9.4.14

Pobres, desempregados e virtuosos

Daniel Oliveira, in Expresso

Isabel Jonet tem dado mais nas vistas, mas está longe de ser a única no hábito de substituir o debate político (o desemprego e a pobreza são temas essencialmente políticos) por considerações morais sobre as escolhas individuais dos cidadãos. O que cada um come, como cada um gere a sua vida financeira, como cada um educa os seus filhos, se tem filhos, quando tem filhos, a que horas cada um acorda, a que horas cada um se deita, como cada usa o seu tempo livre, se emigra ou fica por cá. Como se decidiu moralizar as explicações desta crise e generalizar pelos portugueses as responsabilidades por ela ter surgido, este é o passo lógico: um movimento nacional pela virtude dos cidadãos. E Passos Coelho tem sido especialmente expedito na tarefa de pregador.

A semana passada, escrevi um texto sobre os limites da liberdade individual e dos poderes do Estado em torno da escolha dos pais não vacinarem os filhos . Apesar de ter opiniões firmes sobre os riscos que esta escolha tem para todos nós, não deixei de reconhecer os perigos duma imposição coletiva em matéria tão sensível. E de reforçar que apenas a evidência do bem comum permite ao Estado interferir no que é privado. E sempre com enormes cautelas. É por isso que fico atónito com tanto sermão atrevido. Nada tenho a dizer sobre a forma como cada um vive a sua vida, sofre e resolve escapar ao sofrimento. Se fica cá, se emigra, se passa horas no facebook ou se afoga as mágoas. Como cada um gasta o seu dinheiro, desde que o tenha ganho honestamente. Só dou conselhos pessoais a quem os pede e aos meus amigos. Apenas posso ter alguma coisa a dizer sobre as políticas públicas para lidar com as causas e as consequências de decisões pessoais.

Mas é normal que a conversa descambe para isto. O retrocesso social e democrático que nos é exigido obriga, para ser aceite, a doses cavalares de culpabilização das vítimas. É fundamental que acreditem que o seu desemprego, a sua pobreza, o seu desamparo resulta, no essencial, de falhas suas. Só assim a injustiça se pode assemelhar à justiça. E o privilégio passa a ser visto como o prémio pelo mérito. Depois, cheias de generosidade sincera (não duvido mesmo), almas caridosas tentarão, para além de matar a fome, ajudar os pobres a serem mais virtuosos. Organizados, trabalhadores, honestos, humildes, cumpridores, poupados. Tudo o que lhes faltou para saírem da pobreza em que vivem. Que se não fosse responsabilidade sua teria de ser responsabilidade dos privilégios de outros, incluindo os de alguns dos seus filantropos. Os pobres, os desempregados ou até os trabalhadores remediados que assim pensam foram tomados pelo pecado nacional da inveja. Não merecem a caridade compassiva que outros estão dispostos a oferecer-lhes.

Vou deixar que a poeira assente para escrever sobre a proposta de aumento do salário mínimo e a exigência de contrapartidas dos parceiros sociais para uma medida que deveria mobilizar todo o país e não ser uma moeda de troca.