 anos e assisti a um processo de democratização que conduziu a sociedade portuguesa para muito melhor, mas houve coisas que se foram perdendo, nomeadamente a educação do povo e os valores que fazem com que os mais novos venham a lidar com uma sociedade que pode vir a parecer menos democrática. No entanto, é preciso estarmos atentos às manifestações da direita na Áustria para com os imigrantes. E há um conjunto de situações, de manifestações, que quem governa deve ter em atenção porque podem até traduzir-se em fenómenos de rejeição.
Mas para si o caso mais preocupante na Europa continua a ser a Grécia...
Sim, o país piorou imenso nos últimos meses. Quem lá chega vê a falência de um estado. E como os gregos adoram discutir, dificilmente conseguem chegar a uma solução. Gostam tanto de debater e discutir que para eles a tomada de decisões é mais difícil que para outros povos, como os alemães, que são mais práticos e cumprem as decisões, mesmo que sejam incorrectas. Os gregos não, põem tudo em causa… E é muito difícil governar assim. Mas claro, há o problema dos imigrantes que entram todos os dias pelas ilhas da Grécia, sobretudo os curdos e os afegãos. Pessoas miseráveis que não têm ambição nenhuma de trabalhar, porque vêm a fugir da guerra nos seus países. Pessoas tristes, deprimidas e angustiadas, que vão demorar até se endireitarem.
E a resposta grega a essas situações é adequada?
Bom, não há a almofada de segurança das instituições ligadas à Igreja Católica, como nos outros países do Sul. A assistência social – que foi estruturada pela Igreja – será em 2013 a almofada de muitas famílias, não só em Portugal como em Espanha, Itália e na França. Isso na Grécia não existe, quem está a assumir esse papel são as municipalidades e grupos espontâneos que não estavam preparados para o fazer.
O que lhes falta?
Organização. Não têm a organização da dita caridade que nós temos aqui há centenas de anos.
Acha que os portugueses têm memória curta?
Não sei o que quer dizer com isso, mas depende das situações. As pessoas não se esquecem de coisas boas que fizemos, como por exemplo os feitos dos portugueses nos Descobrimentos. Toda a gente se lembra da maneira fantástica como foram acolhidos os retornados – de repente entrou aqui um milhão de pessoas que foi integrado na sociedade portuguesa – acho que todas as pessoas se lembram da selecção portuguesa no Euro 2004. Os portugueses são um povo reconhecido e que se lembra sempre que as coisas correm bem…
Mesmo quando se trata do seu trabalho e do do Banco Alimentar?
Lembram-se sempre, e a prova foram os resultados desta última campanha…
O que é que os portugueses podiam fazer mais por si próprios?
Ser mais rigorosos, mais exigentes. Há uma palavra que também se perdeu na sociedade portuguesa que é o “brio”, a capacidade de fazer as coisa sempre bem feitas. E muitas vezes, até por imposição do mundo em que vivemos – você está aqui sentado, tem o seu tablet e o seu telefone e está a pensar ao mesmo tempo nos emails que já recebeu –, perdeu--se o custo da oportunidade. O correcto seria: se está a falar comigo não está a pensar nos emails ou no Facebook, não está a pensar que não comentou ou que não pôs likes. E eu a mesma coisa: se estou a falar consigo não devia estar a pensar na minha filha que está ali fora à minha espera nem nos emails que já recebi e a que vou responder logo à noite… Ou estamos a fazer bem uma coisa ou mal duas. Tudo isto faz com que se tenha perdido o brio.
No que diz respeito ao brio, sente-se então uma estrangeira em Portugal? Que nacionalidade tem o seu brio?
[Silêncio.] Portuguesa, sou muito portuguesa em muitas coisas, até na capacidade de improvisar coisas que funcionam, mas sou de uma outra geração – até porque já tenho uma filha médica [risos] –, em que havia muita exigência no ensino primário, e isso faz com que seja hoje mais exigente também. É por isso que defendo o investimento na exigência do ensino primário. O brio ensina-se de pequeno.
Essa flexibilização do ensino é um fenómeno português ou europeu?
Há uma imperiosidade de haver pessoas com mais escolaridade completa. No entanto, a exigência ou a falta dela é nacional. Conheço sistemas de ensino básico de outros países, até porque vivi oito anos na Bélgica, e os meus dois filhos mais velhos fizeram parte do ensino primário lá. A exigência de cumprimento de rigor e de brio deve ser feito na escola primária, e eu penso que devemos voltar a ter esses valores. Muitas vezes vejo medidas e políticas para o ensino secundário e penso que nós tínhamos de voltar atrás e reformular a primária, o básico.
Reformular como?
Nós abrimos a Entrajuda, que leva gestão e organização às instituições. Temos 3500 instituições inscritas, que recebem bens e serviços, portanto, enquanto o Banco Alimentar dá alimentos, a Entrajuda presta serviços e quando necessário leva bens como computadores para determinadas instituições. Esta entidade tem feito estudos para perceber como se podem cortar ciclos de pobreza.
O que tem isso que ver com a reformulação da primária?
Um desses estudos foi o rastreamento a 3500 crianças – que frequentam instituições de solidariedade social – no que respeita à qualidade da visão, da audição e da saúde oral. As conclusões foram arrasadoras. Cinquenta e três por cento ouviam mal e 24% viam mal. Ora eles não podem ter bons resultados na escola, isto é um problema de saúde pública. É preciso pôr óculos nestas crianças e ver o que têm nos ouvidos para que tenham igualdade de oportunidades no primeiro ciclo. Tenho para mim que para cortar alguns ciclos de pobreza é preciso educar as crianças de quem não teve exigências dando-lhes brio, rigor e escolaridade.
Já apresentou esse estudo a alguma entidade?
Já tive oportunidade de o mostrar ao ministro da Saúde e espero que seja tida em conta a possibilidade de ajudar – implantando de foram sistemática a prevenção de deficiências auditivas e visuais –, porque se uma criança é boa na primeira e na segunda classe tem mais hipóteses de ser boa o resto da vida. Se for bom aluno no básico pode não ser pobre. Cortar ciclos de pobreza é ver os problemas que existem na primária e não os que existem aos 15 anos, altura em que muitas crianças não têm alternativa a vender droga nos bairros.