4.4.14

Ninguém acredita que Seguro consegue acabar com sem-abrigo em quatro anos

in iOnline

Associações no terreno garantem que a realidade de quem vive nas ruas é demasiado "complexa" para ficar resolvida numa legislatura

"Irrealista", "demasiado ambicioso" e "inconsequente". As associações que trabalham no terreno com os sem-abrigo acreditam que é muito pouco provável que o secretário-geral do PS consiga tirar das ruas todas as pessoas que não têm um tecto. Mais difícil ainda, garantem, é fazê-lo em apenas quatro anos - como prometeu António José Seguro durante uma visita à associação CAIS.

"O assunto é demasiado sério para ser tratado com ligeireza", avisa o presidente do Centro de Apoio ao Sem Abrigo (CASA). Nuno Jardim recorda que o problema é "complexo", envolve múltiplas causas e precisa de ser combatido em muitas frentes, especialmente em tempo de crise. O coordenador do programa "Inter-gerações" da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, João Marrana, lembra que sempre existiram sem-abrigo em todas as sociedades e que, nas ruas, "cada caso é um caso". João Baptista, o director-adjunto do Departamento de Acção Social da AMI, concorda e ressalva que não pode haver compromissos com prazos quando se fala de pessoas. A Comunidade Vida e Paz, que trabalha com sem-abrigo há mais de 20 anos, considera que as declarações de Seguro são demasiado ambiciosas e "optimistas".

A intenção do secretário-geral do PS pode até ter sido a melhor e, ontem, o gabinete de António José Seguro explicou ao i que o socialista "não disse que quer acabar com os sem-abrigo, mas sim criar as condições necessárias para acabar com os sem-abrigo". Mas afinal o que é preciso fazer para tirar da rua quem vive na rua? E de quanto tempo precisa um sem-abrigo para se reintegrar na sociedade? Henrique Joaquim, da Comunidade Vida e Paz, insiste que o problema é multidimensional. Cada sem-abrigo é uma história diferente que exige uma resposta diferenciada.

Em Portugal não existem estatísticas globais sobre o fenómeno - que é, aliás, difícil de contabilizar porque a população sem-abrigo flutua bastante e é itinerante. Mas os últimos estudos e contagens mostram que muitos dos que vivem na rua continuam a ter problemas associados de droga, álcool e doenças mentais. Nestes casos, a dificuldade não está só em arranjar um tecto definitivo, mas em reabilitar. Os casos em que há doenças mentais são os mais difíceis de resolver. "Por vezes conseguimos levar as pessoas a unidades de saúde mas quando estão compensadas são mandadas para a rua e voltam a descompensar", exemplifica Henrique Joaquim, que defende a necessidade de maior articulação entre a Justiça, a Saúde e a Segurança Social. Nuno Jardim, da CASA, defende que as declarações de Seguro são "inconsequentes" e avisa que o problema vai mais além da simples falta de recursos ou de emprego. "Há uma multiplicidade de causas sociais, familiares e pessoais", descreve.

Portugal até tem uma estratégia nacional, que termina em 2015, mas que nunca "chegou a ter força legal". Por isso, as associações defendem que o problema também é "político" e de falta articulação das instituições que andam no terreno. "É preciso maior objectividade e mais coordenação", defende João Marrana, da Santa Casa da Misericórdia, que até acredita ser possível tirar todas as pessoas da rua. "Mas nem todas as pessoas precisam do mesmo tempo", garante. João Baptista, da AMI, chama a atenção para o aumento, desde 2008, do número de famílias que ainda não são sem-abrigo, mas estão em situação de risco. E defende que enquanto o clima económico se mantiver desfavorável será difícil dar a volta ao problema. "Seria necessária uma verdadeira política de direito à habitação e de emprego", exemplifica. Além disso, há ainda os casos de sem-abrigo que pura e simplesmente não querem deixar a rua. Esses são os mais difíceis de recuperar.

Portugal tem, segundo as últimas contas do Instituto da Segurança Social, 4420 sem-abrigo, dos quais 852 vivem nas ruas de Lisboa. Um inquérito da Santa Casa da Misericórdia divulgado já este ano mostra que 30,6% dos sem-abrigo está sem tecto há menos de um ano, 17% entre um a três anos e 15% entre três a seis anos. A grande maioria dos sem-abrigo inquiridos é homem (87%) e tem entre 35 e 54 anos (48%), seguido pelo escalão 55-64 anos (20%). Mais de metade (71,8%) não tem actualmente qualquer fonte de rendimento e 68,9% recebe apoio na alimentação. Muitos preferem dormir na rua por considerarem que os centros de acolhimento não são adequados por terem muita gente ou por os horários não coincidirem com as suas rotinas. Só 36% dos sem-abrigo de Lisboa recorrem a esses espaços.

O que disse o secretário-geral do PS na visita à associação CAIS

“Fiquei chocado, como qualquer português, com os números da pobreza que foram conhecidos na na semana passada e vim aqui, em primeiro lugar, prestar a minha homenagem e a minha admiração pelas pessoas que dedicam o seu tempo a combater a pobreza e a fazer o acolhimento de pessoas que, por uma razão ou outra, se encontram em situações de vulnerabilidade.

Os casos que aqui conheci são casos verdadeiramente chocantes e alarmantes de pessoas que, com um pouco de apoio, podemos fazer muito para mudar as suas vidas.

E eu assumi aqui o compromisso de criar as condições, na próxima legislatura, para que nós possamos retirar da rua os portugueses sem-abrigo. Os portugueses e as portuguesas que vivem ao relento, que é das coisas mais chocantes para qualquer português.
Considero, também, que é muito importante que nós consigamos criar políticas públicas que, de uma forma integrada, na Educação, na Saúde, no Apoio Social, possam combater este flagelo social que é a pobreza. E, em particular, retirar da pobreza milhares de crianças que se encontram nessa situação. O nosso país tem esse compromisso. Eu diria que mais do que um compromisso público ou político, é um compromisso cívico e connosco próprios.

Foi esse o compromisso que vim aqui assumir, ao mesmo tempo que vim aqui prestar a minha homenagem e o meu reconhecimento pelo trabalho que a CAIS faz já há muitos anos em prole do combate à pobreza e às desigualdades do nosso país”