Bruno Horta, in Público on-line
Os problemas concretos do Sul da Europa foram praticamente ignorados durante a cimeira WISE sobre educação, realizada em Doha em Novembro. O PÚBLICO conversou com alguns convidados para tentar perceber o futuro da educação portuguesa em tempos de crise.
Georges Haddad tentou abordar a crise europeia sob várias perspectivas. “A educação está a ser mercantilizada mas é um bem público que precisamos de defender”, disse o director do gabinete de investigação educativa da UNESCO e ex-presidente da Universidade Panthéon-Sorbonne de Paris.
Depois questionou: “A existência de adultos fora do mercado de trabalho por não terem tido formação contínua não é uma questão de direitos humanos? E o que significa hoje ter uma licenciatura aos 22 anos e um doutoramento aos 25 se temos os níveis de desemprego que temos na Europa?”
As mesmas perguntas estão actualmente na cabeça de muitos portugueses, espanhóis ou gregos, mas ficaram sem resposta durante os debates da quarta cimeira anual WISE – World Inovation Summit for Education, que decorreu em Doha, no Qatar. A crise económica, financeira e política que varre a Europa, mais o corte orçamental no sector educativo, foi praticamente ignorada. O economista Harry Anthony Patrinos, do Banco Mundial, chegou mesmo a dizer que “apesar da recessão, a educação continua a ser prioritária para vários governos em África e na Ásia e até há mais recursos neste sector do que há alguns anos”.
Realizada entre 13 e 15 de Novembro, a cimeira juntou especialistas de dezenas de países, incluindo dois portugueses: Roberto Carneiro, na qualidade de professor universitário e antigo ministro da Educação, e António Guterres, como alto-comissário da ONU para os refugiados.
Com a situação no Sul da Europa transformada em não-assunto, o PÚBLICO sondou alguns convidados para saber como se conjuga a crise com um ensino de qualidade e que soluções criativas existem para contornar a falta de dinheiro no sector. A aproximação entre escolas e empresas, assim como a existência de um professorado bem pago e de qualidade, são apontados como os melhores caminhos.
Prioridade à qualidade dos professores
O alemão Andreas Schleicher, conselheiro de educação do secretário-geral do OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), admite que “numa fase de abrandamento económico a última coisa em que os governos devem poupar é no futuro, ou seja, a educação” porque “os ganhos económicos de um melhor sistema de ensino excedem por larga margem qualquer gasto feito nessa mesma melhoria”. Porém, do ponto de vista do Estado, explica o mesmo responsável, “o custo com cada estudante explica apenas cerca de 20% das diferenças de performance dos alunos nos países desenvolvidos.” Isto é: “Dois países com o mesmo nível de gastos públicos com a educação podem ter diferentes resultados no sucesso escolar”. “A ideia de um mundo dividido entre países ricos e com bons níveis de instrução e países pobres com baixos níveis de instrução está completamente ultrapassada. Importa, sim, saber como é que Portugal investe os seus recursos. Os dados mostram que os sistemas educativos com mais elevadas performances são aqueles que, não tendo muitos recursos disponíveis, dão prioridade à qualidade dos professores e não tanto ao tamanho das turmas ou à qualidade dos edifícios.”
Opinião semelhante tem Chris Cook, jornalista de educação no Financial Times. Defende turmas maiores e menos professores. Mas professores bem pagos. “É importante, sobretudo no Sul da Europa, que os professores continuem a ter regalias profissionais porque isso significa, a longo-prazo, que no fim do curso os melhores estudantes têm vontade de ser professores”, diz o jornalista. “Um professor mediano com uma turma pequena consegue piores resultados do que um professor muito bom com uma turma muito grande, seja qual for o nível de ensino. Claro que este ponto de vista implica o despedimento de muitos professores medianos, mas quando há pouco dinheiro o objectivo é o de que só fiquem os melhores.”
A WISE é um fórum mundial para discutir os problemas da educação e serve, ao mesmo tempo, para demonstrar o poder económico e simbólico do Qatar, um dos países mais prósperos do Golfo Pérsico e dos poucos que passaram incólumes a Primavera Árabe.
A capital do país, Doha, é uma cidade de arranha-céus espelhados e longas avenidas com palmeiras. Com o dinheiro do petróleo e do gás natural tudo está em permanente construção e mudança, de tal modo que as gruas e as máquinas da construção civil fazem parte integrante da paisagem. É nesta cidade que fica sedeada a Al Jazeera, a CNN do mundo árabe, com emissões em várias línguas e centros de produção espalhados pelo mundo. Aqui, também, foram construídas réplicas, não em termos arquitectónicos mas de currículo, de faculdades da Universidade de Georgetown, da Carnegie Mellon e da University College de Londes, entre outras, sob a designação comum Universidade Hamad bin Khalifa – o que permite à elite árabe estudar sem sair do Médio Oriente.
O nome da universidade deve-se ao do emir do Qatar, xeique Hamad bin Khalifa al-Thani, de 60 anos (o país é dominado pela família al-Thani desde o fim do século XIX). Uma das três mulheres do emir, Moza Bint Nasser, é a figura mais carismática do regime, bastante ocidentalizada nos modos e no visual. Usa véu islâmico e salto agulha, aparenta frequentes tratamentos estéticos, fala fluentemente inglês e não demonstra em público os sinais de submissão muitas vezes associados ao género feminino no mundo islâmico. Ela preside à Fundação Qatar e tem vindo a estabelecer-se como filantropa de projectos educativos, razão pela qual, além de enviada especial da UNESCO para o ensino básico e superior, acaba de lançar a iniciativa Educate a Child, dirigida a crianças refugiadas de África.
O país dos al-Thani é uma autocracia que se tornou independente do Reino Unido em 1971 e desde então nunca teve eleições. Apesar do liberalismo económico, existe uma forte estratificação social. Os imigrantes da Índia e do Paquistão constituem 36% de uma população total de cerca de dois milhões, de acordo com a base de dados online CIA World Factbook. Além de exercerem os trabalhos mais mal remunerados, os imigrantes asiáticos têm poucas oportunidades de mobilidade social. Um cidadão do Bangladesh, que estuda gestão e trabalha como motorista em Doha, disse ao PÚBLICO que é fácil entrar numa universidade do Qatar, desde que se seja bom aluno, mas o mercado de trabalho só tem lugar para europeus e qataris, pelo que no fim do curso o futuro dele terá de ser noutro país.
Apesar deste contexto, ou talvez por causa ele, a WISE tem sido benévola para com o subcontinente indiano. Hamad bin Khalifa al-Thani esteve presente no primeiro dia da cimeira para atribuir, pela segunda vez, o Prémio WISE, considerado o Nobel da Educação, no valor de meio milhão de dólares (cerca de 395 mil euros). O vencedor foi um indiano, Madhav Chavan, de 58 anos, co-fundador da organização não-governamental Prantham, de Bombaim, que ensina a ler crianças a partir dos três anos e adolescentes que abandonaram os estudos.
Um dos objectivos declarados da cimeira e do prémio é o de mudar a imagem internacional do Qatar. “Queremos que o nosso paradigma deixe de ser apenas o da economia do petróleo e do gás natural, para passar a ser também o da economia do conhecimento”, admitiu Abdulla Bin Ali al-Thani, administrador da Fundação Qatar, organismo responsável pela WISE.
Ensino primário e universal
A quantidade de pontos de vista presentes fez com que os debates decorressem a várias velocidades. Chade, Quénia ou Índia falam ainda do acesso universal a um ensino primário de qualidade, sem discriminações de género ou de origem social dos alunos. Inglaterra, EUA e Alemanha discutem os modelos de ensino secundário e superior: privado ou público, teórico ou prático. E empresas tecnológicas vislumbram um mundo educativo pós-informático com tecnologias de informação e comunicação perfeitamente integradas nos hábitos de alunos e professores (o e-learning) e grandes servidores informáticos (“nuvens de conhecimento”) acessíveis a partir de qualquer ponto do planeta. Neste particular, o jordano Talal Abu-Ghazaleh, fundador da empresa de consultoria e formação TAGorg, quis ser o mais futurista: “Parem de construir escolas e universidades, há uma revolução em curso na educação e chama-se ensino online.”
“Os países aqui representados estão em níveis diferentes de evolução do sistema educativo. Nos países em desenvolvimento a prioridade é o ensino primário e secundário. Os países desenvolvidos, que procuram uma economia de sucesso, precisam de ter um ensino técnico e vocacional virado para o mercado de trabalho e com possibilidade de continuação no sistema universitário”, disse Peter Thiele, responsável pelo departamento de ensino vocacional do Ministério da Educação e Ciência da Alemanha. “Em países em que o desemprego atinge 25%, como em Espanha, nota-se que o sistema educativo é muito teórico. Noutros países, como a Alemanha, onde há apenas 6% de desemprego, a ligação do ensino ao mercado de trabalho é muito mais forte”, sustentou.
O ensino vocacional é apontado como uma alternativa à formação universitária. Costuma incluir adolescentes e jovens adultos e está orientado para a aprendizagem de profissões concretas. É muitas vezes equiparado ao sistema dual de ensino, que junta teoria e prática. O mesmo sistema que o ministro da Educação Nuno Crato disse, a propósito da visita a Portugal da chanceler alemã Angela Merkel, estar “empenhado em desenvolver” em Portugal.
Andreas Schleicher, da OCDE, “não acredita que seja necessário escolher entre o modelo vocacional e o modelo universitário”. “O mais importante é integrar a formação teórica na experiência concreta de trabalho porque isso prepara muito melhor as pessoas para exercerem uma profissão”, diz. “Em comparação com os currículos oficiais, que prevêem apenas o ensino teórico na sala de aula, a aprendizagem no local de trabalho permite aos jovens desenvolver competências técnicas, como saber operar com máquinas, e competências pessoais, como sejam o trabalho de equipa e a capacidade de diálogo.”
Ao PÚBLICO, Christine Evans-Klock, directora do departamento de emprego da Organização Mundial do Trabalho (OIT), evidencia preocupações sociais ao abordar o mesmo assunto: “Em geral, a austeridade não é a melhor maneira de ultrapassar uma recessão, porque o que se obtém em poupança de curto-prazo terá daqui a alguns anos um custo económico e de produtividade muito gravoso para os países. Mesmo que seja necessário aplicar alguma austeridade, isso só faz sentido se for conjugado com políticas de emprego. O emprego não pode ser visto como um luxo que surgirá no fim da era de austeridade, tem de ser visto como uma das ferramentas para se gerar crescimento, ultrapassar a recessão e pagar a dívida.”
Quanto ao sistema dual, Christine Evans-Klock está de acordo e diz que “é importante dar benefícios às empresas que aceitem estagiários e que lhes dêem formação e contratos de trabalho”. Por outro lado, avisa, “a formação de desempregados por parte do Estado não pode ser suspensa ou reduzida por causa da austeridade e deve haver mais programas de ensino vocacional para alunos que abandonaram a escola e precisam de aprender uma profissão”. Caso contrário, “arriscamo-nos a perder uma geração”.
Ensino através da Internet
No dizer de Peter Thiele, do Governo alemão, “os alunos do futuro têm de ter um papel mais activo no seu processo de ensino, com mais pensamento crítico e capacidade de análise, enquanto os professores precisam de ser sobretudo mediadores do conhecimento”. Mas para já o que se impõe é “uma abordagem holística e uma mudança no sistema”.
É isso que Gabi Zedlmayer procura fazer. A vice-presidente do departamento de inovação do gigante informático Hewlett-Packard (HP) explica que a sua empresa actua na área educativa através de protocolos com laboratórios e universidades de todo o mundo com vista a desenvolver o ensino através da Internet. “Não basta dar um computador a uma criança, temos de trabalhar com universidades e think tanks para criar o futuro do ensino online. O FutureLab do Reino Unido, por exemplo, é um dos nossos parceiros, e está por sua vez agregado a universidades. Aos poucos estamos a construir nuvens de conhecimento acessíveis aos estudantes. Escolas onde não há laboratórios podem recorrer a esta solução para por os alunos a fazer experiência de química, física ou matemática através do computador.” Por isso, para Gabi Zedlmayer, “a falta de dinheiro não tem de ser o principal problema”. “Os pais, os alunos, as ONG, as empresas e os governos podem criar sistemas que funcionem sem grandes gastos.”
Neste âmbito, a WISE foi montra para um projecto-piloto especialmente inovador, InnoOmnia, criado em 2010 na Finlândia, com dez mil estudantes e 700 funcionários. “Fazemos ensino vocacional para alunos dos 16 aos 24 anos, sobretudo na área do turismo, prestação de cuidados de saúde e gestão. E também temos centros de reconhecimento de competências adquiridas ao longo da vida e centros para adultos que estão desempregados e precisam de mudar de profissão”, explica Mervi Jansson-Aalto, uma das directoras do InnoOmnia. “Há alguns anos havia demasiadas instituições de ensino público na Finlândia – todas as nossas escolas são públicas – e o Governo decidiu que para poupar precisava de fundir instituições. O campus Omnia, no qual se insere o projecto InnoOmnia, resulta da junção de três escolas das cidades de Espoo, Kauniainen e Kirkkonummi”, completa.
A filosofia, segunda aquela responsável, é a de levar micro e pequenas empresas para o campus Omnia para que os alunos tenham acesso a formação directa no local de trabalho. “Em vez do modelo de aulas teóricas numa sala, os estudantes vão duas ou três vezes por semana para as empresas. Todos são vistos como professores e alunos. Um jovem de 16 anos pode saber trabalhar muito bem com vídeo e ajudar a criar um vídeo promocional para uma das empresas que se instalaram no campus. Toda a gente tem competências válidas, é preciso descobri-las e pô-las ao serviço da comunidade.”
Mervi Jansson-Aalto desconhece a situação concreta de crise nos países do Sul da Europa, pelo que prefere não comentar, mas adianta que este projecto finlandês é exportável e já tem recebido a visita de professores estrangeiros interessados em conhecer o InnoOmnia. “Claro que vai ser sempre preciso um financiamento básico do Estado para o sector educativo, mas muitas vezes gastamos recursos de forma desnecessária pelo simples factos de estarmos todos de costas voltadas uns para os outros: escolas de um lado e empresas do outro. A falta de dinheiro pode ser menos importante do que a falta de um método eficaz de cooperação.”