2.7.13

Ter a porta destrancada e uma pulseira que não deixa sair de casa

Ana Cristina Pereira, in Público on-line

Fátima está em regime de obrigação de permanência na habitação e vive com o seu filho, de 16 meses. Tem autorização para ir ao médico e visitar o marido na prisão .

Tribunais optam cada vez mais por tecnologia de controlo à distância. Prisões vivem dias de sobrelotação.

Fica ansiosa sempre que sai de casa. E se qualquer coisa a embaraça? Já lhe aconteceu ficar retida no trânsito. Fora visitar o marido ao Estabelecimento Prisional do Porto e deparara-se com um acidente na Via de Cintura Interna. Era Inverno. Anoitece depressa. Telefonou à equipa da vigilância electrónica: "Os carros não passam!"

Fátima está em regime de obrigação de permanência na habitação. Passa o dia lá dentro, a cuidar do filho, de 16 meses. Tivera-o havia um mês e meio quando a polícia irrompeu casa adentro e virou tudo do avesso em busca de drogas. Entregou-o à mãe para não o levar para o Estabelecimento Prisional Especial de Santa Cruz do Bispo. Rogou ao juiz: "Pelo amor de Deus, tenho um bebé pequenino, dê-me uma oportunidade."

Passou 20 dias no edifício murado. A Reinserção Social tinha de verificar se a vigilância electrónica era a medida adequada. Os pais queriam mesmo receber Fátima em casa? Tinham condições para isso? Dispunham, por exemplo, de energia eléctrica regularizada? Ainda lá esteve oito meses até se mudar para casa de amigos, incomodada com a polvorosa familiar, mais ainda com a humidade, que fazia adoecer o bebé.

Portugal admite o recurso a meios de controlo à distância em alternativa à prisão preventiva desde 1998. Por impulso do consumo e do tráfico de drogas, a população prisional aumentava a olhos vistos. A sobrelotação, em grande parte feita de pessoas não sentenciadas, agravava as condições de vida nas prisões.

Os Estados Unidos tinham começado a usar a vigilância electrónica. Uns alegraram-se com a poupança que tal significa, outros com a oportunidade de trabalhar a reinserção fora das prisões. Tal raciocínio, em traços gerais, repetiu-se noutras latitudes. Na Europa, em particular no Reino Unido e na Suécia, não escondiam o entusiasmo.

Portugal testou a vigilância electrónica entre 2002 a 2004 - primeiro na Grande Lisboa, depois no Grande Porto. Em 2007, deixou de a usar apenas na fase pré-sentença - alargou-a ao fim de pena. E, volvidos dois anos, começou a testá-la também no controlo da proibição de contactos entre agressor e vítima de violência doméstica.

Fátima está quase sempre confinada ao apartamento com vista para uns terrenos improdutivos e para uns prédios enfezados. Só tem autorização para ir ao médico e para visitar o marido. "Todas as terças-feiras vou visitar o meu marido. Dão-me 40 minutos para me deslocar." Contam com a fila, que pode ser extensa. A visita dura uma hora. "Venho logo para casa. É o tempo de ir para o carro, pôr o menino na cadeirinha, meter o cinto. Tenho essa responsabilidade. Demoro no máximo 15 minutos, se não parar numa bomba de gasolina. Se parar, peço autorização."

"A vigilância electrónica tende a transformar a pessoa vigiada em sujeito da sua própria medida", observa Nuno Caiado, responsável pelos serviços de vigilância electrónica da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais. "Há uma evolução, no sentido da responsabilização pelo modo de vida, pelo cumprimento de horários, de regras."

Os tribunais é que decidem quando e para quê pode alguém sair de casa. Há quem seja autorizado, por exemplo, a passar o dia a trabalhar ou a assistir às aulas ou a sair só para consultar um médico, fazer compras de supermercado ou andar a pé. O procurador Norberto Martins já se deparou até com pedidos para passar a noite de São João com um familiar, o que não foi autorizado.

Fátima esforça-se para "fazer tudo direito". Sempre que tem de ir ao centro de saúde, informa a Reinserção Social. Já lhe aconteceu ouvir a recepcionista dizer: "Sim, sim, está aqui à espera da consulta, ainda não entrou." Não se incomoda. "Por mim, podem ligar sempre. Vou seguir as regras até que isto tenha fim."

Para garantir que tudo corre conforme autorizado, os serviços de vigilância electrónica estabelecem pontes que lhe permitem manter um controlo para lá da residência. "Quem é autorizado a ir às aulas não pode ir para a praia", enfatiza Nuno Caiado. Um professor fica encarregado de dizer se o estudante falta às aulas ou se as passa a armar sarilhos. Se não está nas aulas, está onde?, perguntar-lhe-á o técnico. Informa o tribunal, que poderá decidir reduzir o tempo de saída, revogar a saída ou decretar a prisão preventiva.

As fugas não são frequentes. Há poucas revogações por incumprimento - 5,9%, segundo o último relatório da DGRSP. E os tribunais optam cada vez mais por esta tecnologia de controlo à distância - 881 em 2012, 810 em 2011, 738 em 2010. No final de Abril, estavam 693 pessoas a viver sob vigilância electrónica.

Uma vez, os serviços estranharam o atraso de Fátima. Fora ao médico. "Estava com uma depressão. A consulta demorou muito." Telefonou-lhe um técnico a perguntar: "Ainda vai demorar?" E ela atrapalhou-se: "Cinco minutos e estou em casa." Trazia uma declaração com a hora a que entrara e a hora a que saíra.

"Já me dou por feliz por ver o meu marido todas as semanas", diz a mulher de 37 anos. "Ele telefona-me todos os dias para saber como estou, se comi, se a minha mãe veio aqui, como estão os filhos." As enteadas estão com os avós. Neste apartamento, de paredes coloridas, Fátima embala apenas o seu bebé.

O bebé dorme a noite toda. Desperta por volta das nove da manhã. "Dou-lhe o leitinho, dou-lhe o banhinho. Visto-lhe uma roupa confortável para estar em casa. Com um bebé nesta idade, tenho muita coisa para fazer." O tempo que lhe sobra é gasto na sala, no sofá de couro, a ver telenovelas, ou no tapete rolante ou na plataforma vibratória, a exercitar-se.

O carro está à porta. O ímpeto para sair pode ser grande, mas a vontade de respeitar a ordem é maior. "Sou muito forte em pensamento", diz Fátima. "Dou graças a Deus por poder estar em casa com o meu filho. O que mais queria agora era trabalhar." Joel, preso noutra casa, diz o mesmo. Está quase sempre de pijama. Quando tem visitas, lá veste um fato de treino. "Estou mentalizado que não posso sair. Se andar vestido penso que é uma mentira: estou vestido e não vou sair."

Só uma vez Joel cruzou a porta da rua desde que um juiz lhe decretou obrigação de permanência na habitação, há dez meses e meio. Foi quando se mudou do apartamento que partilhava com a mulher e os filhos para a casa dos pais. "Quem vai agora pentear e lavar os dentes aos meus filhos?", perguntava à advogada.

"Trabalhava num stand acima de casa. Ia trabalhar e levava-os. Agora, não. Agora, não posso passar aquele portão branco." Acorda cedo, como se os levasse. "Dou-lhes o pequeno-almoço. Às vezes, a menina quer que lhe dê a comida na boca, outras vezes come sozinha. A minha mulher toma banho, veste-se. Eu subo-os. Ela ajuda-os a vestir. Eu faço o lanche deles para o meio da manhã e para o meio da tarde. Quando voltam, tenho as coisas adiantadas para o jantar, a fruta descascada para a sobremesa."

A filha está com quatro anos, o filho com oito. Sabem que o pai está desempregado. Pensam que está sem carta de condução. O miúdo, por vezes, reclama: "Nunca mais vem a carta! Tens de andar mais devagar." Acredita que o pai foi apanhado a conduzir a mais de 120 quilómetros por hora numa auto-estrada.

Nunca se metera em problemas. "Andas lixado de dinheiro", dissera-lhe um amigo, que reencontrara após anos de ausência. "Queres ganhar cem continhos num instante?" Joel animara-se. As vendas, no stand, tinham caído. "É a ansiedade de ter o que não se tem. E eram curtos quilómetros. Ninguém me disse para ir a Lisboa ou ao Algarve ou ao Brasil, como se vê na televisão. Aquilo era 15 minutos, 20 no máximo."

Entrou num café na Praça do Marquês de Pombal, no centro do Porto. Um homem passou-lhe uma mochila. "Não abras nem mexas em nada", ordenara-lhe. "Era tão levezinha." Pôs a mochila às costas, subiu para a moto emprestada. Não chegou à cabine telefónica do Campo Alegre, na zona ocidental, onde alguém o esperava.

Houve uma operação stop. "Os seus documentos", pedira-lhe o guarda. "O que tem nessa mochila?" Ao ver, comentou: "Então foi parar? Vê-se mesmo que é inexperiente." Um quilo. Um quilo de cocaína a caminho de uma boca de tráfico. Ali, no final do Campo Alegre, estão três "bairros de uso" - Aleixo, Pinheiro Torres, Pasteleira.

Não esquece aquele momento. Recorda-o amiúde, sentado ou deitado no sofá, onde passa dias a fio agarrado a jogos electrónicos e ao que vai passando no televisor. Cansa-se de jogar. Doem-lhe os dedos e os olhos. Adormece, por vezes. Sacode-se. Põe-se a passar a ferro. "É um tédio. Faz bem. Tenho mais tempo para pensar. Nunca mais. Nunca mais na vida. Nunca mais quero cem contos fáceis."

Alguns procuradores e juízes discutem se a obrigação de permanência na residência, enquanto medida alternativa, deve contar como prisão preventiva. "Não é tão grave", salienta Norberto Martins. No seu entender, pelo menos depois da condenação na primeira instância, "devia contar menos - um ou dois terços".

O procurador dá um exemplo de um indivíduo, sujeito a vigilância electrónica, condenado a seis anos de prisão: recorreu para a Relação, que confirmou a decisão da primeira instância. Apesar de não haver recurso de penas inferiores a oito anos, avançou para o Supremo. Quando o juiz declarou que o processo era insusceptível de recurso, recorreu ao presidente da secção. Perante resposta idêntica, recorreu ao Constitucional. Por fim, pediu intervenção do colectivo de juízes. "Andou nove meses a fazer litigância. Esses nove meses vão ser descontados."

Em qualquer parte do mundo, a obrigação de permanência na habitação conta como prisão afectiva, sublinha Nuno Caiado. Grande autocontrolo tem de ter para estar, dia após dia, em casa, com a porta destrancada sem a cruzar. "As pessoas ficam saturadas." Há pais que esgotam a paciência com os filhos e vice-versa. E casais que se desentendem.

A advogada Luísa Macanjo, especialista em Direito Penal, admite que tenta alongar o tempo de obrigação de permanência na habitação para livrar clientes da cadeia. O advogado Duarte Martins de Carvalho também. E criticam o facto de não se poder passar de uma obrigação de permanência na habitação pré-sentença para uma vigilância electrónica de fim de pena sem passar pela cadeia.

Duarte Martins recorda o caso de um correio de droga que aguardou julgamento em prisão domiciliária e foi condenado a três anos e meio. "Já tinha tempo para sair em liberdade condicional. Tinha de se entregar no estabelecimento prisional para o Tribunal de Execução de Penas liquidar a pena. Podia estar lá quatro ou cinco meses à espera." Não chegou a ir. Entretanto, o Tribunal da Relação suspendeu-lhe a pena.

O argumento não convence Nuno Caiado. Um juiz decreta uma pena de prisão efectiva por entender que essa é adequada, recorda. Se quisesse livrar o réu da prisão efectiva, podia optar por lhe suspender a pena.

Encolhido no sofá, Joel nem gosta de pensar no que pode ser uma prisão. A advogada disse-lhe: "Vocês vão para lá e ficam piores. Aquilo é só traficantes e ladrões." E ele pediu-lhe: "Doutora, meta-me a trabalhar por amor de Deus." Foi condenado na primeira instância a quatro anos e meio de prisão efectiva. Recorreu.

A vigilância electrónica é pouco usada como pena de prisão e como adaptação à liberdade condicional. Para Nuno Caiado, o alívio da pressão prisional podia passar por aí. A título pessoal, tem defendido uma alteração legislativa que permitisse alargar esta medida a crimes considerados menos graves, como a condução sem carta ou sob o efeito de bebidas alcoólicas.

O país recuperou um problema dos anos 1980 e 1990: o número de reclusos passou de 11.099 para 13.614 entre 2009 e 2012. Há 1537 pessoas a mais - 59% das cadeias estão sobrelotadas. Num cenário de contenção orçamental, cabe lembrar que uma pessoa custa 40,10 euros por dia na prisão; 16,35 em prisão domiciliária; 21,12 se andar com uma medida de afastamento de uma vítima de violência doméstica - as pulseiras são idênticas.