Mariana Duarte (texto) e Rui Gaudêncio (fotografia), in Público on-line
Vivem dias “de incerteza sufocante”. Sem trabalho e com pouco dinheiro, a “fazer contas à vida”. Mas não se deixam paralisar. O choque bruto e fulminante no corpo colectivo dos trabalhadores das artes e da cultura em Portugal está a pôr em marcha um pujante movimento de união e reivindicação laboral. Retrato de uma luta-in-progress.
Primeiro foi a imagem em branco que começou a aparecer nas fotos de perfil das redes sociais de artistas e outros agentes culturais. Branco como sinónimo de silêncio, em contraponto ao frenesim das actividades culturais online que tentavam colmatar o buraco provocado pela pandemia. Mas também como sinónimo do vazio nos bolsos e nos frigoríficos daqueles que, de repente, sem margem de manobra, viram o seu trabalho totalmente paralisado ou brutalmente reduzido.
Entretanto, no Facebook, foram multiplicando-se fotos de cartazes, papéis, cadernos, ecrãs de computador, mãos e outras partes do corpo com o hashtag #Unidos pelo presente e futuro da Cultura em Portugal. E assim continua, dia a dia, hora a hora. A envergar a mensagem vemos caras conhecidas e anónimas de quase todos os espectros do ecossistema artístico, incluindo figuras internacionais que se juntaram à causa, da coreógrafa americana Meg Stuart à cantora brasileira Daniela Mercury. Mas também já estão a surgir fotos de apoio de pessoas que não têm uma ligação directa à área da cultura.
Por trás desta guerrilha visual e viral está um movimento de união e reivindicação laboral dos trabalhadores das artes e da cultura em Portugal. Não é a primeira vez que vemos um levantamento do precariado que compõe este tecido socioprofissional. Mas talvez nunca tenhamos assistido a um assim, tão possante e pujante, tão firme e urgente, em busca de uma maior transversalidade e espírito aglutinador. “Enquanto artista independente testemunhei e participei em vários momentos de reivindicação da classe artística em Portugal e admito que nunca como hoje vi uma capacidade de organização, diálogo, cooperação e entreajuda tão concreta”, afirma ao Ípsilon Tiago Rodrigues, encenador e director artístico do Teatro Nacional D. Maria II.
“Parece que, finalmente, estamos prontos para a luta”, declara Nádia Yracema, actriz e criadora que, por estes dias, sobrevive com “frio na barriga”. “Frio de não saber quando vou conseguir ter mais do que 0,37€ na conta, frio de ver tantos como eu em situações de precariedade ou pobreza, neste momento, extrema. Gelada de continuar a ver a cultura a ser considerada como um bem de luxo e não uma necessidade de primeira.” Apesar de tudo, Nádia diz ter “a sorte” de ser amparada por “uma rede de calor e amor que chega de muitos lugares”. “Perguntas-me como vivo? Não digo de favor, prefiro dizer de amor. Neste momento é o amor que me alimenta, que me paga as contas, que me acalma o coração em dias de explosão.” Se não fosse a pandemia, a actriz estaria agora a apresentar a peça Aurora Negra, com Cleo Tavares e Isabél Zuaa, em vários teatros do país, como o D. Maria II e o Teatro Viriato.
A paralisação da cultura pôs a nu — de forma muito inequívoca, dura e crua — a precariedade e a fragilidade laboral da maioria dos trabalhadores das artes, atirando muitos deles para situações no limiar da sobrevivência, sem dinheiro sequer para pôr comida na mesa. Este sufoco em que boa fatia da classe artística se encontra revela não só “a falta de visão estratégica” da ministra Graça Fonseca para a cultura, insiste o sector — e as consequências catastróficas da suborçamentação crónica do Ministério da Cultura —, mas também o vazio de legislação laboral específica e adequada para estes profissionais, cujo trabalho é marcado, há décadas, pela precariedade e intermitência (ou seja, trabalhar por períodos curtos e sucessivos para entidades empregadoras diferentes, alternados com períodos de paragem).
“Eu trabalho como independente há quase 20 anos e continuo sem trabalho pago de forma permanente. É loucamente instável”, assinala Ana Rocha, artista, programadora e mediadora cultural independente que tem sido presença activa e constante nos circuitos artísticos do Porto. O coronavírus só veio piorar o que já estava mal. “Como tenho sobrevivido? A fazer contas à vida.” Segundo um inquérito lançado pelo CENA-STE — Sindicato dos Trabalhadores de Espectáculos, do Audiovisual e dos Músicos, 98% dos profissionais das artes tiveram trabalhos cancelados. Para as 1300 pessoas que responderam, as perdas representam dois milhões de euros, apenas para o período de Março a Maio deste ano. Ao Ípsilon, a direcção da Plateia — Associação de Profissionais das Artes Cénicas diz ter conhecimento de vários casos de câmaras municipais que “ainda não pagaram ou não vão pagar” aos artistas pelas peças canceladas nos teatros por elas tutelados — isto apesar de a Assembleia da República ter aprovado, no início de Abril, duas propostas incluídas num projecto de lei do Bloco de Esquerda que prevêem o pagamento, pelas entidades públicas, dos espectáculos cancelados como se se tivessem realizado.
Agravando este cenário asfixiante, vários trabalhadores das artes ficaram excluídos, por diferentes motivos, do apoio extraordinário da Segurança Social à redução de actividade de trabalhador independente, ou estão a receber uma ninharia (como 100, ou 60 euros, auscultou o Ípsilon). Nádia Yracema ainda não conseguiu este apoio: descobriu que uma guesthouse onde trabalhou a contrato em 2016 não cessou, “por lapso”, o seu vínculo laboral. Aguarda a reavaliação do seu pedido. Situações como esta são, infelizmente, comuns a todas as classes trabalhadoras mais desprotegidas. “É preciso, sobretudo, uma rede de apoio social transversal a todos os sectores que vivem na precariedade”, defende Ana Rocha. E talvez um dos próximos passos da luta da classe artística tenha de passar por aí — por uma aliança efectiva com outros trabalhadores precários de diversas camadas da sociedade, partilhando com eles a mais-valia de que inegavelmente dispõem e que é o acesso privilegiado a plataformas de visibilidade.
O luto virou luta
Desde o início do estado de emergência que os trabalhadores das artes e da cultura têm mobilizado uma série de acções a um ritmo avassalador: inquéritos dirigidos aos profissionais do sector, mapeando as suas dificuldades e condições de trabalho; documentos enviados ao Ministério da Cultura, cartas abertas, manifestos, comunicados, petições, distribuição de cabazes alimentares e bens essenciais — que têm sido o colete salva-vidas de muitos artistas e técnicos —, articulações entre comissões de trabalhadores de diferentes instituições e, sobretudo, um diálogo concertado entre grupos formais e informais, recém-nascidos e históricos. São iniciativas autogeridas, do-it-yourself e do-it-together, de solidariedade, entreajuda e cuidado colectivo que têm despontado e ganhado tracção nas redes sociais. Foram também elas que conduziram à organização da Vigília Cultura e Artes, que teve ontem lugar em várias cidades do país e na Madeira.
Um dos movimentos que está na linha da frente desta luta é a Acção Cooperativista de Apoio — Artistas, Técnicos e Produtores, responsáveis pelas manifestações virais das fotos em branco e do coro Unidos pelo presente e futuro da Cultura em Portugal. Este grupo, criado a 14 de Abril no Facebook, reúne agora mais de quatro mil membros de várias áreas e profissões (por enquanto, com as artes performativas em maior número), de Portugal continental e ilhas. Actores, bailarinos, coreógrafos, encenadores, cenógrafos, galeristas, músicos, DJs, artistas visuais e transdisciplinares, cineastas, museólogos, académicos, técnicos de som e de luz, educadores, produtores, promotores, programadores, mediadores culturais. “Foi uma ideia impulsiva, no meio do meu desespero e depressão”, conta Carlota Lagido, bailarina, coreógrafa e figurinista que iniciou a Acção Cooperativista e que, ao longo da sua vasta carreira, já colaborou com nomes como Francisco Camacho, Meg Stuart ou Vera Mantero.
Rapidamente, o luto virou luta. “Uma luta política e laboral.” O hashtag Unidos… não foi só para a fotografia. É também o título do comunicado que o grupo enviou aos decisores políticos, exigindo não só medidas “transversais” e “dignas” de emergência social no contexto da pandemia, mas também o delinear de um plano estratégico a médio e longo prazo para as artes e cultura que garanta resposta a necessidades que são, há muito, urgentes — desde logo a definição consistente de um quadro legal, social e fiscal que regulamente e proteja as profissões do sector.
Este comunicado foi assinado por mais de uma dezena de estruturas, formais e informais, que se aliaram à Acção Cooperativista, entre elas a Fundação GDA, o CENA-STE, a Performart, a Plateia, a Rede — Associação de Estruturas para a Dança Contemporânea, os Precários Inflexíveis ou os Intermitentes Porto e Covid. Muitos dos princípios éticos erguidos por estes grupos encontram eco noutras acções, como os comunicados da Plataforma do Cinema e das CT’s Cultura (comissões de trabalhadores do Centro Cultural de Belém, da Gulbenkian, da Fundação de Serralves e da Parques de Sintra), ou mesmo nas reivindicações do grupo de trabalhadores do Serviço Educativo de Serralves e do movimento de trabalhadores da Casa da Música que exigem alterações nos regimes laborais destas instituições e “responsabilidade ética e social”.
Uma das questões que mais desencadeou protestos em uníssono foi o modelo da Linha de Apoio de Emergência ao Sector das Artes. Lançada pelo Ministério da Cultura em Março com uma dotação de um milhão de euros, reforçada depois com 700 mil euros, esta linha recebeu 1.025 candidaturas. “Foi um concurso de apoio à criação, logo deixou muita gente de fora”, nota Carlota Lagido. “Deveria ter sido criado um apoio de emergência social sem retorno. Tanto para os artistas como para todos os trabalhadores precários.” Por outro lado, o valor era, por si só, “abaixo do necessário”, considera Sofia Leal, produtora cultural e dirigente do sindicato CENA-STE. “O resultado foi como se previa: dos 636 projectos considerados elegíveis foram apoiados 311.”
A Palmilha Dentada, companhia de teatro do Porto, foi uma das estruturas abrangidas, “perdendo a virgindade” nos apoios estatais (tem sobrevivido à custa da bilheteira dos seus espectáculos). Recebeu 69,7% do financiamento pedido. “O que é 69,7% de um espectáculo? Não faço ideia”, diz Ricardo Alves, dramaturgo e encenador da companhia. “Se fosse numa situação normal, eu percebia. Mas já é um orçamento de crise, e eu não tenho moral nenhuma para dizer a um actor ‘olha, vou cortar-te do projecto’ ou ‘vais receber 30% menos’.”
Perante este panorama, Ricardo Alves defende que a classe artística tem de ter também como interlocutor o Ministério do Trabalho — ao qual o CENA-STE solicitou uma reunião, mas sem sucesso. Contudo, o Grupo de Trabalho constituído entretanto pelo Governo para “análise, actualização e adaptação dos regimes legais dos contratos de trabalho dos profissionais do espectáculo e respectivo regime de segurança social” conta com representantes do Ministério do Trabalho, bem como das pastas da Cultura e das Finanças. Sofia Leal espera que daqui possa resultar “a elaboração de um quadro legal específico, totalmente diverso do actual, para os trabalhadores e estruturas”, assumindo que “este sector, tal como todos os outros, deve ser expurgado de más práticas laborais e vínculos ilegais de contratação”.
A criação de um estatuto profissional dos artistas e demais trabalhadores das artes e da cultura é uma das reivindicações nucleares de vários grupos e movimentos. Para a dirigente do CENA-STE, este estatuto tem de ser acompanhado por “um quadro legal que observe as especificidades inerentes ao desempenho das funções do sector, que atenda à natureza intermitente da criação artística”. Sofia Leal sublinha que uma mudança estrutural neste sector passa, necessariamente, por garantir “trabalho com direitos, independentemente da duração do projecto” — e uma das lutas do sindicato é firmar a “obrigatoriedade” de todos os projectos “com subvenções públicas” realizarem contratos de trabalho com os profissionais. “O recurso ao falso recibo verde é o que tem vigorado.”
Uma multidão de trabalhadores
As movimentações dos últimos meses têm contribuído para mostrar como o ecossistema do sector das artes é mais complexo do que se pensa, com uma miríade de forças de trabalho e estratos sociais. Existe uma elite, de facto, mas essa elite é permeada e sustentada por uma multidão de trabalhadores e respectivos ofícios, sejam eles do campo artístico, técnico-artístico, educativo, logístico. Os que estão no topo da cadeia alimentar — instituições e os seus directores artísticos, programadores de festivais, curadores e até os artistas mais mediáticos — não são ninguém sem estes profissionais. São eles a espinha dorsal do tecido cultural e artístico. O seu órgão executivo e metabólico. “Nós não estamos falando da casta das artes, dos grandes salários, da estabilidade assentada nos horários nobres da máquina TV. Estamos falando da carne perto dos ossos, do tutano da criação artística”, sintetiza a brasileira Cafira Zoé, artista visual, poeta e actriz do Teatro Oficina (São Paulo), num texto recente, Um manifesto dos operários da arte — e estas palavras reverberam tanto no Brasil como em Portugal.
Segundos dados do Instituto Nacional de Estatística publicados no ano passado e referentes a 2018, Portugal contabilizava, pelo menos, 131.4 mil trabalhadores na área cultural e criativa, sendo que este sector teve um volume de negócios de 6.3 mil milhões de euros. Olhar para estes números e confrontá-los com “essa espécie de limbo negligente, por parte do Estado”, em que se encontram os trabalhadores da cultura, “dá-nos uma medida do ridículo das linhas de apoio que foram criadas e do ridículo do montante do Orçamento de Estado para a cultura”, observa Tiago Rodrigues. Embora o argumento economicista e lucrativo não deva ser usado enquanto parâmetro — já que a cultura é “um direito constitucional” e, por isso, devemos falar dela “nos mesmos termos em que falamos da educação, habitação e saúde” —, é importante para demonstrar como “a cultura não é essa coisa lateral e acessória, ou um alfinete que os decisores políticos colocam na lapela em dias de festa, mas sobre a qual não pensam de segunda a sexta”, afirma o director artístico do Teatro Nacional D. Maria II.
Teresa Duarte Martinho, socióloga especializada no sector cultural, considera que os problemas crónicos das políticas culturais em Portugal, que acabam por contaminar as questões laborais, implicam vários factores. “Desde logo, o muito baixo orçamento da cultura e, em especial, o decréscimo de despesas centrais e locais registado após 2009, em consequência da crise financeira de 2008 e da crise da dívida soberana de 2011”, explica a investigadora auxiliar no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. “A recessão reflectiu-se na diminuição dos investimentos, na limitação, suspensão ou adiamento de programas públicos da cultura e em quebras nos apoios.” Isso conduziu à intensificação “da precarização do trabalho cultural e artístico e à destituição financeira e simbólica da cultura”. O que contrasta, como aponta também Tiago Rodrigues, “com o crescente destaque atribuído à cultura, principalmente nos discursos dos responsáveis políticos e económicos, ao defenderem que fomenta as indústrias criativas das regiões”.
Para a socióloga, co-autora do livro Trabalho e Qualificação nas Actividades Culturais. Um Panorama em Vários Domínios (2009), outro problema de fundo é a “insuficiente articulação interministerial em áreas de interesse comum”. O que tem prejudicado a dinâmica entre a tutela da Cultura e os ministérios responsáveis pelo trabalho, solidariedade social e educação. Teresa Duarte Martinho acredita que o diálogo concertado e regular entre estes ministérios é “indispensável quando estão em causa regimes de segurança social e mecanismos de certificação do acesso à profissão”.
Se, por um lado, este é um momento-chave para os trabalhadores das artes se assumirem como uma classe trabalhadora precária que não está à parte das restantes, por outro é preciso ter em conta as suas “especificidades”, adverte a coreógrafa Carlota Lagido. Teresa Duarte Martinho aponta a “temporalidade do trabalho criativo” como uma das particularidades, não sendo esta “tão linear como o ritmo de produção noutras actividades”. Por trás dos projectos e criações estão horas e horas de pesquisa, preparação e ensaio, reforça Sofia Leal. Além destas circunstâncias, acrescenta Teresa Duarte Martinho, “são, de um modo geral, trabalhadores mais qualificados e tendencialmente mais jovens” (no fundo, a definição de precariado, ou seja, a camada média do proletariado urbano altamente escolarizado com relações de trabalho precárias) e “dão menos a conhecer, fora dos seus círculos, problemas como a vulnerabilidade do freelancing e a desproporção entre qualificação e salário”. Para a socióloga, os momentos de crise trazem à superfície “o que, habitualmente, é tacitamente aceite”, materializando-se em lutas por direitos laborais e sociais.
É o que está a acontecer agora. “O cidadão político que estava a oculto veio à tona”, assinala Ana Rocha, que integra o núcleo duro da Acção Cooperativista e o grupo Intermitentes Porto e Covid. Apesar de a luta não ser de hoje, a artista e programadora independente admite que tem faltado uma politização e solidariedade transversais; uma consciência de classe. “O que tem falhado é a capacidade de juntar todos os intervenientes numa luta colectiva pela cultura”, reforça Nádia Yracema. Este deveria ser também o momento para encetar um debate público e transparente, sem ego trips e clubismos, sobre as relações tóxicas e de abuso de poder que têm lugar nos bastidores das artes performativas ou das artes plásticas, sobretudo entre programadores e artistas.
Há muitas dinâmicas “de repetição daquilo que se critica”, afirma Ana Rocha. Há “muitos egos” e “muitos medos” — medos, inclusive, de retaliações, que as condições laborais precárias só agudizam. “As pessoas têm de ganhar coragem para dar a cara com o colectivo e não, como sempre, ‘ser a cara da capa de revista’ supostamente em prol do colectivo.” Para a artista, este é “o momento de guerrilha para tentar diluir” esses egos, bem como questionar os “oportunismos” que surgem atrelados a estas lutas. E isso implica desmantelar hierarquias, “colocar a experiência em acção para um bem comum”. Os valores progressistas orgulhosamente exaltados nas programações e nas criações têm de ser praticados também fora dos palcos. “Menos artes cínicas, mais artes cénicas”, como diz a cantora, performer e activista brasileira Linn da Quebrada.
Entreajuda e novas alianças
Um país de palhaços pobres
É difícil prever se esta corrente de união e articulação será temporária ou duradoura. Mas é certo que tem produzido um turbilhão de iniciativas de solidariedade e afecto. O colectivo Cosmic Burger e o espaço cultural Anjos70, em Lisboa, organizaram campanhas de angariação de fundos para artistas. Pequenas estruturas do circuito das artes performativas, como os SillySeason, a Parasita Associação e o Ballet Contemporâneo do Norte, lançaram bolsas de criação e documentação cujas verbas foram retiradas dos seus próprios bolsos.
“Pareceu-nos inconcebível, enquanto estrutura privilegiada, não nos solidarizarmos com o movimento de entreajuda que emerge dentro do sector e, dentro das nossas limitações, promover uma acção concreta de auxílio”, afirmam os SillySeason. O colectivo canalizou para estas bolsas algum do dinheiro que recebeu do apoio da DGArtes. Apesar de o cenário actual ser de ruptura generalizada, os SillySeason lembram que os trabalhadores das artes “não estão todos no mesmo barco”. “Uns têm contratos de trabalho e mantêm as suas co-produções, enquanto outros nem sequer têm dinheiro para comer, quanto mais para criar objectos artísticos.”
A distribuição de cabazes de alimentos e bens essenciais é outra das práticas de solidariedade em rede que têm dado resposta a situações de maior vulnerabilidade. A União Audiovisual e a NOS SOS, promovida pela companhia de teatro Palco13, são duas dessas iniciativas. Têm operado em várias cidades do país, graças a donativos. O trabalho é diário. “O nosso objectivo é cobrir todo o país. Estamos em conversações com o Continente para nos ajudarem na distribuição”, revela Marco Medeiros, director artístico da Palco13, que mobilizou toda a sua equipa para esta empreitada, contando ainda com uma rede alargada de voluntários em várias regiões. A NOS SOS chega a actores, músicos, bailarinos e técnicos, “de diferentes faixas etárias”, e garante confidencialidade. Com as poupanças a acabarem e sem perspectivas de trabalho nos próximos meses, Marco Medeiros acredita que “o pior está por vir”.
Ágatha Barbosa, DJ/produtora conhecida como Cigarra e metade do projecto performativo e musical Trypas-Corassão, foi uma das artistas que recorreram ao NOS SOS. Do crowdfunding promovido pelos Anjos70 recebeu 60€. De resto, está a “espremer os cachets” que tinha por receber e que são “pouquíssimos”. “Só um evento que ia fazer em Nantes assumiu pagar o meu cachet mesmo com o cancelamento.” Mãe e imigrante brasileira em Lisboa, diz que estão a surgir alguns grupos nas redes sociais mais focados em dar apoio a artistas e mulheres imigrantes. A associação Casa do Brasil de Lisboa tem também trabalhado nessa ajuda mais direccionada.
Ao contrário do que acontece com as artes performativas ou as artes visuais, o circuito da música independente, também ele paralisado (e sem perspectivas de reactivação), tem a desvantagem de ser considerado entretenimento, nota Ágatha Barbosa, o que atira os artistas para um “mercado informal e desarticulado”. Márcio Laranjeira, da editora e promotora Lovers & Lollypops, concorda. “Este sector não tem a força de outros para reivindicar porque não é organizado — quer a nível de associações que juntem de forma representativa os profissionais da área, quer pela falta de reconhecimento de algumas profissões, quer pela falta de números palpáveis.” Tudo isso, a juntar a “anos de políticas culturais insuficientes”, faz com que este sector seja particularmente desvalorizado e secundarizado.
E é precisamente para dar visibilidade ao circuito da música popular actual em Portugal que está a ser constituído um agrupamento informal de salas com programação própria de música ao vivo, com o objectivo de formar uma associação. São quase duas dezenas de espaços de vários pontos do país, entre eles o Maus Hábitos, Musicbox, Lux Frágil, Plano B, Damas, Lounge, Club de Vila Real, Passos Manuel, Sociedade Harmonia Eborense ou B.Leza.
O grupo está a fazer uma recolha de dados que demonstrem a relevância cultural, social e económica de um circuito que “envolve milhares e milhares de artistas, técnicos, pequenas agências, promotoras e editoras”, contextualiza Gonçalo Riscado, um dos sócios do Musicbox. Até ao momento, os números contabilizados entre as salas apontam para um total anual de 888.172 espectadores e 5582 actuações. Além de este circuito de música ao vivo contribuir decisivamente para o desenvolvimento das “economias locais, da nightlife economy e do turismo”, é também a base para “o aparecimento, crescimento, afirmação e circulação de artistas”, sublinha Gonçalo Riscado.
Independentemente da arena artística, o choque bruto e fulminante no corpo colectivo dos trabalhadores das artes e da cultura em Portugal fez levantar uma classe precarizada, mas não derrotada. “Este momento é para agarrar”, declara Ana Rocha. É o timing para alinhavar estratégias e trabalhar “na contaminação e disseminação positivas, sobretudo de recursos”. Mesmo em “dias de incerteza sufocante”. Mesmo sem se saber como é que se vai pagar a renda da casa, mesmo sem se saber quando é que se vai voltar a ter perspectivas de futuro, no meio de uma crise económica que poderá vir a ser comparável à Grande Depressão. Talvez nesses dias seja preciso repetir três vezes, como faz Nádia Yracema, o mantra-manifesto “um país não existe sem cultura, um país não existe sem cultura, um país não existe sem cultura”. E assegurar que esta luta não fica pelo caminho. Por enquanto, eles e elas deixam o recado: “Não vamos deixar passar isto branco”.