20.12.12

Isabel Jonet, a caridade e a solidariedade

Daniel Oliveira, in Expresso

Quando muitas pessoas, eu incluído, criticaram as declarações de Isabel Jonet na SIC Notícias, a resposta de muitas outras variou entre os que defenderam que, não se tratando de uma política, espera-se que faça bem e não se pede que tenha as posições mais corretas e os que argumentaram que a presidente do Banco Alimentar contra a Fome apenas tinha dito verdades. Com os últimos não há, do meu lado, grande debate a fazer. Com os primeiros, vale apena insistir que os políticos não são os únicos a ter responsabilidades por o que dizem. Todos, sendo adultos e estando na posse de todas as nossas faculdades, temos.

Seguidamente, muita gente viu em cada dádiva ao Banco Alimentar uma demonstração de apoio a Isabel Jonet. Por mim, que nunca apelei a qualquer boicote e todos os anos contribuo para aquela instituição - e não é de hoje que sei por quem é dirigida -, é argumento que nem compreendo. As pessoas sabem distinguir entre as opiniões de cada um e a função das instituições que elas dirigem. O Banco Alimentar contra a Fome não disse nada. Quem disse foi Isabel Jonet. Também contribuo para a Cáritas (cujo responsável fez declarações bem mais ponderadas recentemente) e não deixo de ser ateu de todos os costados. Não me importa quem dirige instituições deste género desde que saiba que as coisas chegam onde devem chegar. Considero este tipo de trabalho meritório e útil. O que não me impede de achar que ele é um remendo, não é a solução. Socorrer a emergências não é atacar o problema. Mas as emergências existem e continuam a ter de ser resolvidas.

Mas, mostrando que não se tratou de uma mera infelicidade ou dificuldade de expressão, Isabel Jonet voltou à carga. E, desta vez, resolveu teorizar. Explicou que prefere a caridade à solidariedade. Ou seja, considera que uma e outra coisa são comparáveis. E é aqui que a discordância não podia ser maior. A solidariedade define a forma como uma sociedade ou um grupo de pessoas se organizam. A caridade é o que se faz quando isso falha. A caridade não combate a pobreza, apenas impede que ela seja fatal. A questão é se achamos que a pobreza é inevitável ou que é possível preveni-la.

Mas a diferença é maior do que isto. A caridade pressupõe uma relação de poder. O poder entre quem dá, se quer dar e a quem quer dar, e de quem recebe, se alguém lhe quiser oferecer alguma coisa. O assistencialismo - a institucionalização da caridade - corresponde a um favor, não a um direito. E quem depende de favores é menos exigente. Porque depende, para sobreviver, da boa vontade dos outros. A solidariedade, pelo contrário, corresponde a uma interajuda. Damos e sabemos que podemos receber daqueles a quem damos.

Dirão que a primeira é mais altruísta. É isso que acha Isabel Jonet, inspirando-se em São Paulo, afirmou numa jornal "I": "Caridade é amor, é espírito de serviço, é o outro precisar de nós sem que nós precisemos do outro" enquanto "a solidariedade é algo mais frio que incumbe ao Estado e que não tem a ver com amor, mas sim com direitos adquiridos".

Repare-se que em nenhum momento o que está em causa é o que sente quem recebe, mas o que sente quem dá. Isabel Jonet prefere, como afirma, a "caridade" à "solidariedade" por o que ela diz de quem dá, não por o que ela diz da situação em que fica quem recebe.

Desse ponto de vista, a caridade é, na realidade, muito menos altruísta. Ela dá uma satisfação a quem oferece que a frieza da solidariedade não garante. Eu sinto-me melhor comigo mesmo quando dou comida ao Banco Alimentar do que quando pago os impostos. Porque podia não dar ao Banco Alimentar mas não poderia deixar de pagar às Finanças. A questão é saber como se sente quem recebe os frutos de uma coisa e de outra. O primeiro sente-se dependente da generosidade alheia. O segundo sente-se apenas um cidadão.

Não, a solidariedade não é uma função do Estado. É uma função de todos que se faz através do Estado (quando pagamos impostos, por exemplo) ou da sociedade civil. Sim, é mais fria, porque é anónima e corresponde a direitos e a deveres irrecusáveis de todos e para todos em simultâneo. E ainda bem. Não é por acaso que ninguém se envergonha de ir buscar um subsídio a que tem direito e a generalidade das pessoas sente-se vexada ao receber alimentos de desconhecidos. Porque a solidariedade, na sua frieza, resguarda muito mais a dignidade pública de quem recebe. Exatamente por ser um "direito". Jonet diz que é "adquirido", como se tratasse de qualquer coisa que se adquiriu passivamente e que não se merece. Eu chamo-lhe "conquistado", porque ele resulta de acumular de lutas colectivas. Ninguém pediu a quem mais tinha para pagar impostos. Foram obrigados a isso. Ninguém é obrigado a ser caridoso. Talvez seja esta diferença de muitos dos que preferem a "caridade" à solidariedade. A primeira corresponde a um imperativo de justiça social. A segunda depende apenas da generosidade de cada um.

É exatamente por isso, por ser um direito e por ter sido conquistado, que ele, ao contrário de qualquer esmola dada ao sabor da vontade de quem dá, transporta em si a dignidade de quem recebe. Essa dignidade foi conquistada quando os cidadãos transformaram o mínimo para a sobrevivência num direito indiscutível em vez de um favor que depende do amor alheio. A pessoa mais detestável pode não merecer o nosso amor. Mas merece sempre o mínimo de dignidade. Um conceito que deve ser frio e abstrato para poder ser aplicado a todos. Não transforma nenhum de nós num herói aos olhos dos restantes. Nem nenhum de nós em alguém que depende do amor dos outros, sempre tão volúvel, para comer. Transforma todos em cidadãos. Se é uma questão de preferência, prefiro assim.

Nota: ISabel Jonet disse que não havia crianças portuguesas com fome, mas com carências alimentares. Sem entrar em polémicas, que o estômago não me permite, deixo aqui uma parte da reportagem da RTP sobre o assunto. Sem qualquer comentário.