por Adriano Moreira, in Jornal de Notícias
A infeliz moldura da crise política que atingiu não apenas a imagem internacional do País mas também a autoestima dos portugueses exige que seja separada do conjunto de desafios sérios que o projeto europeu entretanto vai sofrendo, desafios esses têm que ver com o futuro da comunidade e com a falta de estadismo e liderança com que a Europa se confronta, e à qual temos dado visível contribuição.
Não pode omitir-se o conjunto de sacrifícios que um neoliberalismo sem regras e repressivo, com um historial elucidativo já do século passado, produziu até que os fracassos das previsões tenham finalmente sido assumidos: mas tal memória, que não serve para os remediar, embora possa ajudar a não os repetir, implica sobretudo a urgência de meditar sobre o consequencialismo no que toca ao projeto da União, e ao seu conceito estratégico, se ainda for possível identifica-lo com clareza.
Embora sem nunca ter sido assumido um modelo final da União, não por falta de projetos históricos mas por escassez de experiências, estavam claros os princípios que deviam ser respeitados e fortalecidos pela prudente política dos pequenos passos.
Tais princípios, sem grande risco de erro de omissão ou entendimento, incluíam o Estado social, a democracia de modelo ocidental, a coesão social, o desenvolvimento sustentado entendido como o nome da paz para os nossos dias, a diversidade cultural unificada por um conjunto de valores que fazem parte do património imaterial da humanidade.
A pretensão de ser um modelo de regionalismo para um mundo em mudança que obrigava a avaliar a relação entre objetivos e capacidades, com o inevitável reflexo na redefinição das soberanias, não exigia apenas a igualdade dos direitos do homem, também implicava a igualdade dos Estados admitidos no projeto inovador.
Muito cedo se tornou evidente que a inicial preocupação com o modelo económico, traduzido num mercado livre, exigia uma inovadora estrutura política, de que o Tratado de Lisboa foi o imperfeito último passo.
O talento dos grandes pensadores e interventores que construíram o património político europeu, pagando os custos de uma evolução longa, e frequentemente conflituosa, depois da última grande, exigia uma capacidade de gestão das diferenças unificadas e presididas por uma maneira europeia de estar no mundo.
As desordens orçamentais, a crise financeira e económica, a confusão entre o multiculturalismo e o cosmopolitismo são consequências de causas entre as quais avulta com destaque a fraqueza das lideranças, a falta de herdeiros dos que sofreram e conduziram o calvário da guerra mundial, e a longa penitência da Guerra Fria.
A incapacidade manifesta de uma gestão das diferenças implicou o acidente grave de a própria igualdade dos Estados da União não ser preservada, o renascimento dos demónios que os fundadores julgaram dominar, a convicção não assumida de que a realidade apenas era um processo europeu para uma conjuntura datada, a qual, nesta entrada de um "século sem bússola", abria agora caminho, e para alguns necessidade, de dar lugar à pluralidade de capacidades individualizadas dos Estados, a recordarem a hierarquia dos poderes efetivos.
A situação dos países do Norte do Mediterrâneo, abrangidos pela fronteira da pobreza, consentiu que o modelo real do protetorado, que no passado ajudou a tornar infeliz a relação das soberanias europeias com a área da "primavera muçulmana", pudesse voltar ao exercício dentro do território da própria União. O que tem demonstração na situação do Estado português, e com a contribuição dispensável do nosso percurso interno para a demonstração de que a falta de liderança e o simultâneo enfraquecimento do conceito estratégico europeu estão a transformar em modesta parcela dos tempos o que se sonhava caminhar para um fim, que não era o de perder a voz da Europa no mundo.
Não há experiência de um governo a prazo ser uma resposta para a recuperação da igualdade internacional.