29.5.20

Portugal com direito a receber 19 milhões por dia para recuperar da crise

Rita Siza Bruxelas, in Público on-line

Envelope financeiro nacional pode atingir 48,5 mil milhões de euros, somando as subvenções do próximo orçamento comunitário e do instrumento de recuperação “Próxima Geração UE”. É a maior dotação de sempre: em sete anos, país pode receber o equivalente a metade do total que já foi transferido de Bruxelas desde a adesão.

Se o pacote global para a recuperação e relançamento da economia europeia desenhado pela Comissão Europeia for aprovado tal qual foi apresentado, Portugal terá direito a um “rendimento mínimo garantido” de 19 milhões de euros por dia vindos de Bruxelas, a partir de Janeiro de 2021 e até ao final de 2027.

O país poderá beneficiar de um envelope financeiro global de 48,5 mil milhões de euros em subvenções, quando somados os valores das transferências ao abrigo do próximo quadro financeiro plurianual (QFP) e do futuro instrumento “Próxima Geração UE”, o ambicioso programa de recuperação que o executivo pretende criar, no valor de 750 mil milhões de euros, para suportar os investimentos e reformas necessárias para ultrapassar a crise provocada pela pandemia do novo coronavírus.

E este não é ainda um valor fechado, uma vez que tanto no âmbito dos programas competitivos de gestão centralizada do orçamento comunitário, como na estrutura do novo instrumento de recuperação e resiliência da UE, o país ainda pode ir buscar mais recursos através de empréstimos em condições favoráveis — só no novo mecanismo que financia a aceleração da retoma económica, estão disponíveis à partida mais 10 mil milhões de euros.

A confirmarem-se os números previstos tanto na proposta revista pela Comissão para o próximo orçamento plurianual, onde o envelope nacional se mantém nos 33 mil milhões de euros, como na tabela de pré-alocação das verbas do novo instrumento de recuperação, onde são atribuídos cerca de 26 mil milhões a Portugal, será a maior dotação de sempre. Desde a adesão de Portugal à então Comunidade Económica Europeia, em 1986, o país recebeu em números redondos 100 mil milhões de euros a fundo perdido (transferências directas) de Bruxelas. Assim, poderá agora receber em sete anos cerca de metade do total dos últimos 34 anos.

Dificilmente a proposta da Comissão Europeia será aprovada sem alterações. Já se sabe que as negociações no Conselho Europeu vão ser difíceis, dadas as diferenças políticas profundas entre os países do Norte e do Sul, tanto em relação ao valor e à abrangência do quadro financeiro plurianual, como ao rácio previsto para a distribuição dos 750 mil milhões de euros do “Próxima Geração UE” (500 mil milhões em subvenções e 250 mil milhões em empréstimos) e os critérios de distribuição das verbas pelos programas comunitários.

No que diz respeito à solução encontrada para o financiamento deste novo Plano Marshall europeu, com a emissão de dívida conjunta pela Comissão contra garantias do orçamento comunitário, através de um aumento temporário do tecto dos recursos próprios, as resistências iniciais dos líderes do chamado grupo dos frugais foram ultrapassadas.

A última tentativa, levada a cabo em Fevereiro, para encontrar uma base mínima de consenso para um acordo para a aprovação do próximo orçamento comunitário falhou rotundamente, com os 27 líderes agarrados às suas posições de princípios e inflexíveis na negociação — quer dos cortes em políticas tradicionais como a coesão e a agricultura, quer do aumento do valor das contribuições nacionais para os cofres de Bruxelas.

As circunstâncias extraordinárias determinadas pela pandemia de coronavírus vieram, naturalmente, alterar as contas e os cálculos políticos. A revisão da proposta de orçamento comum avançado pela Comissão na quarta-feira (o seu documento original data de Maio de 2018, e nessa altura o problema bicudo a resolver era como tapar o buraco nas receitas deixado pela saída do Reino Unido da UE) não se distingue muito do exercício apresentado há três meses pelo presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, que foi rejeitado pelos líderes por ser ou muito prudente ou demasiado ambicioso.

Novos programas compensam cortes
Em termos de montante global, a Comissão oferece agora um valor apenas ligeiramente inferior ao que projectou em 2018 e ligeiramente superior ao que foi avançado por Charles Michel em Fevereiro: 1,1 biliões de euros para pagamentos. O executivo promoveu uma redistribuição das verbas pelos vários capítulos por onde se distribuem as despesas, acabando por exemplo por aumentar a dotação da Política Agrícola Comum (uma das reivindicações portuguesas) e por reduzir o envelope orçamental dedicado à política de coesão.

Mas esse corte, que no caso de Portugal levaria a uma perda de cerca de 1600 milhões no envelope da coesão face ao actual quadro, e que antes da pandemia o primeiro-ministro, António Costa designava como “totalmente inaceitável”, é mais do que compensado pelo financiamento extraordinário do programa de recuperação “Nova Geração”, complementar às verbas do QFP.

Utilizando só nos valores previstos para o capítulo Coesão e Valores — onde se encontra o Fundo Social Europeu e os fundos de coesão e desenvolvimento regional que sustentam 80% do investimento público em Portugal— o complemento do “Próxima Geração UE” quase triplica o orçamento disponível, dos 374,460 milhões de euros para os 984,460 milhões de euros.

O que quer dizer que num horizonte temporal mais limitado — o financiamento do “Próxima Geração UE”, no que diz respeito a subvenções, está concentrado nos anos de 2020, 21 e 22 (o instrumento termina a 31 de Dezembro de 2024) — vão poder ser acelerados um número de projectos e investimentos que provavelmente nunca seriam contemplados sem os montantes adicionais que o fundo de recuperação vai injectar nos diversos programas comunitários.
Voltando a olhar para o capítulo da Coesão e Valores, encontramos aí o novo instrumento para a recuperação e resiliência (ou RRF, na sigla em inglês) de 560 mil milhões de euros, no lugar antes ocupado pelo Instrumento Financeiro para a Convergência e Competitividade (ou BICC, na sigla em inglês), que teve um parto difícil no Eurogrupo e cujo desenho final mereceu as maiores críticas ao primeiro-ministro, António Costa, colocando-o em rota de colisão com Mário Centeno. Na sua proposta revista, a Comissão dá o golpe de misericórdia no BICC (que era para todos os efeitos, o embrião do muito reclamado orçamento da zona euro), mas como este só valia 19 mil milhões de euros, nenhum líder chorará sua perda.

Outra novidade é o instrumento de assistência para a coesão territorial ReactEU, de 50 mil milhões de euros, mas que a Comissão quer activar ainda no actual quadro financeiro, com um chamado “top up”, ou montante adicional, de cinco mil milhões de euros do envelope da política de coesão. Não existem, por enquanto, estimativas sobre os envelopes nacionais do ReactEU, uma vez que a Comissão pretende esperar pelos dados do primeiro semestre de 2020 (que serão conhecidos em Outubro) para construir uma chave de distribuição que reflicta os efeitos da crise.

Mais dinheiro para a transição justa
Quanto ao RRF, que é a peça central do “Próxima Geração UE”, já foi avançada a tabela da pré-alocação de verbas pelos 27 países, tanto para o financiamento a fundo perdido, como para o acesso à linha de crédito aberta pela Comissão. Para Portugal, o que está previsto é um envelope de 12,905 mil milhões de euros de subvenções e 9,164 mil milhões de euros de empréstimos.

Segundo explicou esta quinta-feira o vice-presidente executivo da Comissão, Valdis Dombrovskis, o recurso a este financiamento exigirá a apresentação de um plano nacional de recuperação e resiliência, com a identificação de calendários e metas e a explicação dos investimentos e reformas a implementar, e será numa base totalmente voluntária. O que quer dizer que, no limite, poderá haver Estados membros que se candidatem a subvenções mas não a empréstimos, ou a nada — se porventura entenderem que não necessitam de fazer reformas ou não estiverem interessados na supervisão de Bruxelas. Depois da aprovação dos planos, as transferências são realizadas por tranches, mediante o progresso na execução das medidas.

Como prevê o regulamento, esses planos terão de ser conformes com os objectivos dos programas nacionais de reformas e as recomendações específicas do Semestre Europeu (aliás, a sua apresentação está prevista para as datas dos ciclos de Primavera ou Outono), e ainda estar articulados com os respectivos planos territoriais de transição justa e os acordos de parceria e programas operacionais do quadro financeiro plurianual, isto é, a política de coesão e desenvolvimento rural.

Portugal também vai dispor de um envelope substancialmente superior no quadro do Fundo de Transição Justa, criado para apoiar a descarbonização da economia e a reconversão das regiões mais dependentes da exploração de recursos fósseis. A dotação original deste fundo era de 7,5 mil milhões de euros, mas a Comissão pretende reforçar o seu orçamento para os 40 mil milhões de euros, com recurso a parte do dinheiro do “Próxima Geração UE”.
Assim, em vez dos cerca de 80 milhões de euros que lhe estavam destinados, Portugal beneficiará de um total de 465 milhões, para sustentar os custos do encerramento das centrais termoeléctricas do Pego e de Sines, e ainda para acções de requalificação ambiental em torno das duas unidades petroquímicas de Sines e Matosinhos.