por Rui Pedro Antunes e Sílvia Freches, in Diário de Notícias
Investigação. Associação de Lares (ALI) estima que em Portugal existam mais de 3000 lares ilegais. Segurança Social diz que número é inferior e intensificou fiscalização. DN descobriu alguns, desde os que são "apenas" clandestinos aos que maltratam idosos e ignoram ordens de encerramento.
Porta fechada à chave, janelas trancadas e persianas corridas. Lá dentro, sete idosos privados de ver o sol, uma delas com Alzheimer e dois acamados. No primeiro andar de uma vivenda de quatro quartos e uma "casa de banho, atulhada de roupa e fraldas sujas", à saída de Loures, a porta só se abre quando a campainha toca quatro vezes seguidas, uma regra que ninguém pode quebrar. Foi desta forma que, segundo a funcionária que denunciou a situação à polícia, funcionou o lar de Ana Paula dos Cepos, desde junho até fevereiro, altura em que quatro senhoras entre os 70 e os 90 anos se revoltaram com os maus tratos, má alimentação e sujidade e foram embora. O destino foi a casa da funcionária.
A Segurança Social (SS) já tinha visitado o 1.º esquerdo do número 20 da Rua José Marques Raso e decretou o "encerramento imediato", que no léxico administrativo significa: tem 30 dias para fechar. Hoje, 65 dias após a SS considerar que o estabelecimento se encontrava a "funcionar com deficiências graves nas condições de instalação, segurança (...) higiene e conforto, representando perigo potencial para os utentes e a sua qualidade de vida", a casa continua com idosos. A própria proprietária confirmou-o sem pudor ao DN.
Esta situação, e várias outras detetadas pela investigação do DN, revela as fragilidades de um problema do qual a Segurança Social desconhece a sua real dimensão. Só no ano passado foram encerrados 89 lares. Mas quantos estarão efetivamente fechados? Afinal quantos idosos estão à mercê da clandestinidade?
O presidente da ALI - Associação de Lares e Casas de Repouso de Idosos, João Ferreira de Almeida, estima que existam em Portugal mais de 3000 lares ilegais, muitos deles clandestinos que "pelos preços que praticam, não podem ter as condições indispensáveis para as necessidades dos idosos". João Almeida diz sentir-se "arrepiado" quando são descobertos lares clandestinos onde "os idosos estão no chão, amarrados ou mal agasalhados".
A Segurança Social tem um lema: "Nenhum caso fica por investigar." Mas isso não tem resolvido o problema. Ao DN, a presidente do Instituto da Segurança Social (ISS), Mariana Ribeiro Ferreira, admite que, "por se tratar de uma realidade ilegal, não é possível saber a sua real dimensão". Sobre as estimativas - como as que são apontadas pela ALI -, a presidente do ISS diz desconhecer se são "próximas da realidade, na medida em que partem da extrapolação de indicadores relacionados com prestação de cuidados a idosos". Mariana Ribeiro Ferreira considera os números da ALI exagerados, pois os "processos trabalhados pelo ISS, em sede de ações de fiscalização, apontam no sentido de um número inferior".
"Passavam fome e não podiam tomar banho"
O DN foi para a estrada tentar ver como era a realidade. Não foi preciso ir muito longe de Lisboa para encontrar o primeiro caso, em Loures. O tal que hoje continua aberto. Isabel Ferreira, que trabalhou no lar durante um mês, conta como eram tratados os idosos: "Passavam fome, davam-lhes uma peça de fruta, uma sopa que parecia água suja. Raramente podiam tomar banho. As fraldas usadas eram amontoadas na casa de banho e a banheira estava cheia de roupa suja. Os acamados, um casal, eram deixados na cama dias seguidos. Uma senhora, a Rosinha, deitava-se com a mesma roupa com que andava durante o dia, dias seguidos. Ela [a dona da casa] esmagava os medicamentos e enfiava-os na boca à bruta com uma seringa." E há mais: "À outra senhora, à Esmeralda, foram tirados os medicamentos que lhe faziam urinar para não ter de ir à casa de banho de noite, e, como tinha dificuldades em andar, arrastavam-na pelo chão para ir mais depressa. Um dia cheguei a casa à tarde e estavam sozinhos, sem comer. Fiquei revoltada e decidi ir embora. Aquilo era desumano."
Desde que foi dada a ordem de encerramento, já houve mais peripécias, mas a casa continuou com idosos. A presença da PSP de Loures, na sequência da queixa de Isabel Ferreira, aconteceu a meio da tarde do dia 24 desse mês. Paula dos Cepos mostrou a carta da Segurança Social e a polícia nada pôde fazer. Duas técnicas da SS voltaram ao local a 27 de março, mas a porta não se abriu.
"É preciso tocar à campainha quatro vezes, é o código. A porta está sempre fechada à chave e as pessoas não têm autorização para a abrir, ninguém pode sair, nem mesmo apanhar ar nas varandas", conta Isabel Ferreira. A única senhora a quem foi dada autorização para se sentar na varanda, Maria Helena Leitão, de 77 anos, foi tapada por um lençol.
Foi esta mesma idosa que o DN encontrou no dia em que visitou a casa de Loures, no âmbito de uma ronda a instalações que já tinham recebido ordem de encerramento. Passavam alguns minutos das quatro da tarde quando a porta da vivenda verde se abriu para sair uma senhora, nervosa, segurando uma mala de viagem, vários sacos de plástico com livros e folhas soltas, um par de sapatos, um cobertor, um casaco de peles e uma pequena estátua de Nossa Senhora de Fátima.
"Vou embora daqui, fui expulsa, mas também não quero ficar", diz em voz alta na direção das três vizinhas que estavam no portão. Dentro da habitação ouvem-se gritos. Percebe-se que lhe é dada ordem para Maria Helena se despachar e ir embora. A voz e as mãos tremem. Pede à vizinha que lhe chame um táxi. "Tenho pena de quem cá fica. Está a ver aquele quarto ali? Estão lá dois velhos acamados que não veem a luz do dia há meses, há uma lâmpada acesa dia e noite, estão brancos como cera!" As frases saem soltas, os desabafos misturados como se quisesse contar tudo de uma só vez.
Explica que foi para ali porque se sentia só e não conseguia vaga em IPSS. "Dizem-me que não há lugar, estou inscrita na Câmara de Loures, mas é muito difícil... Só queria uma cama para mim e passar o que falta dos meus dias com dignidade", diz Maria Helena.
"Quando para cá vim éramos sete, eu fiquei num quarto com três camas. Era tudo muito apertado. Pelo dinheiro que cobram, a alimentação deveria ser outra. O almoço é os restos da comida deles e ao jantar só nos davam uma sopa de água suja e meia carcaça."
Cada hóspede paga entre 350 e 600 euros, dependendo do estado de saúde e dos medicamentos. Maria Helena recebe 400 euros de reforma e era esse montante que pagava.
A bagageira do táxi ficou cheia. Maria Helena despediu-se das vizinhas com quem raramente se cruzou na sua breve estada em Loures e dirigiu-se para casa de Isabel Ferreira, a poucos quilómetros dali, no Zambujal.
Ao DN, Ana Paula dos Cepos desmente as acusações, dizendo que a sua casa "sempre foi confortável" e que as acusações das suas antigas hóspedes e da sua antiga empregada são "a mais pura das mentiras". Quanto a Maria Helena, diz que "devia estar no Júlio de Matos" e que "até tinha um tratamento VIP, pois tomava o pequeno-almoço na cama todos os dias". Ana Paula dos Cepos garante que na sua casa "nunca ninguém passou fome"e não compreende as queixas: "Sempre lhes dei tudo do bom e do melhor. Cheguei a ir comprar frangos assados com batatas para eles." Ana Paula dos Cepos admite que - apesar da indicação de encerramento da SS - continua a ter um casal de idosos na sua casa, pois estes "não estão interessados em sair".
Idosos saíram de um lar ilegal para outro
Na vivenda Ferreira, onde o saneamento e a água canalizada e o alcatrão nas estradas ainda não chegaram, vivem já Rosinha e Maria Esmeralda, vindas da casa de Paula dos Cepos. Maria Helena é a terceira hóspede, numa casa de difícil acesso, com uma grande área, vários quartos, mas que não está preparada para as exigências básicas dos idosos, conforme constatou o DN. "Aqui não há luxos, mas não lhes falta atenção, boa comida e roupa lavada", diz Isabel, que também tem a seu cargo um tio adulto com problemas mentais e que espera há 10 anos por uma vaga num lar da junta ou de uma IPSS.
Maria Esmeralda, antiga farmacêutica no Hospital de São José, foi a primeira a sair da vivenda de Loures. "Foram tempos para esquecer", desabafa, ao mesmo tempo que mostra umas manchas negras nos tornozelos e a mão esquerda que tem dificuldades em mexer porque lhe "partiram o braço", segundo confessou. "Eles, a Paula e o marido, puxavam-me pelas pernas ou pelos braços e ia assim a rastejar até à casa de banho. Depois sentavam-me num cadeirão e ali ficava o dia todo."
Os relatos de Esmeralda são confirmados por Maria Helena, sempre com um ar muito triste e depressivo. "Agora somos bem tratadas, mas não foi esta a situação que idealizei para a minha velhice. Queria uma cama minha, um ambiente tranquilo para poder passar o resto dos meus dias com dignidade."
Neste momento, a casa só tem três idosas, por isso não configura uma prioridade para a Segurança Social. Uma casa só é considerada lar a partir de quatro idosos. Só aí é inspecionada. João Ferreira de Almeida alerta para o perigo deste "vazio legal", uma vez que estas casas com três idosos - no seu entender - extravasam a figura do "acolhimento familiar" prevista na lei. O presidente da ALI acusa o ISS de "ignorar o problema". Ao DN, Mariana Ribeiro Ferreira considerou estas situações de "prestação de serviços da esfera privada."
Em 2013 foram realizadas 2073 ações pelo ISS, tendo 65% incidido sobre a área do apoio a idosos. A atividade de fiscalização a equipamentos lucrativos - em particular os que prosseguem respostas ilegais - levou a 94 deliberações de encerramento, 89 a lares e cinco a creches. Do total de ações, 967 incidiram sobre estabelecimentos lucrativos e foram identificadas situações irregulares que determinaram a elaboração de 501 autos de contraordenação, na sua grande maioria por infrações registadas em equipamentos relativos a respostas sociais, com maior incidência na área de idosos (363) e de crianças (136).
Mariana Ribeiro Ferreira garante ao DN que "todas as denúncias recebidas são analisadas, sendo alvo de intervenção por parte da Segurança Social quando se revelam consistentes". A presidente do ISS lembra ainda que "nos dois últimos anos a fiscalização ao sector lucrativo (em que os ilegais se inserem) atingiu cerca de 50% da atividade e, no caso de Lisboa e Vale do Tejo, mais de 80%, o que revela a importância atribuída a esta área".
Apesar disso, foi nesta área que o DN se deparou com várias situações. Desde lares que ignoram as notificações de encerramento da Segurança Social, a lares que mudaram de nome e continuaram a funcionar no mesmo sítio (Carcavelos), a outros que fecharam mas se mudaram para umas ruas abaixo (Odivelas). E até, um pouco mais longe, um lar clandestino, em Almeirim.
Quando a "dona Zinha" chega de Audi
Há anos que ali funciona um lar de idosos clandestino. A casa da "dona Zinha" - como é conhecida nas redondezas - já recebeu a visita da Segurança Social várias vezes, mas continua a funcionar. Contactada pelo DN, Zinha garante que vai fechar no final do mês, porque "já está cansada". "Só vou ficar mais um mês com estes idosos [não revelou quantos], agora estou a tentar arranjar-lhes colocação". Zinha, 60 anos, falou com o DN por telefone. No lar a porta não foi aberta. Um homem limitou-se a responder ao toque da campainha para dizer: "Não está cá. Quando virem um Audi descapotável é porque é ela." Se o carro de luxo é sinal de riqueza, Zinha também não esconde de onde ela vem, admitindo que há anos que trata de idosos. Clandestinamente. Lares privados na zona receberam uma queixa de que há um anexo na casa de Zinha com utentes deficientes. O DN não pôde entrar para confirmar. Ficam as certezas das vizinhas, que também veem tudo do lado de cá do muro: "Ela lá dentro só tem senhoras. São todas bem tratadas."