3.4.14

População e desenvolvimento. "Ainda não houve progressos suficientes para as mulheres"

Por Joana Azevedo Viana, in iOnline




Chefe da delegação suíça do Fundo da ONU para a População veio a Lisboa discutir a agenda global pós-2015




Quando, há duas semanas, os representantes dos estados-membros da ONU se reuniram na 58.a sessão da Comissão sobre o Estatuto da Mulher, em Nova Iorque, o Qatar pediu, em pleno debate sobre o casamento precoce forçado, uma definição de "precoce". O combate no campo das terminologias é antigo entre os países que já têm leis que proíbem o casamento infantil e aqueles onde a prática ainda está instituída. "Sempre houve debates sobre as definições de 'infantil', 'precoce', 'forçado'... O lado bom é que 158 estados-membros já ditam, no papel, que a idade legal para casar é 18 anos", diz Alanna Armitage. "O grande desafio agora é garantir que as leis são implementadas e que passamos do papel à acção."

Em pleno século xxi, 14 milhões de raparigas menores são anualmente forçadas a casar, um flagelo que o Conselho de Direitos Humanos da ONU diz ser "análogo à escravidão humana". E essa realidade é apenas uma de várias que, a ano e meio da redefinição dos Objectivos do Milénio (ODM), continua a registar menos progressos do que os desejados, diz a directora do departamento suíço do Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA).

Convidada a participar num debate organizado pelo grupo parlamentar para a População e Desenvolvimento em Portugal, presidido pela deputada Mónica Ferro (PSD), Armitage é optimista na hora de falar da agenda do Cairo, dos ODM e dos progressos alcançados nos últimos 20 anos graças às duas iniciativas.

"A conferência de 1994 [programa do Cairo] foi muito importante porque foi aí que o mundo decidiu colocar os direitos humanos e a igualdade de género no centro do desenvolvimento global", explicou ao i após o debate, ao lado de Catarina Furtado, embaixadora da UNFPA em Portugal. "Foi aí que, em vez de falar sobre controlo populacional e alvos demográficos, o mundo reconheceu que quaisquer políticas de desenvolvimento e população devem centrar-se nos direitos humanos, porque é o que faz mais sentido não só de uma perspectiva humana como do ponto de vista socioeconómico."

Houve, contudo, um problema com a agenda do Cairo. "Na altura os objectivos definidos foram vistos como exclusivamente direccionados para os países em desenvolvimento", uma ideia que foi entretanto abandonada. A agenda política que define os objectivos de desenvolvimento sustentável é hoje "global e perpétua". O que, diz, "é muito importante" numa altura em que as desigualdades sociais, de riqueza e de género estão a subir em flecha. "O facto de se estar a fazer agora a revisão dos 20 anos do programa de acção do Cairo, um ano antes de a comunidade global decidir o próximo enquadramento para o desenvolvimento, significa que as recomendações a ser discutidas este ano podem ser integradas nos objectivos do milénio pós-2015", que serão definidos e anunciados em Setembro desse ano.

Nas duas últimas décadas, lista a canadiana, "fizemos muitos progressos no que toca ao ambiente, assistimos a um decréscimo de quase 50% na mortalidade materna, a um aumento de 15% nos serviços especializados neonatais, a um aumento de 10% na taxa de acesso a métodos, vimos as taxas de aborto decrescer e mais leis [sobre o direito à interrupção voluntária da gravidez]..." O problema é que todos esses avanços "estão hoje em risco de ser inviabilizados pelas crescentes disparidades na riqueza e também no acesso a cuidados de saúde, à educação... Neste momento precisamos de prestar muita atenção às mulheres e às crianças, porque infelizmente não foram alcançados progressos suficientes".

"Não queremos rebuçados" Em pleno debate sobre o pós-2015, os últimos meses têm registado aparentes retrocessos no que toca aos direitos das mulheres. As discussões sobre as desigualdades salariais entre os dois sexos amontoam-se um pouco por todo o mundo; nos Estados Unidos o Partido Republicano enfrenta acusações de "guerra contra o sexo feminino" e está empenhado em lutas antiaborto e em manter fora do Obamacare o acesso a contraceptivos; e aqui ao lado, em Espanha, os conservadores querem regressar à lei dos anos 80 que dita que a interrupção de gravidez só pode ser feita em caso de malformação do feto ou violação.

"Infelizmente os direitos das mulheres continuam a ser fortemente debatidos em todo o mundo, é uma pena dizê-lo mas é a realidade", sublinha Armitage. E apesar do facto de, em vários países, questões como o direito da mulher a ser dona do seu próprio corpo "serem parte das políticas públicas", estes debates perpétuos só mostram que "infelizmente os avanços podem ser facilmente apagados" das agendas nacionais.

É por essa razão que, ao longo deste ano, debates como o da passada sexta-feira em Lisboa estão a ser organizados nos 150 países onde a UNFPA tem escritórios, dos quais Portugal é "um exemplo avant-garde", diz Armitage sob o olhar atento e risonho da embaixadora lusa. "Parece-me que sociedade como um todo está a discutir isto cá, vemos governo, deputados, sociedade civil, figuras reconhecidas como a Catarina, os media, toda a gente a unir-se para falar sobre o pós-2015 e isso, garanto-lhe, é uma coisa que não se vê em todo o lado."

Exemplo disso é a campanha "Continuamos à espera", lançada recentemente por Furtado como embaixadora da UNFPA em Portugal e como presidente da Corações com Coroa, em parceria com a P&D-Factor, a Aspas e a Oikos. "Há bocadinho", diz-nos, "perguntava à Alanna sobre alguns passos que se dão para trás... Eu estou convicta que muitas das vezes isso tem a ver com a falta de informação, acho que não se fala destes assuntos tanto quanto se deveria, e é por isso que decidimos lançar esta campanha, para fazer chegar à opinião pública informação sobre as coisas que não foram feitas especificamente no que diz respeito ao ODM5 e à saúde sexual reprodutiva, portanto as áreas que nos preocupam e onde os avanços não foram tão visíveis. A campanha vem dizer que 800 mulheres por dia morrem vítimas de violência [de género], vem dizer que 1 em cada 16 meninas é forçada a casar antes dos 16..."

Outro assunto no topo da agenda é a mutilação genital feminina, que este ano pareceu encontrar um eco inédito nos meios de comunicação na Europa, onde vivem 500 mil mulheres que já foram vítimas da prática e 180 mil raparigas que correm o mesmo risco.

Uma semana antes do encontro com Armitage em Lisboa, o Reino Unido anunciou os primeiros processos judiciais pelo crime na história do país, um contra o médico Dhanuson Dharmasena por praticar a excisão feminina num hospital londrino, o outro contra Hasan Mohamed por "encorajar intencionalmente" a prática - que, em Fevereiro, passou a ser um crime autónomo em Portugal, com penas de prisão de três a 12 anos para quem praticar e de dois a dez para quem incitar à remoção parcial ou total dos órgãos genitais externos da mulher.

"Apesar de já ser reconhecida como uma violação dos direitos humanos, há muitos pais e mães que acreditam que estão a fazer o melhor pelas suas filhas", aponta Armitage, razão pela qual, no que toca à mutilação genital feminina, os planos de acção passem mais por "mudar as coisas a partir de dentro, porque é necessário que comunidades inteiras alterem as normais sociais juntas." Graças ao Cairo e aos ODM, em 20 anos cerca de 1300 comunidades da África Ocidental e Central aboliram esta prática, mas, segundo dados da UNFPA, tem havido pouco progresso nos países do Norte de África.

É a saúde sexual e reprodutiva a área onde menos avanços se registaram desde 2000, talvez porque o tema não foi incluído à partida nos ODM. "Acho que foi uma das duas grandes falhas no programa", diz a investigadora canadiana. "Felizmente isso foi rectificado, mas essa é talvez uma das razões pelas quais ainda há tanto a fazer nesse âmbito, já que só se tornou num objectivo assumido em 2007, penso eu..." A segunda falha conduz-nos ao início da conversa a três, como num ciclo perfeito.

"Os ODM no que toca à igualdade de género não lidaram com questões estruturais como a violência contra mulheres ou as relações de poder entre sexos e queremos que isso seja um objectivo por si só no pós-2015." Enquanto Alanna cita o exemplo da Suécia - onde, para aumentar a natalidade, a ênfase foi colocada não em incentivos financeiros mas em questões de igualdade de género - Catarina larga um "não queremos rebuçados nem chocolates". Alanna, que é fluente em português, ri-se antes de continuar. "A população na Suécia está a aumentar graças a essa abordagem. Ou melhor, não é tanto que a população esteja a crescer, as mulheres querem é ter mais filhos. A mensagem é precisamente essa: precisamos de igualdade de género, não de incentivos financeiros. A Suécia é um exemplo de como o investimento transforma realmente a sociedade de uma forma que é tão certa quanto economicamente esperta."

Para saber mais sobre a campanha "Continuamos à espera", visite www.facebook.com/continuamosaespera