27.7.13

Um contrato social de (des)inserção

Ana Cristina Pereira, in Público on-line

Esperou meio ano pelo RSI. Queria um curso que lhe apontasse um caminho. Encarnação está há um ano a contar dias cheios de nada. Meteu-se na prostituição. Contraiu VIH.

Tem VIH. Não sabe o que fazer com esta informação. Está a tentar arrumá-la na cabeça. Já tinha tanta coisa para arrumar. Tem a cabeça desarranjada desde que o padrasto o agrediu e ele teve de sair porta fora, a segurar a barriga, a esconder o sangue com um casaco.

Do Hospital de Aveiro foi enviado para o Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia. Encarnação contou tudo a um agente da PSP e a uma técnica da Associação de Apoio à Vítima (APAV). Pensava-se a salvo.

O requerimento de rendimento social de inserção (RSI) foi entregue a 5 de Julho de 2012. A técnica da APAV ajudou-o a preencher os formulários e a seleccionar os documentos. Encarnação teve de ir buscá-los a casa, com a polícia. Receberia 178,15 euros.

Ninguém lhe sabia dizer quanta espera tinha pela frente. A lei acabara de ser alterada. Na Segurança Social, mudavam a aplicação informática. O ministro Pedro Mota Soares prometia "garantir verdadeiramente a reinserção social dos beneficiários". Não, não imaginava chegar a dizer isto: "Até dou em tolo! Tantas horas sem nada para fazer."

Quando tudo aconteceu, morava com o padrasto, a mãe, a irmã e os dois sobrinhos numa freguesia rural de Aveiro. "Ele não aceitava a minha orientação sexual", diz. "Quando saía com a minha mãe, ele dizia que eu ia arranjar homens para ela." Fora Encarnação que o pusera em contacto com a mãe. "Maldita hora!"

Nas salas de chat dos serviços de teletexto da SIC e da TVI, deparara-se com um divorciado em busca de namoro. "Andei para aí um mês a passar-me por gaja e a falar com ele." Pela conversa, pareceu-lhe "boa pessoa". Uma noite, estava Encarnação a ver televisão com a mãe, solitária desde que enviuvara, e perguntou:

- Olha, queres um homem?

- Se for feio, não quero. Se for bonito, dá cá.

Ela viu a fotografia do iludido pretendente e achou-lhe graça. Telefonou-lhe. Num instante, namoro. Noutro instante, partilha de vida.

Encarnação está com 21 anos e parece um miúdo, franzino, encolhido. Naquela época mais ainda. Abandonara o ensino regular aos 15 anos, atordoado com a morte do pai. "Fiquei sem cabeça para a escola." Tinha o 6.º ano. Encontrara trabalho na cantina de um centro de formação. Entretanto, trocara o trabalho por um curso de educação e formação, na área da informática.

Desistiu do curso, que lhe daria equivalência ao 9.º ano. Virou-se para os novos afazeres: apanhar erva aos coelhos, dar água ao cavalo, ir à lenha. "O curso era até às cinco da tarde. Às vezes, o meu padrasto chamava-me e eu tinha de sair à hora do almoço. Ele estava sempre a brigar comigo."

Um quarto na Santa Casa

A relação entre ambos era cada vez mais conflituosa. "Se não fazes isto, pega nas tuas coisas e põe-te a andar daqui para fora. Eu não fazia, chamava-me nomes, agarrava-me no braço e puxava-me." E a mãe? "A minha mãe consentia. O amor é cego, não acha?"

Em Junho de 2012, pensou que ia morrer. O padrasto pedira-lhe que o acompanhasse e o rapaz ficara na cama. "Ele ligou-me, mandou-me mensagens, bateu à porta e eu fiz de conta que estava a dormir." De manhã, entrou-lhe no quarto. "Dizia que eu só queria boa vida." Gritaram um com o outro. O padrasto puxou a faca. "Até a minha televisão eu lhe parti na cabeça. Eu tinha de me defender, não acha?"

Desamparado, depositou esperança na técnica da APAV - que não comenta o caso, por respeito à confidencialidade. Sem uma casa-abrigo para homens vítimas de violência doméstica, Encarnação saltitou até entrar na Casa da Rua, da Santa Casa da Misericórdia do Porto, atestada de homens bem mais velhos com historiais de álcool ou drogas ilícitas.

A Segurança Social chamou-o em Setembro para assinar contrato de inserção: ficaria na Casa da Rua, na qual teria regras, e aceitaria formação ou emprego. Entrou em Outubro na casa, que, além de tecto, lhe garante três refeições por dia e serviço de lavandaria.

Saem às 9h. Regressam às 12h para almoçar. Têm de sair às 13h30. Só podem voltar às 17h30. "Este horário é para a gente andar à procura de trabalho", percebe. "Ela acha que vai aparecer um trabalho com o meu nome. É que sou só eu a procurar. Tanta gente com mais habilitações do que eu!"

A directora da Casa da Rua é "gestora de tarefa". Cabe-lhe verificar se Encarnação cumpre regras. A técnica da Segurança Social é que assume o papel de "gestora de caso". E é dessa que ele se queixa: "Primeiro, disse que para Janeiro me arranjava um curso. Depois, disse que é só em Setembro. Estou há um ano sem nada para fazer."

Queria um curso que lhe desse escolaridade, rumo. "Tantas horas sem nada para fazer e sem dinheiro para me sentar a tomar café!" Recebera apoio social - 150 euros em Setembro, 200 em Novembro, 150 em Dezembro. Usara-o para pagar dívidas e quarto - paga 75 euros ali.

Um amigo desafiou-o. "Tinha um cliente que queria estar com dois ao mesmo tempo." Experimentou. Assumiu aquilo como actividade. Ainda pensava no que diriam os antigos amigos. Lembrava-se de os ouvir dizer que prostituição "era dinheiro fácil, que quem quiser trabalhar deve arranjar um trabalho decente, a vergar a mola". E temia: "Ai! E se descobrem? E se me criticam?" E dizia a si próprio: "A vida é minha, eu faço o que eu quiser. Quero é que eles se lixem. É normal, desde que os dois queiram."

Não tinha medo dos desconhecidos que o abordavam na rua, na estação de São Bento ou no Centro Comercial Plaza, onde outros sem-abrigo procuravam fintar os rigores do clima. "É desconhecido naquele momento, depois fica conhecido, não acha?" Seguia o instinto. Cobrava pelo menos 25 euros.

No início de Fevereiro, chegou o RSI - com retroactivos desde Setembro e não desde Julho, como esperava. Com a última mudança legal, a prestação passara a ser atribuída a partir da assinatura do contrato de inserção e não a partir do diferimento do processo.

Deixou de se prostituir. Arranjou uma amiga, fragilizada por um cancro, com quem passa os dias, mas descobriu que tem VIH. "Agora, não posso passar uma borracha e apagar..." De certo modo, é como se esta longa espera o tivesse condenado à desinserção perpétua.

Na última vez que o chamaram à Segurança Social nem compareceu. Terá de regressar no início de Agosto, para a "reavaliação periódica". "Para quê? Vão dizer-me que não há cursos, que não há emprego, que não há nada."

A Segurança Social diz que a sua situação foi reavaliada em Dezembro e que foram contratadas acções da responsabilidade do Instituto de Emprego e Formação Profissional. Nunca teve, porém, proposta de emprego. Apenas uma vez foi encaminhado para formação: compareceu, mas não foi seleccionado.

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