5.12.12

«Por onde passo alguma coisa fica»

Texto Juliana Batista, in Fátima Missionária

Isabel Fernandes, recebeu o prémio europeu na categoria de «Melhor Voluntário»


Hoje é o Dia Internacional dos Voluntários. Isabel Fernandes, vencedora do prémio europeu na categoria de «Melhor Voluntário», trabalhou em Moçambique e conta que procurou «incessantemente» uma organização que a levasse até África

Tem 24 anos e chama-se Isabel Fernandes. É licenciada e mestre em psicologia e é natural de Famalicão. Em 2009 esteve como voluntária em Moçambique. Como quis repetir a experiência, voltou para o mesmo país africano em 2011. No último dia 19 de outubro, Isabel recebeu o prémio europeu na categoria de «Melhor Voluntário», atribuído pela Active Citizens of Europe Awards, em Itália. Na próxima segunda-feira, 10 de dezembro, a voluntária do ano receberá a medalha de ouro comemorativa do 50.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem, no Salão Nobre do Palácio de São Bento.


FÁTIMA MISSIONÁRIA - Recebeu este ano o prémio europeu na categoria de «Melhor Voluntário». Acha que conseguiria ser voluntária a vida inteira?
Isabel Fernandes - Imagino-me a entregar-me sempre aos outros. E serei voluntária, daqui a 10 anos, 20, 30… enquanto cá estiver. (In)felizmente considero que o voluntariado é uma missão que não tem fim. Há muito trabalho por fazer. Não podemos baixar os braços. Obviamente que este meu compromisso é para sempre, independentemente do sítio onde estou. Se todos déssemos um pouquinho de nós, este mundo seria bem melhor.

FM - Em que contexto tomou a decisão de partir para Moçambique?
IF - Desde muito cedo sabia que queria partir em missão para África. Mas as oportunidades são poucas. No entanto, sempre partilhei este meu desejo e estive muito ativa na internet. Tive a felicidade de ter uma porta aberta em 2009. Nessa altura estava a acabar a licenciatura de psicologia. Depois dessa minha primeira missão, regressei contrariada porque o que mais queria era ter continuado lá. Mas continuei a procurar incessantemente organizações não governamentais para o desenvolvimento (ONGD) que me permitissem regressar à minha casa [África]. Em 2011 encontrei um anúncio na internet da Ataca que pedia dois voluntários para Moçambique. No dia 25 de abril do mesmo ano enviei o meu curriculum vitae e a minha carta de motivação. Num grupo de 100 pessoas fomos sujeitos a um processo de recrutamento, e qual o meu espanto e felicidade quando passado dois meses percebi que tinha sido uma das selecionadas.

FM – Partir em missão foi uma opção para ‘fugir’ à situação de desemprego?
IF - Esta minha vontade de estar no terreno não tem nada a ver com a situação de desemprego, mas sim com os meus ideais de vida.

FM - Como é trabalhar sem receber um salário?
IF - Essa é uma parte difícil na vida de qualquer voluntário, ainda para mais com a conjuntura atual. É muito difícil viver só do voluntariado. O ideal será conciliar um trabalho com o voluntariado, pois enquanto não houver nenhum organismo que garanta uma maior sustentabilidade às pessoas que partem em missão será difícil viver só do voluntariado.

FM - Os voluntários têm direito a proteção social quando terminam as suas missões?
IF - Ainda há muito trabalho que se pode fazer ao nível de voluntariado e essencialmente nos apoios que poderão ser dados às pessoas que partem em missão.

FM - Tem uma licenciatura e mestrado em psicologia. Tem procurado emprego em Portugal ou está apenas focada no trabalho que está a desenvolver em África?
IF - O meu objetivo é conseguir um emprego em África. Caso não consiga, o ideal é um emprego que me permita fazer a ponte Portugal-África.

FM – Como interpreta o trabalho das organizações não governamentais?
IF - São sem dúvida entidades muito importantes na vida de milhões de pessoas. Se estiverem bem estruturadas, se as pessoas que trabalham nelas tiverem boa índole, e se forem transparentes então fazem realmente a diferença. No entanto, atualmente, também devido à situação económica que vivemos as próprias ONG´s passam por um desafio muito grande.

FM - Antes de ser voluntária trabalhou em alguma empresa?
IF - Fiz vários trabalhos na minha área de formação enquanto tirava a licenciatura/mestrado. Mas estes trabalhos, sendo auto-propostos, eram não remunerados.

FM - Criou, juntamente com outros voluntários, uma associação. Qual é a atividade dessa estrutura?
IF - Depois da missão em 2009, juntamente com algumas colegas de terreno, fundámos uma associação sem fins lucrativos – kutsemba (www.kutsemba.pt). Kutsemba quer dizer Esperança no dialeto changane. E é isso que realmente nos move, a esperança num mundo melhor. Temos imensos projetos tanto em Portugal como em Moçambique. Como somos uma equipa multidisciplinar atuamos em diferentes áreas.

FM – Tem dedicado a sua vida ao voluntariado. Ser voluntária é motivante?
IF - Desde muito jovem que faço voluntariado. Pequenas ações, com a escola ou amigos. Por isso, é algo que já está intrínseco na minha pessoa. Ser voluntário é realmente motivante por todos os desafios. Nem sempre o caminho é luminoso, muitas vezes temos de dar um passo atrás para depois dar dois à frente. Mas quando se fazem as coisas por amor, tudo é recompensado. Acredito que vivemos numa aldeia chamada mundo» E por isso, à minha maneira vou mudando o meu mundo. Tenho a certeza que por onde passo alguma coisa fica.

FM - Tem feito viagens entre o continente africano e europeu. Quando chega ao seu destino, é mais fácil adaptar-se a Moçambique ou a Portugal?
IF - Costumo dizer que o mais difícil de uma missão é regressar a Portugal e (re)adaptar-me às rotinas, ao modo de vida, às pessoas. É bastante complicado. Quanto mais os dias passam, mais as saudades aumentam das minhas mamãs e das minhas crianças em Moçambique.

FM - O que é que a sua família e amigos acham da sua opção pelo voluntariado?
IF - Costumo denominar os meus amigos e a minha família como o meu património dos afetos. Sem eles nada disto seria possível. Apoiam-me em todo os momentos. Se sou quem sou, deve-se muito às pessoas que tenho à minha volta.

FM - Na sua experiência de voluntariado há algum episódio que a tenha marcado?
IF - Um ano é muito tempo… muitas pessoas, experiências, histórias, sorrisos, abraços. Vive-se a 100 por cento! E realmente lá, não há filtros, tudo é vivido de forma muito intensa. Mas já que estamos perto do Natal, posso dizer que passei lá o melhor Natal da minha vida. Sem prendas, sem bolos, sem bacalhau… mas com tudo! Proporcionámos às nossas mamãs e às nossas crianças um momento único que nem eles nem eu seguramente nos iremos esquecer. Posso dizer mais episódios mas não iria sair daqui. Qualquer passo dado pelas nossas famílias e crianças são marcantes. As latrinas construídas, os negócios das mamãs, as casas melhores do que estavam, as formações… tudo. Mas infelizmente também existem momentos marcantes pelos piores motivos. As perdas de vida, como eles lá chamam à morte, de algumas crianças ou mamãs do nosso projeto, são momentos difíceis de gerir. Assim como quando estive com malária. De resto, foi um ano fantástico que me fez apaixonar ainda mais por aquele povo e país.