1.6.20

Quem garante a retaguarda das mulheres na frente do combate à covid-19?

Ana Cristina Pereira (texto) e Paulo Pimenta (fotografia), in Público on-line

A desigualdade persiste. Na linha da frente houve mulheres que tiveram de continuar a organizar a lida da casa ou de arranjar substituta, mas também mulheres que contaram com os companheiros para assegurar os cuidados dos filhos e as tarefas domésticas. Sairão algumas famílias desta pandemia menos assimétricas? Estará a sociedade pronta para valorizar mais as profissões associadas à prestação de cuidados?

Georgina Costa trabalhara dez anos nos cuidados intensivos do Hospital de Gaia, mas já estava há 20 no bloco operatório. Perante a crise de saúde pública, o bloco transformara-se numa unidade de cuidados intensivos. De repente, tinha de se enfiar num fato, de usar cobre-botas, luvas, touca, “máscara sufocante”, óculos ou viseira. E de cuidar outra vez de gente entre a vida e a morte. “Será que ainda sei lidar com estes doentes?”

Não enjeitando o seu lugar na linha da frente, a enfermeira tinha de garantir a retaguarda. Não queria apanhar o vírus e levá-lo para casa, passá-lo ao marido, que trabalha numa fábrica, ou ao filho, estudante universitário. O marido é diabético, o que o punha em risco de desenvolver a doença. Pensou: “Primeiro, preciso de proteger os meus. Segundo, preciso de um tempo para mim. Lido menos bem com incerteza. Gosto de ter as coisas sob controlo e isto não estava sob o meu controlo.” Não estava no dela, nem no de ninguém. O SARS-CoV-2 (vírus da síndrome respiratória aguda grave — ​coronavírus 2) propagava-se depressa pelo planeta. Mais e mais pessoas desenvolviam covid-19. E mais e mais morriam.

O marido ainda esboçou um plano de contingência doméstico: “Tu vais trabalhar, entras em casa, vais para o quarto. Ficas com o quarto e a casa de banho só para ti. Eu durmo no sofá da sala.” Georgina recusou. “Não vou ficar fechada no quarto. A gente está fechada em casa e começa a ver as coisas que tem de fazer. Não dá.”

As mulheres representam três quartos dos profissionais de saúde e três quartos dos profissionais de apoio social
Ali, como noutras partes do país, proprietários de unidades hoteleiras e alojamentos locais ofereceram-se para acolher profissionais de saúde. Georgina meteu umas peças de roupa num saco e instalou-se num hotel. “Apesar do sacrifício de deixar os meus, era um alívio chegar ao quarto e estar à vontade. Entrava, deixava os sapatos à porta, tomava um banho e não tinha de estar a desinfectar a casa de banho, a pensar onde punha as mãos.” Tinha licença para descansar o corpo e sossegar o espírito. “Estava sozinha. Era eu. Podia pensar em formas de lidar com a situação.”

Pediu a uma amiga médica que lhe indicasse um calmante. Uma colega, alojada no mesmo hotel, arranjou-lhe os comprimidos que a pandemia já levara a esgotar na farmácia. Nunca esteve despreocupada. Para lá do cansaço e da saudade, debatia-se com a dificuldade de gerir a casa à distância. Todas as noites, a família juntava-se no Houseparty, uma aplicação que permite conversas em grupo. “Como foi o dia? O que fizeste hoje? O que há ainda no frigorífico? O que vão comer amanhã?”

Toda a vida de casada teve alguém para tratar da casa, mas nunca se livrou da carga mental, isto é, do trabalho de prever, planificar, decidir o que tem de ser feito, quando, em que moldes, e de algum trabalho operacional. “Mesmo que o meu marido fizesse as compras, eu fazia a lista.” E cozinhava.

Antes de se instalar no hotel, dispensara a empregada para que ela se pudesse proteger, e enfiara-se três dias na cozinha. Enchera o frigorífico e a arca com arroz de pato, bacalhau com natas, lasanha, rolo de carne e outras refeições. “Aquilo dava para 15 dias.” Volvidos 15 dias, a crise de saúde pública persistia. “Continuei a fazer compras online e a mandá-las para casa. Às vezes, perguntava ao meu marido o que faltava, saía do hospital, passava no hipermercado e deixava à porta.” Nas reuniões de família, dava instruções sobre o quê e como cozinhar.

Houve um dia que não resistiu: o aniversário. Foi almoçar com o marido e o filho. Aproveitou para “limpar a casa de cima a baixo”. No dia seguinte, ao regressar ao hospital, sentiu-se febril. Temeu o pior. Ligou para a medicina no trabalho. Com o teste à covid-19 agendado, refugiou-se no hotel. “Se for positivo, vens para casa. Não vais ficar sozinha”, disse-lhe o marido. Accionariam o plano de contingência doméstico. “Fiz o teste na sexta-feira. Recebi o resultado no sábado.” Negativo. Uff. “Vem para casa”, pediu-lhe o marido. Foi. “Só ia trabalhar na terça e precisava daquele carinho, daquela presença. Aquelas 24 horas foram muito complicadas. Chorei muito...” Já havia duas centenas de enfermeiros infectados.
Quando tornou a casa de vez, ao fim de quase dois meses, a enfermeira, de 52 anos, ia com uma certa esperança. O filho, de 22, aprendeu algo. “Aprendeu o tempo das coisas no forno, pelo menos. E como as coisas mais ou menos se fazem.” O marido também. “Deu para voltar a acreditar que sabe fazer alguma coisa na cozinha. Ele já não acreditava.” Quando se casaram, ele participava. “Com o passar dos anos, eu fui fazendo e ele foi deixando de fazer. Se eu sair tarde e ele estiver em casa, ele faz. Se não, ele espera que eu chegue.” Pergunta-se como será nas outras casas. “As mulheres estão em maioria na linha da frente. Além de estarem mais expostas ao vírus, continuam a fazer o que faziam?”

Violência doméstica: “Se ocorrer alguma coisa, estamos aqui”
A assimetria do trabalho não pago
Os cálculos do Instituto Europeu da Igualdade de Género confirmam-no: as mulheres representam três quartos dos profissionais de saúde e três quartos dos profissionais de apoio social. São 93% dos educadores de infância e ajudantes de acção socioeducativa, 86% dos ajudantes de acção directa, 95% dos trabalhadores de limpeza e empregadas domésticas. Entre os profissionais a desempenhar tarefas essenciais que requerem contacto presencial estão também os caixas de supermercado, 82% dos quais mulheres.

Rosa Monteiro Miguel Manso
“Acho bom sermos optimistas. Esta fase também foi de experimentação social de alguma maneira”, comenta a secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, Rosa Monteiro. “Há dinâmicas sociais que mudaram, mas não podemos analisar o todo pelo nosso universo referencial.” Não cai na tentação de tomar a sua bolha de classe média, com profícua partilha nas redes sociais de fotografias com pais e filhos a fazer pão, bolos e outras delícias, pelo todo. Prefere aguardar pelos resultados de estudos financiados pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia sobre o impacto de género da pandemia, cuja chamada termina na terça-feira e que incluirão a prestação de cuidados informais, o desempenho de tarefas domésticas e a vida familiar.

Há uns anos, Sara Falcão Casaca, professora do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa, perguntou-se se o teletrabalho poderia “estimular maior igualdade na distribuição do trabalho pago (profissional) e não pago (relativo à casa e ao cuidar)”. Fez um estudo exploratório. Os homens evocavam a possibilidade de aumentar a concentração e a produtividade e fechavam-se numa divisão da casa a trabalhar. Já as mulheres evocavam a necessidade de conciliação e alternavam o teletrabalho com as tarefas domésticas.
58 mil
Há 58 mil mulheres e 12 mil homens inscritos na Ordem de Enfermeiros; quase 20 mil mulheres e pouco mais de três mil homens na Ordem dos Psicólogos; mais de 28 mil mulheres e 23 mil homens na Ordem dos Médicos
Os homens que vivem em casal têm aumentado a sua participação, mas as mulheres continuam a fazer, em média, mais uma hora e meia por dia de trabalho não pago. “A partir de estudos já feitos noutros países, sabemos que a carga de trabalho doméstico tem aumentado”, salienta aquela investigadora. “Temos tido muitos testemunhos de mulheres mães que, de repente, ficaram sem as estruturas de cuidados formais e sem a retaguarda informal — os avôs e as avós. Além do trabalho doméstico redobrado, porque havia muitas refeições que não eram feitas dentro de casa, tinham de dar apoio escolar aos filhos.” E tudo isso pode ser ainda mais pesado para quem não tem opção de teletrabalho ou licença de apoio à família.

O recurso a outra mulher
A solução clássica de uma mulher que tem de sair de casa para trabalhar é socorrer-se de outra mulher. Ana Sofia Fernandes, presidente da Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres, não hesita: “Nas famílias com filhas adolescentes, acabam por ser elas a ficar com o trabalho em casa.”

Carina Pedrosa, ajudante de acção directa no lar da Santa Casa da Misericórdia de Paços de Ferreira, valeu-se da filha de 18 anos. “Já tinha comentado que me apertava o coração entrar e sair. Ficava naquela ansiedade. Será que tenho? Será que não tenho?” Quando a provedora falou em dividir a equipa, trabalhar em espelho, fazendo turnos de 15 dias, conversou com o marido, que é da GNR, e com a filha, empenhada em melhorar as notas de Matemática e Biologia para entrar no curso de Ciências Farmacêuticas. “Ela começou a chorar, mas disse logo que apoiava, que levava o barco. Se ela não estivesse em casa, ia ser muito complicado.”

O “barco” inclui o irmão, de 12 anos, com um défice de atenção e dislexia. Pode ser o cabo dos trabalhos orientar uma criança que num instante fica desatenta, inquieta. O rapaz também ficou ansioso: “Ó mãe, vais e já não me podes ajudar.” E Carina tentou tranquilizá-lo: “Qualquer coisa que precises, ligas à mãe.” Mantém-se o mais perto possível. “Todos os dias faço videochamadas. Duas ou três vezes por dia, acabo por o ver e à mais velha.”

Carina Pedrosa, ajudante de acção directa no lar da Santa Casa da Misericórdia de Paços de Ferreira. Carina socorreu-se da filha mais velha para algumas tarefas em casa

O segundo turno custou-lhe ainda mais do que o primeiro. “Ele estava um bocadinho mais em baixo.” Compreende que tem de ser. “Ó mãe, os velhinhos precisam de ti.” Compreende, mas dói-lhe. “O meu marido e a minha filha tentam entretê-lo, impedir que vá abaixo. A batalha foi bastante. Não queremos que ele vá abaixo. Se ele for abaixo, teremos muito trabalho para fazer...”

No início, até os idosos ficaram confusos. “Estiveste aqui ontem. Ainda estás aqui hoje. Não vais para casa?” Depois, perceberam. “Sinto que estou a desempenhar um papel importante”, revela a mulher de 37 anos. “Temos de salvaguardar os postos de trabalho, mas este sacrifício de deixar a nossa família é por eles. São pessoas debilitadas. Também queremos que as famílias fiquem descansadas.”

Faltam cuidados formais para idosos, pessoas com deficiência, crianças, sobretudo nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, as licenças de parentalidade não são paritárias e as escolas ainda não ensinam a fazer a lida, mas o país está a fazer um caminho. A mudança nota-se mais nos cuidados prestados às crianças. A masculinidade cuidadora dissemina-se. “É mais no tempo orientado para a sociabilidade, o entreter”, esclarece Sara Falcão Casaca. Em tempo de pandemia, “é provável que esse apoio no cuidado tenha sido mais dado do que nas actividades domésticas”.

A igualdade entre mulheres e homens no centro da recuperação europeia
O esforço da conciliação
O exemplo de Liliana Martins, supervisora da Iberlim, a empresa que presta serviço de limpeza ao Metro do Porto, é paradigmático de uma mudança ainda em curso. O companheiro, segurança noutra empresa ao serviço do Metro, pediu licença de apoio à família e ficou em casa a cuidar da filha, de 13 meses, e, grande parte do tempo, do enteado, de 14 anos. “Tinha de ser ele”, afirma ela. “Eu não poderia abandonar a equipa na situação que era. Que moral tinha para falar hoje se não estivesse sempre na frente da batalha a dar o exemplo?”

Os primeiros dias foram uma loucura. Teve de se montar um reforço contínuo de limpezas. Houve um dia de protesto por escassez de material de protecção individual. No período de confinamento, aumentaram as faltas. Liliana passava ainda mais tempo do que é costume ao telefone para cobrir buracos. Socorria-se de trabalhadoras assíduas, como Manuela Fonseca.

Manuela Fonseca, trabalhadora de limpezas no Metro do Porto
Manuela tem 65 anos e está sempre pronta para tapar as faltas das outras. “A vida particular está arrumada”, diz ela. O filho está criado, é engenheiro, trabalha numa grande empresa. “Não tenho ninguém em casa. Só o meu estômago reclama.” Ou quase. Tem um gato e duas cadelas. Vai levá-las a caminhar e está pronta para voltar. “Vivo para mim. E para o trabalho. Concílio muito bem.”

Para Liliana, foi toda uma outra experiência. “Foi a maior ginástica da minha vida! Entrava em casa e ia directa ao pátio. Tirava a roupa toda. Desinfectava os sapatos, metia a roupa para lavar, tomava banho.” Havendo um caso suspeito na equipa, pode ter de fazer quarentena. Fez uma durante quatro dias. “Quando se descobriu, já tinham passado dez dias. Era o meu encarregado. Já trabalhava comigo há alguns anos. Morreu... Foi bastante difícil... Ainda está a ser...”

Durante oito anos, esta mulher de 33 anos andou a limpar estações de metro, como as mulheres que agora orienta. “Eu sempre trabalhei muito, muitas horas. Eu entrava numa senhora às 8h30/9h, saía às 14h30, vinha para o metro às 15h e só saía às 23h30. Fazia um part-time lá e aqui trabalhava a tempo inteiro.” Se aparecessem horas extras nas folgas, agarrava-as.
O filho mais velho tem autismo. Liliana queria garantir-lhe terapia da fala, terapia ocupacional, tudo o que pudesse ajudá-lo. “Eu tinha de redobrar os cuidados na tentativa para que o meu filho fosse o mais independente possível. Perdi uma parte da vida dele, mas tive de optar. Ou tomava conta dele ou punha ao cuidado do pai e trabalhava para lhe dar aquilo que era necessário. Não me arrependo. O meu filho é feliz, autónomo.”

Liliana Martins, supervisora da Iberlim, a empresa que presta serviço de limpeza ao Metro do Porto

O casamento não sobreviveu àquele corre-corre. “Não o via, basicamente. Havia alturas em que a gente se via nem 30 minutos. Ele trabalha num hipermercado. Ia buscar o filho, dava-lhe de comer, dava-lhe banho. Quando eu chegava, muitas vezes já estavam a dormir.” Quando a convidaram para ser supervisora, não vacilou. “Ia ter um salário melhor. E ia ganhar qualidade de vida. Comecei a ter tempo para tomar um café, ir às compras.” Refez a vida amorosa.

Descreve o novo companheiro como “um homem superautónomo”. Muda a fralda à filha, veste-a, dá-lhe comida, brinca com ela. “Só não lhe dá banho.” Liliana trata disso. E de muitas tarefas domésticas. “O que faço é à noite, quando a minha filha já está a dormir, e ao fim-de-semana. Depois do jantar é lavar a louça, limpar a cozinha, dar a ferro — se tiver de dar. Nunca me deito cedo. Enquanto ponho a roupa a lavar, volto ao computador, trato de assuntos do trabalho, vou estender a roupa. Ando nisto: a trabalhar e a fazer as necessidades da casa.”

Persiste uma certa naturalização. Muitas mulheres sentem que têm maior responsabilidade com a casa e com os filhos. Mas os casais delineiam as suas estratégias. A questão económica tende a ser central. Normalmente, quem ganha menos faz mais cedências profissionais. E quem ganha menos na maior parte das vezes é a mulher. “Há um conjunto de desigualdades que se vão cruzando”, torna Sara Falcão Casaca. “Nos casais mais jovens e/ou nos casais com mais qualificações e maiores rendimentos tende a haver uma maior partilha.”

(Des)ilusões: teletrabalho, qualidade de vida e igualdade de género
A paridade
Embora não faça regra, a paridade existe. Marta Sousa, especialista em medicina interna no Hospital de Vila Nova de Gaia, e o marido, pneumologista no Hospital de Santo António, no Porto, decidiram que ela ficaria o primeiro mês com o filho de ambos, de cinco anos, e ele o segundo. “Havia muita coisa para preparar, principalmente com as funções que o meu marido tem”, diz a médica, de 43 anos. “Estávamos todos à espera que houvesse uma explosão. Não foi uma explosão. Foi controlado, apesar de tudo.” No segundo mês, como combinado, inverteram os papéis. Marta Sousa apresentou-se ao serviço no hospital e registou-se num hotel ali perto.

“Esta decisão foi muito difícil”, admite. “O meu filho sofreu pela distância. A certa altura perguntou-me se todos os meninos estavam longe do pai ou da mãe. E eu expliquei-lhe que os filhos dos profissionais de saúde passaram todos um bocadinho por isso.” Só voltou a estar com o pai e a mãe a partir de 10 de Maio. “Tem de haver um equilíbrio emocional além do risco. Estava a ser mais prejudicial estarmos separados.”

Marta Sousa, especialista em medicina interna no Hospital de Vila Nova de Gaia
Como continua a trabalhar com doentes com covid-19, mantém “imensas precauções”. Antes de sair do hospital toma um banho e muda de roupa. Mal entra em casa, no Porto, torna a tomar um banho e a trocar de roupa. “É difícil explicar ao meu filho que estou em casa, o que é muito bom, mas com distância. Tenho de andar de máscara.”
A psicóloga Rute Ribeiro Cerqueira, de 40 anos, anda com grandes precauções desde que voltou ao trabalho, no Centro de Apoio Psicológico e Intervenção em Crise do Instituto Nacional de Emergência Médica. Ainda está a amamentar. “Quando foi instaurado o estado de emergência, estava a gozar férias do ano passado. Fui chamada ao serviço no dia 1 de Abril. Não me fez confusão alguma. Em casa, as coisas estavam muito organizadas.”

O marido, que é comercial, ficou com o bebé de seis meses e o rapaz de nove anos. Sem drama. “Aqui em casa nunca houve aquele papel de o homem faz isto e mulher faz aquilo. O que há para fazer é para fazer. Agora que voltei a trabalhar, ele fica com os meninos e faz as tarefas — pôr roupa a lavar, pôr roupa a secar, tirar do estendal, cozinhar. Sempre trabalhei por turnos. Cada um faz o que é preciso fazer e fá-lo de bom grado. Quando estou mais em casa, faço mais eu. Quando está mais ele em casa, faz mais ele. Agora é mais difícil fazer as tarefas com um bebé, mas não deixam de ser feitas.”

A casa é quase um santuário. O bebé é “muito sossegadinho”. Dia sim, dia não, Rute trabalha em casa. Em casa, pode, por exemplo, dar apoio a outros profissionais. Quando está no Centro de Orientação de Doentes Urgentes, lida com situações de grande desespero. “Passa muito por crises de ansiedade, patologia agudizada, intenções de suicídio. O que eu noto é que os problemas se agudizam com o confinamento, o isolamento, o medo.”

O homem doméstico
Paula Leite teve medo. “O meu sistema imunitário é frágil. Cheguei a pensar ficar em casa, mas pensei que era meu dever trabalhar, dar o meu contributo à minha comunidade. Também precisava de trabalhar. Está tudo em causa nesta pandemia. A nossa segurança em termos de saúde e em termos monetários.” Trabalha na caixa de uma loja do Pingo Doce — grata por lhe terem dado uma oportunidade de mostrar o seu valor, apesar de ter perdido uma perna num acidente de carro.

Toma todas as precauções. “Não levo o carro. Não quero ir para a garagem e estar a tocar no elevador. Não vou comer à cantina. Só estou na caixa a trabalhar.” O companheiro prepara o almoço, vai buscá-la e vai levá-la. “Não corro riscos desnecessários. Já me convenci. Este ano nem para a praia vou. Prefiro saber que vou sair disto viva. Eu e os meus.”

Nas primeiras semanas, quando ainda não era obrigatório usar máscara, esta mulher de 49 anos afligia-se com os clientes idosos que volta e meia lhe apareciam à frente, alheios à necessidade de manter distância de segurança, apesar do risco. “Uns vinham todos os dias. Alguns, três vezes ao dia! Ralhava com eles.” “Ó menina, tenho de sair de casa, tenho de ver gente”, dizia-lhe um. “O que vou ficar em casa a fazer sozinha?”, perguntava-lhe outra.

O pai, de 76 anos, também resistiu à ordem de confinamento. Vive sozinho. Paula, o companheiro e o filho dão-lhe apoio. “Ele vinha aqui jantar às terças e quintas e almoçar aos domingos. Tive de conversar com ele. Disse-lhe que íamos ter de ficar afastados durante um tempo. Não sabíamos quanto tempo. Mas que ele ia ter cuidado. Demorei uns três dias a convencê-lo. Todos os dias lhe ligava e o apanhava na rua. Ouvia os carros. ‘Ai, só fui buscar pão!’ ‘Não podes fazer isso. Este vírus é perigoso. Pode estar em qualquer lado.’”

As tarefas lá em casa estão bem divididas. Às quartas-feiras, o companheiro faz as compras para todos e às quintas o filho entrega as compras ao avô. Nas folgas, Paula senta-se na máquina de costura a fazer máscaras. Horroriza-a a ideia de usar máscaras descartáveis. “É muito lixo!”

Não tem de se preocupar com a lida. O companheiro sempre fez tudo, menos passar a ferro. “Inicialmente tive de aprender a lidar com isso”, confessa. “Era aquele pensamento mais antigo de que os homens é que têm de sair de casa para trabalhar.” Não conhecia outro homem doméstico. “Um dia, conversei com o meu filho sobre isso e ele abriu-me os olhos. ‘Ó mãe, e se fosses tu a ficar em casa? A igualdade é isto mesmo. O Tó fica em casa e faz as coisas da casa.’ Mudei a minha forma de pensar. Cada um tem as suas tarefas. Ele trabalha em casa, mas trabalha muito. Há sempre que fazer.” Além da casa, tem de responder a quem pede ajuda à Associação Nacional de Amputados, que ambos fundaram e dirigem.

A Cidadania e a Igualdade encomendou um estudo sobre o valor económico do trabalho doméstico e familiar. Há várias tentativas de estudar isso, frisa Rosa Monteiro. “Uma das formas de o contabilizar é pensar no equivalente. Quanto custaria comprar as refeições fora? Quanto custaria mandar as roupas para a lavandaria Quanto custaria contratar serviços profissionais para limpar a casa?”

A economia do cuidado
Não é por acaso que as profissões associadas ao cuidado são tão feminizadas. “Considera-se que o trabalho realizado é uma extensão do trabalho doméstico”, esclarece Sara Falcão Casaca. “Há aquela ideia de que são competências quase inatas. Quando na verdade são áreas exigentes, que podem ser objecto de qualificação.”

Na opinião de Rosa Monteiro, “isto é uma oportunidade de as pessoas pensarem de forma muito séria no que são serviços essenciais. Uma das origens da diferença salarial entre homens e mulheres é a segregação profissional. Os sectores feminizados são os mais mal pagos. Temos de os valorizar. A economia tem de o valorizar. Isso passa por melhorar a retribuição.”

“É essa a grande esperança desta crise que está e que vai ser muito profunda do ponto de vista económico”, corrobora Sara Falcão Casaca.“Ficaria espantada se isto não servisse para um abrir de olhos”, achega Ana Sofia Fernandes. "É altura de repensar o que entendemos por salário igual para trabalho de valor igual. Uma dignificação destas profissões pode ser útil para quebrar os estereótipos de género. Serão áreas mais apetecíveis para os homens. Quanto menos feminizada uma profissão, mas valorizada em termos salariais.”

Rute lida com situações de grande desespero: “Passa muito por crises de ansiedade, patologia agudizada, intenções de suicídio. O que eu noto é que os problemas se agudizam com o confinamento, o isolamento, o medo”
Aquela dirigente associativa subscreveu a petição “Half of it”, dirigida à presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, ao Conselho Europeu e ao Parlamento Europeu, a exigir serviços de prestação de cuidados orientados para as várias fases do ciclo de vida: um Pacto do Cuidado para a Europa. E um “projecto europeu assente em estatísticas desagregadas por sexo sobre trabalho remunerado e não remunerado para um novo cálculo do PIB”.

O plano de investimento para relançar e modernizar a economia europeia, apresentado na quarta-feira, está condicionado: o financiamento tem de ser usado em investimentos que estão relacionados com as metas verdes (redução de emissões de gases de efeito de estufa até 2030 e neutralidade climática até 2050), promovam a competitividade da indústria e a transição da economia para o digital. O digital e a energia são “sectores fundamentais, mas masculinizados”, recorda Ana Sofia Fernandes. “Sem medidas adicionais, não oferecerá empregos às mulheres. Um pacote de investimento na chamada ‘economia do cuidado’ seria essencial.” Teria “um potencial de criação de emprego muito grande em sociedades que estão a envelhecer”. E facilitaria a conciliação entre vida profissional, familiar e pessoal. Na União Europeia, há 7,7 milhões de mulheres e meio milhão de homens fora do mercado de trabalho para cuidar de alguém. E nove milhões de mulheres e 0,6 milhões de homens a trabalhar a tempo parcial por causa disso​.

Um novo medo avança, silencioso. “Não sabemos como será o pós-covid, mas sabemos que em matéria de emprego o impacto será diferenciado”, diz a secretária de Estado. O Instituto Europeu para a Igualdade de Género já avisou que a nova crise pode ser devastadora em profissões dominadas por mulheres, como tripulantes de aviões, operadores turísticos, assistentes de vendas, trabalhadoras das limpezas, cabeleireiros, manicuras. Os subscritores da petição reclamam metade do “fundo covid-19” para as mulheres, o que implica dados segregados por sexo, estudos de impacto de género e orçamentos sensíveis ao género.